terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O BARRO DO ÉDEN:A POESIA DE ALFREDO FRESSIA



Primeiro filho de Adão e Eva, e, por conseguinte, primeiro homem nascido naturalmente sobre a Terra, pesa sobre Caim a cifra de um enigma e de um destino, ora individual ora coletivo. Embora o seu nome signifique lança e denote a sua origem agricultora, pode ser entendido também, de modo perifrástico, como obter para si, ou seja, ganhar algo para si. Isso que o primogênito tem para si, como depois sabemos, é a inveja. A necessidade de ter, por parte de Deus, a dignidade que ele julga que lhe compete, fato que não ocorre. Por isso o fato último do assassinato. “E porei inimizade entre a tua semente e a sua semente” (Gênesis 3:15), diz Deus, referindo-se à serpente e a Eva. Ora, quer dizer que o mal que nasceu do pecado entre Eva e a serpente se estenderia à semente de Eva (Caim) e a toda a descendência deste (a humanidade).
Porém, alguns comentadores eruditos sugerem que um dos sentidos simbólicos desse personagem seria o de redentor. Ele teria vindo ao mundo, após o pecado, para matar a serpente e restituir a integridade da vida. Por isso a sua urgência de obter reconhecimento (e aqui a ambiguidade semântica da palavra é oportuna) por parte de Deus. De acordo com essa leitura heterodoxa, haveria um sentido subliminar na figura de Caim. Ele seria o descendente (a semente) que teria vindo ao mundo para aniquilar o mal. Teria sido o primeiro ungido.
Obviamente, na doutrina cristã, a ideia de regeneração da humanidade pela remissão do mal é atributo divino, e só se deu com Jesus. E trata-se de restauração total, não de mera extinção das suas causas mundanas (a serpente). Por isso, Jesus foi aquele “segundo Adão”, de acordo com as palavras do apóstolo Paulo, ou seja, aquele que restaurou integralmente o mundo e o ser por meio de sua encarnação e de sua palavra. Entretanto, não deixam de ser curiosas algumas outras associações simbólicas daquele personagem bíblico. Sabemos que Caim não apresenta arrependimento, mas padece de remorso. Esse fato vem inscrito na famosa “marca de Caim”, que foi estabelecida por Deus, mas cuja execução e natureza não vêm expressas.
Paradoxalmente, essa marca é registro de proteção e de estigma. Denota ao mesmo tempo a eleição divina e a chaga de uma ação ocorrida no passado. É aquilo que distingue Caim como descendente adâmico, marcando um limite de proteção para que ele não seja morto, e o que assinala o seu crime. Essa dupla natureza, protegida e espúria, preservada e infame, tem o intuito de fazer de Caim um dos protagonistas da neutralização do mal do mundo. Afinal, há que se suspender de vez a cadeia das mortes, interromper as quedas que se inauguram com a Queda, das quais Caim representa uma das mais profundas, logo depois da perda do Paraíso, pois em si mesmo mostra a todos a mácula de sua escolha.
Os desdobramentos do enredo, do mythos, muitos de nós sabemos: o exílio, a Terra da Fuga (Nod), a edificação de cidades, uma das quais leva o nome de seu filho Enoc, os primeiros trabalhos com a metalurgia, o crescimento da poligamia e da violência, a suspeita referência ao assassino de Caim, Lemec, que será vingado setenta vezes aquelas que Caim seria vingado, ou seja, setenta vezes sete. Ora, descendem de Caim, passando por Noé, Cam e Nemrod, o fundador de potências como Babilônia e Nínive, além de outras grandes cidades. A descendência de Caim, por outro lado, não é só o dos que constroem e manejam a metalurgia, mas também a dos que tocam cítara e flauta. Além de autores de muralhas feitas à custa de sangue e ferro, são também patronos da cultura e seu refinamento. Em palavras polidas, teria início então a “civilização”, que nada mais é do que a luta dos homens uns contra os outros? A edificação das cidades e, portanto, a ruptura com a relação com a natureza começou pelas mãos do primeiro fratricida? Não cabe discutir aqui os limites tênues entre essas esferas.
A despeito do que o leitor possa estar pensando, essa introdução um tanto idiossincrática se justifica, pois acredito que ela se relacione diretamente à experiência de leitura da poesia de Alfredo Fressia. Poesia rigorosamente edênica, ela não o é no sentido de propor a restauração de uma unidade primeira entre linguagem e mundo, de uma Ursprache poética, como tantos grandes poetas o fizeram e o fazem. Não é também poesia “profana”, no sentido de apagar as marcas da origem que tanto a linguagem quanto a vida trazem em si, no movimento centrífugo da Criação. A cena que se sustenta como pano de fundo de todos os poemas de Fressia é uma cena de intervalo.


