LÂMINAS DE OURO
Oferendas tumulares
Creta e Tessália
Século V a II a.C.
Tradução: Rodrigo Petronio
I
Este dito da Memória é sagrado:
quando, porventura, você morrer,
acharás à esquerda da morada do Hades uma fonte,
e erguendo-se ao lado dela um branco cipreste.
Desta fonte não te aproximes.
Depois encontrarás outra, a do Lago da Memória,
fresca água que segue fluindo, e há sentinelas diante dela.
Diz: “Eu sou criatura da Terra e do Céu estrelado;
mas minha raça é apenas do Céu. Isso vós sabeis.
Porém me consumo de sede e pereço. Dai-me rapidamente
a fria água que flui do Lago da Memória”.
E eles mesmos te darão de beber da fonte sagrada.
E depois entre os demais heróis terás o domínio.
II
Consumo-me de sede e pereço. Mas dá-me de beber
da fonte sempre fluente da direita, onde está o cipreste.
Quem és tu?
De onde és?[1] − Eu sou o filho da Terra e do Céu estrelado.
III
Mas tão logo o espírito deixou a luz do sol,
vê à direita até onde pode ir, sendo em tudo muito cauteloso.
Salve, tu que sofreste o sofrimento. Isto tu nunca sofreste antes.
Tu te converteste de homem em deus[2].
Um cabrito és, mergulhado no leite.
Salve, salve tu, que viajas pelo caminho da direita,
por sagradas pradarias e pequenos bosques de Perséfone.
IV
Venho dentre os puros, ó pura Rainha dos subterrâneos[3],
e Eucles[4] e Eubúleo[5] e outros deuses e dáimons:
também confesso que sou da vossa estirpe bem-aventurada.
Paguei a pena por feitos ímpios,
ou porque a Moira[6] me pôs sob os deuses imortais
ou o Fulgurante como o raio das estrelas arrojado.
Escapei do doloroso e triste círculo[7].
Tomei a desejada coroa com pés velozes.
Fundi-me sob o seio da Soberana, Rainha do Hades.
E agora venho como suplicante à sagrada Perséfone,
para que por sua graça me envie às sedes dos Santificados.
− Feliz e bem-aventurado, tu serás deus em vez de mortal.
Cabrito, mergulhado no leite.
V
Ela vem dentre os puros, ó pura Rainha dos subterrâneos,
e Eucles e Eubúleo, filho de Zeus. “Recebe aqui o dom
da Memória, tão celebrado entre os homens”.
Cecília Secundina, vem, pela lei levada a ser divina.
[1] Possível remissão à estrutura de perguntas do Livro dos Mortos egípcio.
[2] Quase literalmente, a mesma frase é dita por Empédocles de Agrigento.
[3] Rainha dos subterrâneos: Perséfone.
[4] Eucles: Hades.
[5] Ebuleo: Dioniso.
[6] Moira: Destino.
[7] Literalmente: saí da roda das encarnações. Ou: libertei-me.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
RODRIGO PETRONIO
Rodrigo Petronio nasceu em 1975, em São Paulo. É editor, escritor e professor. Formado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP. Professor do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Literatura (AIL), professor-coordenador do Centro de Estudos Cavalo Azul, fundado pela poeta Dora Ferreira da Silva, e coordenador de grupos de leitura do Instituto Fernand Braudel. Trabalha no mercado editorial há mais de dez anos e colabora para diversos veículos da imprensa. Recebeu prêmios nacionais e internacionais nas categorias poesia, prosa de ficção e ensaio. Tem poemas, contos e ensaios publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Participou de encontros de escritores em instituições brasileiras e em Portugal. É autor dos livros História Natural (poemas, 2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e Assinatura do Sol (poemas, 2005), este último publicado em Portugal, e organizou o livro Animal Olhar (Escrituras, 2005), primeira antologia do poeta português António Ramos Rosa publicada no Brasil. É membro do conselho editorial da revista de filosofia, cultura e literatura Nova Águia (Lisboa). Lançou, pela editora A Girafa, o livro de poemas Pedra de Luz, finalista do Prêmio Jabuti 2006. Foi congratulado com o Prêmio Nacional ALB/Braskem de 2007, com a obra Venho de um País Selvagem, publicada em abril de 2009 pela Topbooks.
A FORMAÇÃO E A DEFORMAÇÃO DOS LEITORES
Situação
Mesmo estando dentro da premissa do debate, concordo que este título pode soar um pouco pesado ou mesmo um tanto obtuso. Vão me refutar dizendo que a leitura, essa atividade nobre por excelência e tão enaltecida nos dias de hoje, sobretudo por aqueles que não a praticam, nunca pode ter uma ação deformadora; que deformação não é conceito, mas um efeito que dá sobre a matéria por uma relação de força e uma desigualdade de resistências; que precisaríamos de critérios claros para discernir o que seriam efeitos nocivos ou benéficos que ideias, obras ou autores determinados exerceriam sobre determinados leitores.
