Além do Espelho, o Corpo, o que é Perene: A Poesia de Maiara Gouveia
Abandono, finitude, queda, derelicção, carência. Muitos são os termos que posso usar para definir esse estado irremediável de todos os seres. Contudo, embora em sua acepção essas palavras pareçam sinalizar uma experiência negativa, são, ao contrário, a fonte de toda vida religiosa. Sabendo-me finito, recortado do fundo infinito que me torna real, sou em muitos momentos, geralmente nos mais comovidos, surpreendido por aquele “estado de criatura” de que fala Schleiemacher, no qual, ao ver minha face no espelho de suas águas provisórias, a minha ruína transforma-se em beleza. Por ser frágil, é sublime; efêmera, é transcendente.
O espelho não é apenas um duplo do real, motivo clássico do simulacro e da falsidade, como diz a tradição filosófica. Mais que isso, ele apresenta meus contornos mundanos, recorta-me contra o infinito que sopra desde a origem, este infinito que me atravessa e me indistingue. Há, portanto, uma relação direta entre beleza e finitude, relação essencial, pode-se dizer. Sinto a perda, a queda, e é justamente essa condição que me leva a conceber a posse futura de uma plenitude. Perdido desde a origem dos tempos e desde a nossa origem no tempo, é justamente por isso que o paraíso existe, pois o finito só existe porque existe o infinito. Eu não seria nada sem ele, sem a miragem de sua reversibilidade, sem a sua redenção. Nada seria se eu não me dessedentasse nessas águas, pois “águas são deserto” e é da essência da água o seu reverso. Plenificação e exílio, espelhos do céu.
Nesse contexto, a poesia talvez seja uma das maneiras de mergulharmos na torrente dessas águas sem sermos destruídos. Composição de finito e infinito, de moldura e sopro, de barro e espírito, da vida e do que é inapreensível: o desenho da face, o esculpir das linhas, os contornos que conferem legibilidade à pulsação anônima do mundo submerso. Tudo isso me sinaliza que finitude e esplendor se completam. São unos em sua nascente, tal como, no duplo domínio, está para a vida, a morte, início de um “nascimento supremo”, como diria Rilke.
A poesia de Maiara Gouveia é tem consciência desses motivos e desse destino, e não é por acaso que nos coloca “alheios a tudo que não seja a queda”. Mostra-nos assim essa sede que não se sacia, a plenitude do corpo, inumerável em seu desejo que não se extingue, e que, por isso mesmo, torna a vida possível. E não é outra a música de câmara que se trama neste Pleno deserto, campo de sonho e revelação, de paixão e harmonia, onde Deus está em sono profundo e por isso as coisas todas parecem despertar com nova luz de seu torpor.
Tessitura de música e imagens e, ao mesmo tempo, negação do esteticismo, Pleno deserto devolve a linguagem à sua foz e à sua nascente: o corpo. Embora o trabalho formal venha sublinhado em alguns belíssimos poemas de cunho imagético, como “Poliedro”, “Alba” e “Onírico”, entre outros, sua poética se enraíza no mito fundador, em um domínio telúrico, anterior às palavras, e que confere sentido ao mundo. Porque primeiro houve o toque, uma extensão da vista; houve o movimento, a percepção de tempo, espaço. Muito antes de ser dito, o mundo foi tocado, apreendido; captado, antes de ser inteligido em estruturas.
Por mais que estejamos diante de poemas que muitas vezes aspiram se bastar em sua própria enunciação, há na poesia de Maiara aquele saudável horror à literatura, o medo de se ver “confinada em uma sala de poetas”. Fuga sábia, esta, antídoto contra uma das maiores experiências contemporâneas do tédio. Os poemas, desse modo, sempre refluem para alguns núcleos de sentido que escapam ao campo estritamente literário: o sexo, a morte, o sagrado, a inocência ou outra zona que ilumina a linguagem, sem circunscrevê-la. O antigo tema grego do amor como união de pobreza (penia) e recurso (poros) é aqui retomado, pois cabe a toda poesia erótica e amorosa fazer da carência volúpia, da volúpia, drama, do drama, linguagem, e, desta, redenção. Assim, o seu mergulho é especular: perde-se a dimensão da consciência de si, morre-se para o mundo das formas, mas recupera-se este mundo com a intervenção da poesia, espelho que nos devolve a singularidade. O processo que engendra a criação é o mesmo daquele deus que, do “lado de fora”, por ventura nos contemplasse; perceberia a eterna transformação de “fios de cores, de formas, de seres”, um a um desenlaçados, “a pele areia, areia nuvem, nuvem deserto, deserto rasgo”.