Baseia-se na consciência de que a poesia, no seu sentido inicial e dir-se-ia até iniciático, nasce de uma origem pura, porém perdida para sempre, e toma para si a responsabilidade de edificar o mundo, mas apenas depois de estabelecer o seu compromisso com o mal. O poeta é aquela “rosa condenada” (“Mas a rosa”) ao eterno exílio, sempre no limiar, para sempre no umbral. Essa condição intervalar, de radical indecidibilidade, para usar o conceito de Blanchot, faz da via poética uma impossibilidade sustentada. Mais do que um confesso deslocado social, essa situação estrangeira é ontológica. Diz-nos que a poesia, por ser linguagem, está fora do Paraíso, mas, por ser poesia, tampouco compartilha da completa ausência de sentido.
Tanto nos conjuntos de poemas O futuro e Veloz eternidade, quanto no magistral Eclipse e nesta antologia Canto desalojado, recolhida, traduzida e organizada cuidadosamente por Fábio Aristimunho Vargas, a cena caimita não é acessória, tampouco referencial. Ao contrário, pode-se dizer que ela é a estrutura mítica sobre a qual se ergue a poesia de Fressia, é a sua matéria-prima e a sua bússola. Eleito e maldito, assim é a descendência do poeta e assim é a descensão sugerida pela instauração poética. Em termos arquetípicos, tais modulações da Queda são flagrantes até na passagem de um poema a outro.
De saída, já se vê esse movimento nos dois primeiros poemas do livro. Apresentando-se como um “mal-entendido como a alma” e como um “traidor”, desde o poema de abertura, não por acaso intitulado “A última ceia”, o percurso poético é sempre o da reminiscência, com a nostalgia do abandono (a derelicção, como diz Heidegger), e a certeza da redenção impossível. Inútil “como a poesia” é a própria existência do poeta, o mais exilado dos exilados, e, entretanto, marcado com a chancela divina. Da ceia se passa ao diálogo com o pai, em “O medo, pai”, no qual o filho espanta-se ao se reconhecer “preso no corpo”, e define os homens como “filhos obedientes da espécie”, mesma expressão que reaparece no belo e forte fechamento do poema “Obediência”.
Esse fundo mítico, que traz em si sempre a chancela de um mal inexorável e vem na abertura do livro tematizado em forma de remorso, ganha espessura na cena edênica e não se preserva no nível das formas e dos arquétipos. Toma corpo na própria vida, enraizada no cotidiano. Seja ao dizer, de modo babélico, que “todos os idiomas são incompreensíveis” na vasta tristeza noturna, seja mostrando os amantes como “títeres do tempo”, em quartos iluminados de néon (“Noturno na Avenida São João”). Esta paisagem desolada de perda e carência pode se dar na ausência de rosto, que fôra por “sete dias postergado”, no “segredo dos ossos”, no xadrez das vértebras jogadas pela morte (“Domingo à tarde”), na sinfonia da carne, na ruína dos corpos durante o amor e no regresso de cada um desses até “a sua ausência”. Esses corpos não são inodoros ou distantes, não são paisagem, tampouco estáveis permutações de um amor ameno. Eles se dilaceram e se dissipam, deixam marcas, cheiros, pegadas, passos, sêmen, odores, cortes, suor, sangue. Amam-se como peixes, amam-se e se odeia, atravessam-se e se esfolam aos olhares sorridentes da morte. Depois, se por acaso o seu o próprio corpo toma ciência de si, ele dobra-se e se contrai na posição de feto, em seu retorno primevo ao ventre da Criação, como lemos no impecável “Liturgia”.
Esse barro original de onde Fressia modela os seus corpos, além de manchado e impuro, traz algo também de singular. Se observarmos, por exemplo, a temática homoerótica de sua poesia, sinto que podemos desentranhar dela algumas variantes, não só do homoerotismo, mas também da androginia. O enigma da sexualidade, um dos enigmas da vida, é posto de maneira emblemática, entre outros, no poema “Final”. Ao dizer que “encerra todo o ciclo” e que em si “se acaba” e, logo em seguida, “Tirésias contempla o travesti em silêncio”, Fressia passa de uma dimensão literária, de fechamento dos poemas, a uma sexual e existencial, do voltar-se sobre si mesmo, ou seja, do amor ao próprio sexo e do amor a si, como fundo autotélico do desejo que não quer se perder no outro.
Ora, o adivinho Tirésias, tal como se diz de Empédocles, havia experimentado em outras vidas a forma de mulher. Esse feminino que vem inscrito na interioridade do personagem, aliado à cegueira que o veda ao mundo das formas exteriores, é o que promove o visionarismo. O mesmo visionarismo que terá Édipo em Colono, depois de cegado e depois de, na tragédia de Tebas, ter selado seu pacto com a mãe, que é Jocasta e o segredo do eterno feminino. Tem início então o segundo movimento da sinfonia trágica, o conhecimento que se exerce depois da peripécia do reconhecimento.
 A função edipiana é subvertida aqui de maneira quase bufa. O cego Tirésias contempla o travesti em silêncio. Quer dizer: as próprias estruturas interiores e exteriores foram embaralhadas, posto não haver aqui mais ambivalência produtiva. Em outras palavras, não há assimilação dos opostos, anima e animus, mas um profeta cego que “contempla” um travesti (o poeta), cujo feminino interior já foi totalmente exteriorizado, posto em potência. Nesse sentido, não há tragédia, pois a tensão dos opostos se resolveu por dissolução. O mesmo modo bifronte de união dos corpos se dá no poema “Belo amor”, no espelhamento de sexos idênticos. Dessas descrições chegamos por fim às de poemas como “Obediência”, verdadeira cidade da carne, onde o corpo e o sexo são pensados em termos puramente negativos, em uma noite que desmorona junto com as coisas.