Mas na verdade essas objeções são circunstanciais, e não conseguem apreender o cerne do que podemos considerar como princípios-chave de alguns desdobramentos que essa interação suscita. Tampouco é necessária uma sociologia da leitora ou do público e da circulação das obras para conseguirmos pensar esse tema com certa objetividade. Muitas vezes, uma pesquisa sociológica o encobriria com mais névoas ainda do que desvendaria algumas de suas linhas de força.
Para começar, partamos da Literatura, mas sem defini-la em gêneros ou discursos. Tomemo-la no sentido mais abrangente possível, desde o seu aspecto ficcional e poético até as suas produções ensaísticas, filosóficas, históricas, entre outras. Num rápido lançar de olhos, percebemos que é impossível pensar nessa categoria chamada Literatura como uma massa de dados homogêneos, passível de ser assimilado tranquilamente por uma mente em estado de passividade; o primeiro traço que nos salta, é o aspecto heteróclito, diversificado, em alguns momentos até caótico, da Literatura. Pois bem: essa espécie de celeiro infinito de formas, chamado Literatura, esse tecido de tramas infinitas, como a descreveu Borges, só tem um valor positivo em si mesma quando se direciona a um Leitor genérico ou ao caráter genérico do Espírito, que contempla e armazena as produções humanas. À medida que afunilamos cada uma das obras e autores e os colocamos em relação com leitores concretos, já diminuímos, nesse simples movimento, muito da abrangência desse grande manancial. Os motivos são simples: ainda que vivamos muitas vidas dedicadas apenas à leitura, não esgotaríamos sequer uma pequena parte desse repositório.
Mais um giro, mais uma contrição: pensamos no interesse vital que cada leitor possa ter em cada um dos prismas dessa abstração, desse personagem que chamamos de Literatura. A espiral dá mais uma volta, e eis que uma nova ação centrípeta varre de nosso horizonte uma parte considerável das letras. Mais um movimento, e chegamos à leitura em seu teor crítico, ou seja, aquela que não só consome as obras, mas que as hierarquiza e as articula, discernindo o que é ou não de interesse vital para determinadas épocas ou valores. Em seguida, uma nova volta do parafuso: os critérios editoriais e as condições de edição de cada país e de cada língua. Por fim, as contingências de cada leitor, suas possibilidades e idiossincrasias, suas vontades e suas renúncias, sua preguiça e seu empenho.
Nesse movimento espiralado, o castelo de início foi pulverizado e praticamente se resumiu a umas tantas casas e cabanas habitadas. No interior das mesmas, os leitores, sem maiúsculas, precários, apenas ávidos às vezes por um pouco de sentido à falta sentido generalizada de muitas coisas deste mundo. Argumentar em benefício das grandes bibliotecas, com montanhas de livros, é esquecer a dificuldade física que a maior parte de leitores do mundo tem de acessá-las; defender a transposição dessas bibliotecas para a internet, o que felizmente já está sendo feito, é propor um paliativo ingênuo para os problemas de supressão das dificuldades de acesso linguístico a esse material babélico.
Pode-se agregar a isso certa ilegibilidade de traços, mais ou menos essenciais, das obras do passado; cada época parece estar ilhada em seus próprios valores, e a essa condição se soma o fato de o cronocentrismo ser uma das maiores doenças do século XX, que se prolonga e se aprofunda neste século que começa. Assim, podemos pensar que uma das funções da literatura é o diálogo com os mortos. Somos incapazes de compreender os autores do passado minimamente de acordo com o sentido que eles possam ecoar no presente, sem retirar a dignidade de sua condição de mortos, e, portanto, de seres inelutavelmente silenciosos. Apropriar-se de algo é a forma mais branda de matá-lo. A mais perversa forma de cultura é essa deliberação sobre os mortos que só visa os apetites e valores do presente, e nada mais. Essa atitude não só transforma o passado em uma sombra pálida do presente. Mais que isso: impede de preservar o futuro que os mortos nos mostraram e que não se realizou. E como diz muito bem Heiner Müller, tratando do teatro, esse diálogo não deve ser interrompido até que esses mesmos mortos nos desvelem o futuro que morreu com eles.
Isso para não falar dos diversos e matizados graus de analfabetismo, que nem computo aqui, para não destruir de vez qualquer idealização dessa bela atividade, a leitura. Nesse percurso, talvez não seja exagerado dizer que tenhamos mais perdas do que ganhos. E algo parece ficar visível, a despeito dos contornos mais ou menos enfáticos em determinados dados: a própria produção do conhecimento segue essas espirais precárias, esse ir e vir no escuro, titubeante, que é próprio do caminhar entre as obras do espírito. Nesse percurso, como diz Montaigne, quanto mais conhecemos, menos sabemos.