Reencenando o tema gnóstico do estrangeiro, a postura assumida pela poeta em Pleno deserto é a do desterro. Em sua primeira acepção, a do deserto-exílio, o olhar é oblíquo, de fora, e é exatamente por isso que se gera a tensão, o atrito existencial, pois o ser habita o mundo, aspira fundir-se a ele, mas retorna sempre sobre si mesmo, à opacidade intransponível de sua própria impossibilidade. Por isso, é central a ênfase dada ao amor, em todos os seus matizes, desde o carnal e erótico ao passional e subjetivo. Pois ele plenifica a falta e preenche todos os poros de areia do corpo com a assunção do desejo e, assim, com a transformação da falta em potência. Da perda ao estado de queda, da totalidade que me é vedada à redenção por meio do amor, assumido em sua fratura primeira: esse parece ser o itinerário harmônico, o leitmotiv do sol crescente destes poemas. E, talvez em virtude da propriedade com que o tema é encarnado, Pleno deserto é uma das melhores expressões da temática erótico-amorosa na poesia brasileira contemporânea.
A dupla articulação dessa poética da finitude, do amor e da morte é clivada por uma questão de ênfase. Ora esta recai sobre o próprio jogo erótico-amoroso de presença e ausência, como se dá nos poemas mais marcadamente eróticos: “O Cimo”, “Embebida”, “Fetiches”, “Da arte de seduzir”, “Águas são deserto”, “Xeque-mate” e o admirável “Sob o frêmito”, com ritmo e imagética impecáveis. Ora se revela como ruptura e violência, relativas à vivência do amor como força trágica e ao próprio gozo como região limítrofe entre vida e morte, entre o descontínuo e o contínuo. São poemas que circulam por um território que demarca a experiência entre o sagrado e o profano, expressa no ótimo “A outra face” e também em poemas de cunho mais abertamente pornográfico (“Marcial”, “Princípio” e “Litiokó”). Outros poemas (“Pedinte” e “Até que se apague a centelha da noite”), belíssimos, trazem uma carga de martírio e prazer, de nostalgia e afirmação. Além disso, há aqueles de um forte acento lírico e passional, notadamente “Sacio você”, acento cuja realização mais sublime pode ser encontrada em alguns poemas como “Himeneu” e “Migrar”, que fecha o livro e é, provavelmente, um dos seus momentos mais altos.
Contudo, e a despeito das variações e matizes, temos sempre a síntese poética de amor e morte. Porque, se “a morte dura mais do que a canção”, é sinal de que ela é maior que a própria poesia, porque “sei que morro enquanto celebro o amor”. Morte e canto, uníssonos. Mais precisamente, “o amor se desprende das dobras do corpo e da morte” e é tudo o que “falta e sobeja”. A reconciliação de falta e excesso, do que se celebra e se extingue, só é possível quando se conquista a finitude, quando a poeta diz “não sou plena, mas me basto”. Esse bastar-se ocorre justamente quando se transforma “todo o desejo em saciedade”. Ou seja, resgatamo-nos além, na nossa entrega irrestrita, quando o indivíduo se aniquila e depois retorna incompleto à consciência de sua incompletude, antes inexistente. Em outras palavras, depois da cisão promovida pelo amor.
Apenas a ruptura nos faculta a noção de limite, o infinito doa-nos o finito, nosso maior bem. Somos vivos e contraditórios na ira de Deus, que fulmina justamente por ser “amor sem margens”. O amor que é desmesura, perda dos limites, pois “não há porto, amor, não há porto”. Sem ancoragem, em sua imersão ele promove o eclipse da consciência, a passagem do descontínuo ao contínuo, como diria Bataille, e a subseqüente ruptura, ao percebermos que essa fusão com o outro e com o mundo é impossível, embora ela seja uma das fontes do erotismo e do sagrado. Os animais “bebem o consolo de sua imagem sob as águas” e “anseiam pelo enigma que pulsa na fome e na sede” ou “intuem a curva” pela qual “todas as formas se equilibram” para “não cair no esquecimento”. Só os animais permanecem fiéis à origem, nesse sentido. Pulsam dentro da eternidade, únicos seres livres, plenamente livres do mundo. O lobo “rasga a carne da lebre”, a raposa “vê o sagrado na presa consumida” ao passo que as cobras o “pressentem ao trocar de pele”. Não há profanação nesse reino, pois tudo é contínuo, não há cisão. Já o corpo das mulheres é, paradoxalmente, “bendito”, porque “tudo profana”, em seu louvor aos amantes. Pode-se dizer: em seu amor ostentado, vivido humanamente, como perda. Para os animais, todo o mundo é transparência. Assim se livram da morte, instaurada pela consciência, pois participam da cadeia contínua do ser.