Belo porque estéril, esse amor que se descreve é propriamente uma tentativa de não procriar a vida fora dos limites do Éden, de deixar-se ali até que a salvação venha cumprir seu destino. Ou não venha nunca. Se a tradição cristã mais ortodoxa viu na sodomia um ato contra naturam é por ela não gerar filhos que possam trabalhar o linho da vida até a redenção da espécie. Em outras palavras, até a completa purificação da marca de Caim que nós herdamos. A boa poesia é sempre violenta, e no caso de Fressia o é, na medida em que propõe um retorno à cena do crime, não para corrigi-lo, mas para revivê-lo e mostrar-nos um espelho, no qual todos nós nos reconheçamos.
Esses corpos não estão presentes apenas em um de seus livros. O que dizer deles, senão que são corpos edênicos, moldados no barro original e no pecado irresoluto que nos funda? Não há aqui intervenção do puro espírito ou o corpo sutil dos místicos. Não há sublimidade, altitude espiritual, pois se não há salvação, tampouco há tragédia. A sua encarnação simbólica em poesia se dá como experiência-limite da própria materialidade, da falta de transcendência que irriga todos os poros deste mundo que ainda não foi salvo. E provavelmente nunca será. E nestes advérbios temporais parece residir todo mistério. Ou melhor, reside um dos enigmas que nunca foram resolvidos: o futuro. No futuro do pretérito de sua poesia, o mundo ainda está para ser salvo. O “futuro era o de antes” era o do “tempo dos meus quinze anos”. Pessimismo cujo tom é um dos mais interessantes, com matizes judaizantes, pode-se dizer, a poesia de Fressia é tão exilada dos lugares nos quais se radica que vê a própria utopia sob a luz do luto.
De fato, em seu livro intitulado justamente O futuro, em especial no engraçado “Teorema”, mais do que uma projeção utópica frustrada, uma distopia ou uma falta de enquadramento social, o que se lê é uma atopia. Não aquela enfadonha, insossa e insone, dos aeroportos (“Aeroportos”), que estão mais para aqueles não-lugares de que nos fala o sociólogo Marc Augé, e são tratadas comicamente. Trata-se, por outro lado, de uma condição estruturalmente incondicional, do poeta e da poesia. Sob essa ótima, que é a de um exílio ontológico, não mais uruguaio ou brasileiro, os lugares e os projetos estão sempre ainda por se realizar. Não existem, e, portanto, nunca existirão. Serão sempre diversos de si mesmo, sendo o centro luminoso de irradiação de sua verdade eternamente inacessível para nós. Por isso, não podemos dizer que algo será salvo por algo ou alguém que ainda não existe nem por aquilo que ainda não há. Se a perspectiva edênica marca seu vínculo com o tempo de antes da salvação, essa salvação que se mostra sempre por vir é eterna. Sendo assim, é também infinita. Não se consuma nunca. É, portanto, inexequível e assim carece de essência. Essa é sua parcialidade. Em outras palavras, pode-se dizer que a vida humana está e sempre estará sob o signo dessa parcialidade. Por isso, o centro de toda a poesia de Fressia chega enfim a um termo: o eclipse.
O eclipse como fenômeno natural é simples. Consiste na sobreposição de um dos astros, que oculta a parte luminosa de outro astro, seja o Sol ou a Lua. Mas se eu me surpreendo “ferido pelos astros”, eles impregnam minha carne, misturam-se ao meu sangue. Em uma palavra, são o meu corpo astral, a circulação de meu sangue e de minha linfa, a matéria estelar de que sou feito, como diz a teoria platônica. No poema “Eclipse”, um dos melhores poemas da poesia contemporânea, essa dimensão vem muito marcada:

Não nos atenhamos a detalhes, isso
era o futuro, já o sabias refugiado no ventre do bisão:
eras homem e mulher, e o céu foi um deserto
onde ardeu meia hora a fogueira fria dos teus ossos,
e estava escrito que não tivera margens nem destino
nem esperança de morrer cercado de teus filhos, o
semicírculo acossado
desde antes de nascer.

A marca da origem é anterior à cena mundana, é anterior à próprio proveniência da espécie. Vem inscrita no ocultamento dos próprios astros, que sempre produzem a sua marca profética e são mais fortes do que a nossa vontade ou do que a triste sociologia das revoltas sociais ou de nossas ocupações. Trata-se de uma marca mais profunda: o Estrangeiro dos gnósticos, que nunca pertence a este mundo. Ele vem marcado desde a origem edênica, nos mitos primordiais que fornecem a miséria e a liberdade necessária ao exercício de nossa finitude. Mais que isso, de nossa fatalidade. O poeta, e aqui não falo em termos literários, mas falo sim de Alfredo Fressia, de carne e osso, já fora “acossado desde antes de nascer”. O futuro “era o de antes”, era o que ainda não existiu e não existirá nunca, pois não tem essência.


Homem e mulher, conjunção de sol e lua, de masculino e feminino, de gregos e persas, queimado em meio a um gélido deserto, sem esperança de deixar descendência que não a poesia e o signo de Caim que traz consigo e não se limpa, seja no eclipse de Tebas, no da batalha de Salamina ou no de Montevidéu. O retorno à cena primordial ganha ainda mais espessura, pois agora retroage ao fundamento metafísico e cósmico dos astros, em sua conjunção maléfica. Como diz Fernando Pessoa em um dos sonetos ingleses, o seu eu é anterior ao mundo e anterior até mesmo a Deus. Por isso, vive a desolação de saber-se sempre alheio a tudo que o cerca. O intuito do poeta é refazer essa peregrinação inversa, essa reminiscência às origens obscuras de onde provém a sua verdade.
Tal recuperação não é vivida como miséria, como desespero ou como autoglorificação; não estamos diante de um dândi que se apostasia anacronicamente na transgressão, nem de uma mistificação inócua do lado oposto da vida. O resultado último do percurso levado a cabo por Fressia é uma espécie de desilusão essencial. O remorso prossegue, porque não há redenção; mas, por maior que seja o peso do nefasto eclipse que nos condena, não há sequer tragédia, porque o destino quis que nós nos desviássemos e nos transviássemos para virmos a conhecer a vida e edificar o mundo, com suas torpezas e maravilhas.
O rito final dessa mise-en-scène prossegue nos belíssimos poemas inéditos: “Nugatória”, “Inveja” e “Rua Rondeau”. Estes, somados a poemas como “Liturgia” e “Obediência”, bem como a quase todos os poemas selecionados de Eclipse, estão entre os melhores poemas escritos nas últimas décadas, no Brasil e quiçá em castelhano. No magistral “Penitência”, lemos:

Quero voltar ao ventre
e velo imóvel sobre a teia de aranhas venenosas. Conto-as
uma por uma, até que sucumbam famintas como pensamentos.
Rezo. A goteira não cede na cozinha. Recostado
sou branco e gigante como o arrependimento. Vivo para pedir.
Perdão pela memória porosa da areia, perdão
se afundo meu ouvido no travesseiro de plumas
e me ouço flutuar atrás da muralha, Amém.

O retorno ao ventre se dá não como aconchego, mas como úlsão de morte, pois o ventre é “o velo imóvel sobre a teia de aranhas venenosas”. E se o poeta é “branco e gigante como o arrependimento”, por ter ciência da sua marca fundadora, sua vida e sua escrita não deixa de ser, por seu lado, também um extenso “perdão pela memória porosa da areia”. Nesta série, o tema bíblico, praticamente apenas sugerido nos primeiros poemas e aprofundado nos demais, toma corpo e vem à luz com todas as letras em “Nugatória”, com a “quebra da inocência”, porque “é polpa amarga o coração do fruto” e também porque chegamos “tarde à colheita dos filhos de Eva”. E, mais adiante, em “Poeta no Éden”, lemos a bela abertura:

Não, Senhor,
nunca fugirei do Paraíso, tenho em mim
o leite eterno dos pais e dos filhos,
e escrevo poemas para a saudade.

Em seguida, o poeta nos fala do “menino imenso” que docilmente escreve “no barro do Éden”, passando logo em seguida a um colóquio entre ele mesmo e o invejoso, “estendidos sobre a grama” e “fingindo certa glória”. A visão caimita ora é a do outro ora a do próprio poeta, mas nunca sai de cena. Caim aparece, seja como o próprio poeta, seja em forma dialogal, neste poema intitulado justamente “Inveja”. Essa glória é um artifício, uma tentativa de isenção e soberania que não há. Porque depois do Paraíso confiscado, resta-nos apenas o modelo histriônico e postiço, desenhado em “serpentes de néon”: Next Paradise.
Resta-nos simplesmente o futuro, que não se sabe utópico e exequível ou uma mera boutade para aliviar um remorso sem cura. Em seguida, o desejo de voltar às “nêsperas da infância” (“Rua Rondeau”). Mas o retorno não consente um acesso à veracidade das coisas, pois o tempo passado também é um mundo. Este, por sua vez, é um pião de mentiras, girando na “vista noturna do tempo da minha infância” (“Cartão postal”). O poeta em estado natural está no Éden e ao mesmo tempo caminha pelas ruas e é corrupto. A linguagem é seu Paraíso, mas a sua natureza é modelada no barro impuro da Criação.
Para finalizar o livro, nada melhor do que “Rua Rondeau”. O caminhar leve pela rua, levando “os filhos que não tivera sob o casaco”, faz Fressia sentir todas as virtualidades, o que não houve, mas persiste, entrelaçado eternamente à sua vida. O mito, nesse sentido, também é um misto de virtual e atual, de presença pura e de origem para sempre perdida em um passado irrecuperável. A consciência do poeta é a de que não há reconciliação possível. Mas há a tentativa de ao menos dignificar a sua condição neste mundo manchado:

Ou desde as abóbadas da cidadela,
onde agora me refugio, embalo
os meus filhos não nascidos
e abraço os joelhos
de todas as estátuas na estação central
para que não me expulsem, nem impregnem minha terra com sal estéril
nem maldigam outra vez minha estirpe
para as sete gerações
que vigiam meu poema
e torne a cumprir minha cerimônia.