Estamos todos conectados à dor ancestral, rezada e repisada em andamento bíblico no belíssimo “Presságios”, um dos melhores poemas do livro. O homem seria então inferior às forças da natureza? Estaria aquém da realidade efetiva das coisas? Não, pelo contrário. A noção da morte lhe confere o salto que o delimita, às vezes o aprisiona, mas sempre o lança a outras modalidades de ser, ao possibilitar-lhe a indagação de si próprio. Aqui a falta é sinal de mais, pois redimida após a tentativa da entrega absoluta, reabsorvida pela beleza precária que traz em si os indícios de sua própria impossibilidade. A marca da queda. Ou seja, o poema. Todo poema é um vestígio do pecado original, o que vem expresso em Pleno deserto em menor ou maior grau, seja em termos literais e pictóricos, como a “helicônia caindo da janela” (“Queda”), seja em uma chave mais física e metafísica, como em “Enquanto a manhã não ofusca meus olhos” e nos dois belíssimos “Noite aberta” e “Cacos”. É graças a esta condição que é possível ser, e graças à minha miséria que posso conceber o esplendor e vivê-lo como força afirmativa, não como o refluxo de uma frustração futura.
Minha “cicatriz” nasce da necessidade constante de “verter amor na sede”. Bebo dessa taça, mas não me sacio, porque a “sede transborda de alegria”. Na fraqueza que é força, plenifico o deserto que me habita e que me faz perene mesmo depois da morte. Eis a forma sublime de ressurreição. Retenho o mundo que me cerca e me enreda em suas tramas; sei que devo morrer para que o outro molde a minha própria face e para que o Outro me eternize. É esse o destino de tudo o que há. E é algo que só se desvela em segredo. Por isso, o tema do encantamento, associado ao silêncio, é central na poesia de Maiara. Silêncio do corpo, aquém-linguagem, a partir do qual analiso o torpor, o estado de latência das coisas enfim despertas, oferecidas ao meu “incurioso” estado, como disse Drummond, “quando calado sorvo todo encantamento”.
De fato, há em Pleno deserto mais amor passivo que amor ativo, como diziam os medievais. Prepondera aqui o intelecto paciente, que deixa imprimir em si as formas do mundo, não aquele que o transforma, o que, em linhas gerais e genéricas, pode sinalizar a voz feminina que o assina. Porém, mais que uma simples definição, este talvez seja o estado de abertura necessário para que o poeta seja um medium e, por meio dele, falem as coisas, os rostos, as sensações, o próprio ser amado, acolhido em agitação ou em repouso, na trepidação dos versos. Não possuímos a nomenclatura das coisas; não somos demiurgos, pois a queda já se consumou, e uma vez caídos, podemos ser anjos, mas de argila e compleição terrena; não podemos nomear o mundo, tampouco criar mundos, como queriam os românticos, em seu afã prometeico de libertar-nos da noite eterna, pois “já não somos deuses”.
Por isso a poesia pertence aos domínios de Nanã. E não por acaso Pleno deserto se abre com o poema “Cuia dos milagres”. Deusa africana correspondente ao arquétipo da suméria Inana, com a qual guarda uma misteriosa correspondência fonética, da semítico-acadiana Ishtar, na Babilônia, de Ísis, no Egito, de Kali, na Índia, e associada, direta ou indiretamente, à longa linhagem greco-latina de Astarte, Hécate, Deméter, Ceres e Cibele. Protetora dos umbrais da vida e da morte, da encarnação e da desencarnação, mãe-terra primordial dos grãos e dos mortos, entidade da chuva, dos pântanos e das águas da origem. Em Pleno deserto, a poeta aparece “no poço de Nanã, o rosto distorcido”, e contempla a “matéria turva n’água turva, nas anáguas de Nanã”. Perde um longo tempo, pois confessa que “ninguém me resgatou”.
A razão mítica explica o que seria de outra forma inexplicável, resolve os paradoxos em beleza, transforma as contradições em poesia. Não ser resgatada por Nanã é o imperativo dessa mesma origem que me é vedada, o drama de minha incapacidade de ser, em vida, plenamente reabsorvido à dimensão pré-formal que me origina. Senhora da morte, ela me espelha, ao mesmo tempo em que me afiança a fé em sua inacessibilidade. Fé, lucidez, cisão. Em que lugar enfim encontrar repouso? Quando finalmente habitaremos “a beleza arredia das águas antigas”? Ao contrário, como lemos alhures, “águas são deserto” e, por isso, “não podem refletir”. Ou, em outro momento, “não há como chegar ao mais fundo do poço”, neste poço “onde o medo e a morte também cantam”.