O tom elegíaco e passional é proporcional ao tema, corolário do livro e de uma poética. E aqui é introduzido um novo leitmotiv: o tema igualmente bíblico da mulher de Loth. Pois senão, de onde surgiram essas referências ao sal como elemento estéril e punitivo? Ao ser convocada a deixar Sodoma, cidade da devassidão, sem olhar para trás, ainda assim a mulher de Loth não pôde conter-se e foi transformada em uma estátua de sal. O mesmo mitema de Orfeu é chancelado aqui para o poeta, mas em outra chave. Impelido a sair do Paraíso como a mulher o fora de abandonar Sodoma, o poeta (Caim) se recusa, deliberadamente, a fazê-lo. Ao contrário, afronta o destino que se lhe pesa. Quer a sua cidade, a sua estirpe, a sua vida de volta. Quer livrar-se da culpa eterna, na qual ele, tal como Caim, se vira marcado por “sete gerações”, também tal como a referência bíblica. Os deuses que vigiam o seu poema tornarão a cumprir a cerimônia. Esta é a cerimônia do exílio. E este, a essência da radicação última do poeta e da poesia no mundo.
Abraçado às estátuas e à cidadela, ou seja, às edificações que a maldição o levou a executar. E depois, a amar. Os ingênuos chamam enfaticamente esses signos de “cultura”. Para o poeta, eles são o seu destino, o seu alimento e a sua fatalidade. Sabe que estabeleceu um compromisso com o mal para escrever cada um de seus versos e para erguer cada um dos tijolos de sua cidade. Mas depois, aprendeu a amá-los, como ama a poesia, que é a inscrição de sua expulsão e de seu irremediável destino. Em seu fracasso, sente-se no mais íntimo de si mesmo. Pois a poesia é pharmakon, remédio e veneno, mysterium tremendum e mysterium fascinans, como reza toda a rigorosa aproximação com o sagrado, que une em si o fasto e o nefasto, a experiência do puro e do impuro, em proporções iguais.
Ao fim e ao cabo, decifro a Esfinge. Nesse umbral, vejo Alfredo Fressia, bifronte. Diz-nos que o passado é irremediável e o futuro não existe. O que você nos pede, não é o alívio do arrependimento, nem a suspensão da miséria original que nos constitui, a mim, a todos nós e a você, Fressia. Pois ela é o barro fundamental do que somos. O que você pede é que a sua cerimônia nunca deixe de se cumprir. E que sempre saibamos que nossa vida não começou no dia de nosso nascimento, mas muito antes, em uma caminhada a leste do Éden, no primeiro eclipse ou no lado escuro das estrelas. E pode acreditar que assim será, em sua poesia, in saeculum saeculorum, indefinidamente. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

NELSON RODRIGUES E O AVESSO DA VIRTUDE


Impressionante como Nelson Rodrigues compreendeu o desejo humano. Que seus personagens sejam obcecados pelo pecado e pela transgressão, é um fato. Parecem seguir assim toda uma tradição sobre o desejo, de Sade a Freud e de Bataille a Lacan. Eles nos revelam à contraluz uma das fontes desse enigma humano: o desejo se move no limiar entre a luz e a autoaniquilação. O desejo só se realiza plenamente na ambivalência entre a lei e a exceção. Para ele, a lei não é um imperativo, mas justamente algo a ser superado: nisso reside a dinâmica do desejo, que os personagens de Nelson exploram à exaustão e à patologia, perdidos num lodaçal que os leva de pecado a pecado. O homem é um animal infrator.
Mas há algo de mais grave ainda no mundo de Nelson: nele a própria virtude se apresenta como uma patologia. Há nele uma infectologia da lei. Uma perversidade na ordem. Uma demência compulsiva pela caridade. Os seus personagens são tarados pela fidelidade. Poluídos pela pureza. Infectados pelo vírus sem cura da honestidade. Destruídos pela esperança. Manchados pela bondade. Arruinados por serem sinceros. Corroídos pela graça. E devastados justamente pelo mais nobre e humanizante de todos os afetos: o amor.
Essa cadeia de paradoxos é a fonte da grandeza de Nelson. Se ele tivesse se detido em uma análise da transgressão da lei, já teria fornecido uma grande contribuição à anatomia da alma humana. Mas ele foi além: virou do avesso o próprio mecanismo da bondade e da virtude, trazendo à luz as suas vísceras apodrecidas. Por isso, ao contrário do que quereriam as boas almas, virgens em seu casto culto do mal e absolutamente devassas em sua fé cega na bondade, o avesso do crime não é a virtude. A suspensão do mal não é a sua contrapartida. É apenas uma maneira ainda mais maliciosa de mascarar a substância maligna de que somos feitos. Pensem nisso, humanistas. 