As águas são turvas, opacas, letais, em outras palavras, inacessíveis à consciência. Mas as anáguas de Nanã destilam a beleza que essa morte me apresenta. O retorno à minha face, à minha precariedade, se dá quando me espelho na morte e, por um lapso, me é concedida a hipótese da fusão, do retorno ao ventre, ao estado edênico incriado. O amor à morte, entendido como amor supremo, é revertido em suprema afirmação, pois afiança aos seres a sua própria condição mundana, vital, limitada, circunscrita.
E aqui retornamos ao tema central de Pleno deserto: o corpo e a sua superação. Além da face, o mundo informe. O amor, desejo de habitá-lo. Impossibilidade, retorno líquido. A cristalização do olhar, espelho que devolve minha fisionomia e me singulariza, passagem do caos ao cosmo e, deste, à perenidade. Só posso acessar essa região informe por meio do corpo. Mais que isso: quando recupero a vida além da hipótese de sua extinção, pois “somos o Corpo e outra vez o corpo”. Marcados inelutavelmente pela queda, que deixou a “coroa pendurada no deserto” e a “paixão pelo homem esmaecida” em um passado distante, no “tempo arenoso das origens”, a vida corpórea tenta extrair de sua precariedade a capacidade de habitar o mundo e de superá-lo. E tal superação só ocorre como mergulho primordial na fonte das representações, ou seja, quando o eu parcial que habita o mundo deixa vazar a voz do eu transcendente que, no caso, é o princípio da vida em suas formas mais elementares e também a própria morte, como força desagregadora.
A arkhé não pertence apenas ao mundo das idéias, mas é intramundana. A transformação das coisas é transubstancial, é a metamorfose de formas corpóreas em incorpóreas e vice-versa, sem se descartar a forma anterior. Por isso diz-se: “Não perde a semente esta flor que ora impera”, e, mais adiante, “a semente eterna como aquela que a gerou”. Mas, como lemos em “A marca das origens”, o corpo é incapaz de subsistir por si só: “Não sou só o corpo nem só o corpo me habita”, e assim deságuo “além do corpo”, na “alma das partículas”. Isso se dá porque o “sopro de gelo na espinha é a morte que canta” e “não se retém o amor na concha das mãos”.
Duas formas de aniquilamento percorrem Pleno deserto: o amor como superação da finitude e a morte como superação da consciência. Posto entre parêntesis, o eu, no entanto, transcende a matéria. E “num átimo, os diques arrebentam”. Esse spiritus que sopra no corpo, lhe infunde graça e possibilita a existência do canto, a morte em sua acepção mais abrangente, é a pura continuidade dessa região informe, subterrânea, plena de significados, de formas e potências a serem atualizadas. Amor e morte, duas vias do mesmo princípio necessário de dissolução, para que haja arte. Se a “minha morte inunda o abismo de um sonho que não acaba”, ela mesma é eterna, consubstancial ao sonho, matriz de toda efabulação.
No fundo, a própria morte é um fantasma que se oferece a todas as criaturas, seja com uma luz mais aguda e intensa à nossa consciência, seja como mera fatalidade para as demais formas de vida. Ela é o maior motivo da cena dramática humana sobre a terra. Porém, sua própria essência é misteriosa, cabendo-nos crer nela como um último recurso, como opção frustrada à impossibilidade de descrer, o que não constitui de fato uma fé. Como diria Bataille, é preciso ser Deus para morrer. Talvez, do fundo sem fundo e do opaco mais opaco do mundo viscoso, brote uma raiz de luz, cuja essência e finalidade sejam transfigurar todas as coisas que existem em novas formas, plasmar o não-ser em novas formas de ser, o que reduziria a mortalidade a uma mera soma das manifestações provisórias de todas as vidas em sua superfície. Ou seja, a nada.
Entretanto, o mistério urge e nos convoca aos teatros da paixão. E do contato com essa raiz, com essa fonte de ser e não-ser, poço de Nanã, nasce a poesia e o seu atrito. Dela todos nós procedemos, mas a ela paradoxalmente nos é vedado retornar. Contemplo as suas anáguas, a sua beleza, e é no espelho dessas águas que me descubro, pleno e imperfeito, deserto de puro esplendor, vazio preenchido pelo sentido vital, não mais ideal, que agora me habita. Depois da queda, a redenção pela morte; depois da redenção, a consciência da mortalidade. A primeira queda, no mundo; a segunda queda, para a vida finita e, por isso, plena, da consciência, da linguagem. Essa é a marca afirmativa de Pleno deserto, poesia que extrai luz da luz, e vida da morte, sem nunca deixar de se fascinar por ela ou de nela mergulhar. Aqui, agora e além.