domingo, 15 de janeiro de 2012

NIILISMO A QUEIMA-ROUPA

Acabei de ver na internet um texto de um professor cotejando Aristóteles com Michel Teló. A classe média fica horrorizada com o funk carioca, mas acha normal que um professor crie um esgoto teórico que me autorize cotejar Aristóteles e Michel Teló. E aí o cara da perifa, que fica 3 horas no busão, pra trabalhar 12 e ganhar um salário mínimo, quando faz seu churras de domingo, tem que ter bom gosto. Mas o professorzinho de classe média tem o direito de criar uma enciclopédia teórica pra legitimar sua estupidez sem se comprometer. Continuará gozando da mesma autoridade, pois ela é fornecida por eles próprios, pedagogos e classe média, que se autolegitimam a si mesmos. E depois vocês ainda me perguntam o que é niilismo? Francamente, se isso não é niilismo, não sei o que possa ser.

NOVOS CURSOS

Seguem aqui alguns links com programações das oficinas.

Uma oficina de férias na Casa do Saber:

http://www.casadosaber.com.br/curso.php?cid=2922

E o Núcleo de Escrita Criativa que estou desenvolvendo na Fundação Klabin, agora com 4 meses de duração, de manhã e de noite:

http://projetocultura.com.br/linksinternos/2012_Nucleo-Escrita-Criativa_08-Mar-Tarde.html

http://projetocultura.com.br/linksinternos/2012_Nucleo-Escrita-Criativa_08-Mar-Noite.html

Na Klabin, haverá também um intensivo em janeiro/fevereiro:

http://projetocultura.com.br/linksinternos/2012_Oficina_Escrita_Instensivo_30-Jan.html

É PRECISO DUVIDAR DE TUDO

Se não existe crítica sem alguma margem de dúvida, tampouco existe dúvida sem uma margem de crença. A crença é tão ou mais importante do que o ato de duvidar pra se chegar a qualquer conhecimento aproximado da realidade. Como diria o grande Vilém Flusser, em A Dúvida, se a dúvida metódica se transformasse em dúvida existencial, ou seja, em dúvida da dúvida, só nos restaria uma saída: a morte. E este seria um suicídio filosófico. Ou seja: uma insípida autoaniquilação. Essa é a crítica mais comum ao ceticismo de tipo pirrônico.

Porém, não acredito que a dúvida, diferente da crença, seja uma exceção no processo cognitivo. Acho que duvidamos como respiramos. Ortega diz algo nesse sentido com seu conceito de "razão vital". Se a crítica da crítica oferece problemas epistemológicos, a fé na dúvida também os oferece, talvez em quantidades ainda maiores. Todos aqueles que criam botes salva-vidas e mecanismos de neutralização, nos quais ao criticar não se vejam também eles no objeto criticado, agem ou por ingenuidade teórica ou por malícia estratégia. Querem se mostrar ou menos conscientes do que poderiam ser ou mais lúcidos do que realmente são. Qualquer conhecimento da realidade só existe de modo encarnado. Nunca como conceito abstrativo. Nesse sentido, toda a realidade e tudo o que existe, de pior e de melhor, não passa de um espelho. É apenas isso o que somos: um espelho. E não por acaso só a partir desse momento começa de fato a especulação.

sábado, 14 de janeiro de 2012

NÓS E O BBB

Só uma coisa me dá mais preguiça do que gente inteligente: gente inteligente falando mal da cultura de massas. E a enxurrada de lugares-comuns da imprensa nos últimos dias atingiu o nível mais gritante da Escala Richter da estupidez. É nessas horas que eu descubro algo fundamental. Só há uma coisa mais baixa do que o BBB: os críticos do BBB. Querem negar que eles também fazem parte do reality show. Inútil. Por quê? Pelo simples motivo de que no atual estágio de capitalismo avançado, de globalização e de hipermodernidade, tudo faz parte do BBB. Tudo é reality show no Palácio de Cristal. Por mais que alguns perfeitos cínicos e outros tantos falsos ilustrados queiram nos fazer crer que eles são imunes a tais baixezas. Compreensível. Desde o Paleolítico a hipocrisia é uma das melhores estratégias de sobrevivência da espécie. Porém, mais cedo ou mais tarde, toda Bela Adormecida acaba tendo que despertar.

A lógica desse tipo de crítica chega a ser infantil de tão previsível. Como se sabe, as crianças adoram a repetição. A repetição é o Paraíso da infância. Um idiota nada mais é do que uma criança ao quadrado. Ou seja, uma criança que vive se repetindo duplamente, pois repete a infância e se repete a si mesma. Repetição da repetição. É basicamente essa a impressão que tenho quando ouço gente inteligente criticar a sociedade de massas. Claro que é bom falarmos do povo, não é? A coisa que os inteligentes mais gostam de fazer é emitir opinião sobre o povo, por mais que, como dizia Nelson Rodrigues, nunca tenham visto ao vivo um torcedor do Flamengo. Não é à toa que o intelectual, como categoria histórica, nasceu junto com a publicidade. Do púlpito aos palanques, intelectual é aquele tipo de animal que adora falar em nome de sua espécie. Curioso animal, este. Um animal que fala em nome do povo. Mas desde que o povo aja conforme os inteligentes e intelectuais acham que ele deve agir. E seja como os inteligentes querem que sele seja.

Ah, sim. A cultura deveria ser dirigida por um programa do Estado. Claro. Vamos criar leis que obriguem todos os botecos e puteiros do Brasil a só tocar Villa-Lobos e Pixinguinha. E quem vai definir o que é cultura elevada? No meu projeto de cultura elevada, por exemplo, 90% da história da literatura brasileira não entraria nos currículos escolares. Muito menos violeiros, como Chico Buarque e Caetano Veloso, ícones de todos os inteligentes. Você aceita assiná-lo? Ou vou ter que apertar o gatilho? Nada mais imbecil do que uma cultura feita de atos institucionais. Bom gosto? Goebbels era apreciador de música clássica e Hitler teve ninguém mais do que Leni Riefenstahl dirigindo a propaganda cinematográfica do Reich. A gravidade da situação de hoje se deve ao fato de as relações humanas estarem absolutamente estropiadas, e não ao fato de não se ler Montaigne. Não há Shakespeare que cure isso. Não há Mozart para esse câncer. Não há Chopin para essa metástase. Não há Homero para esse esgoto.

O que quer então essa maldita classe média que reivindica bom gosto? Nossa, como é terrível o BBB e o funk carioca, não é? Pois o Facebook não passa de um BBB pra pseudointelectuais. Com o agravante de reter informações privadas com uma eficácia que a KGB, o Wikileaks ou a CIA jamais sonharam. Vamos emancipar as massas? Sim. Mas desde que elas sejam dirigidas por nós, que somos inteligentes e sabemos o que é elas não sabem sobre si mesmas. Por isso, sabemos também o que é bom para elas. Parafraseando Bernard Shaw, toda revolução não é nada mais do que uma maneira de transferir a tirania para outros donos.

Pois bem. A cultura de massa não é nada mais do que o reverso de todo o discurso de emancipação popular defendido por todos os progressistas demagogos de todos os quadrantes. Valores? O erro começa ao se usar a palavra no plural. Não existem valores. Tampouco há duas nem mil fontes de valor. Mas apenas uma. O valor é um só. Porque a moral é uma só. Transcendê-la, como fez Nietzsche, não é negar o bem ou o mal, mas simples e sumariamente negar qualquer viabilidade para ambos. Isso quer dizer que se você quer estabelecer dois pesos e duas medidas, pregando a distinção entre uma emancipação boa e uma ruim, você estará apenas hipocritamente moralizando a amoralidade, ou seja, quer dizer que você não passa de um fascista do bem.

Quem fica garganteando valores contra um eventual desvalor da sociedade de consumo, não compreendeu ou finge não compreender que a dinâmica do mundo, há pelo menos dois séculos, não produz mais valores. Produz ações. E uma ação que conduz a outra ação não é nada mais do que a nadificação de todo e qualquer valor. Quem não compreendeu ou finge não compreender isso, não sabe o que é niilismo. Quem não atravessou o niilismo, não entende absolutamente nada do que está acontecendo. Quem quiser continuar criticando as massas e as tecnologias e a defender valores, procure algum grotão sobre a face da Terra onde não exista energia elétrica e fique plantando batatas e fazendo tricô. Agora, com licença que eu vou voltar pro meu Bach. E não encham o meu saco.