A cadeia de anéis
No Íon, diálogo de Platão que trata da poesia, Sócrates ironiza o rapsodo que dá nome ao diálogo. Idólatra de Homero, para Íon a poesia nasce de uma única fonte: Homero. Na sutil teia argumentativa, Sócrates o enreda, ao demonstrar que a poesia é dom divino, coisa dos deuses, e que Homero, mesmo sendo enorme poeta, é apenas um medium da atividade poética que o transcende. Compara esta à cadeia de anéis que se ligam a um Ímã, que seria o doador poético original. A poiesis percorreria então Homero, primeira cadeia de anéis, passaria pelo rapsodo Íon, seu intérprete, e depois desaguaria no público, cuja emoção poética faria a poesia refluir para as suas nascentes, ou seja, poderia produzir novos Homeros ou minimamente novos poetas e intérpretes de poesia, que estariam conectados uns aos outros por mediações, mas todos, em menor ou maior grau, conectados ao Ímã.
Essa estrutura platônica pode nos servir para pensar a leitura. Desconsidero aqui as relações que cada um estabelece com o Ímã, fonte obscura e misteriosa, de difícil acesso, de definição ainda mais enigmática. Atenho-me aqui à outra concepção, a dos escritores entendidos como anéis que se conectam uns aos outros. Cada escritor teria, nesse caso, em maior ou menor grau, a virtude de remeter a outros escritores. Esse movimento estaria virtualmente posto em suas obras, variando de acordo com as inúmeras gradações de qualidade, de gênero, de inserção, de proposta, de ambiente, de língua, de época, que, em sua totalidade, comporia aquela república mundial das letras, de que fala Pascale Casanova. Colocando a questão nesses termos, não estou reivindicando aqui um enrijecimento do cânone, embora, nesse movimento, ele esteja pressuposto. Entretanto, quando nos concentramos no cânone, nos concentramos na produção e não na recepção e na reprodução da Literatura. O que proponho é um percurso inverso. Ou seja: pensar de que modo e por quais expedientes os escritores funcionam como meios para que o leitor galgue patamares artísticos e intelectuais cada vez mais sutis, ou seja, algo diferente de pensar de que modo esses mesmos escritores se inserem em determinada tradição. Nesse sentido, há escritores capazes de produzir aberturas, frestas, fissuras no tecido da Literatura, remetendo o leitor para outros níveis da arte verbal. Teríamos assim, parafraseando a grande cadeia do ser de Arthur Lovejoy, uma grande cadeia da leitura. Podemos chamar esses escritores de escritores de passagem. Não são escritores medianos, pois isso pressuporia uma valoração de suas obras, o que não vem necessariamente ao caso, e nem todo escritor mediano é um escritor de passagem. E aqui as coisas se complicam um pouco.
Boa parte dos obstáculos que temos na relação com a leitura, e que é um dos ingredientes principais para a deformação dos leitores, de que trata esta minha fala, consiste nessa grande camada de escritores e obras que, sendo destinada a um público relativamente grande, não produz passagens. São obras e autores isolacionistas, opacos à sinalização de qualquer coisa que os transcenda; sua escrita nasce de uma espécie de mesquinha geração espontânea; não dialogam com outros autores e obras, e, mais que isso, quando o fazem, não deixam vestígios desse diálogo. Por isso, uma das características que distinguem um escritor de passagem é essa: ele remete a um público variado, tenta escrever para um púbico amplo, mas coloca-se explicitamente na perspectiva de um continuador de outros escritores ou obras. Há certo grau de transparência entre ele e outros escritores; essa remissão vem sinalizada na obra, em maior ou menor grau, independente do valor artístico dessa mesma obra.
Na definição das obras de passagem não está posta uma questão valorativa, mas sim uma capacidade de abertura e uma situação estratégica. O auto de passagem não é propriamente um autor que podemos dizer canônico, pois há outros que em termos artísticos foram além dele. Mas ele é preciso e muito precioso, à medida que se propõe e consegue falar para um número grande de leitores, na maioria das vezes muito maior do que o dos leitores concretos atingidos por um escritor clássico ou canônico. Uma das maiores dificuldades que o Brasil enfrenta na formação de um público leitor, e que chega a ser quase caracterizada como um problema de saúde pública, não é o fato de termos poucos escritores grandes, pensando-se em termos da história da literatura ocidental, mas sim a falta de escritores de passagem. Diria a sua ausência quase absoluta. Isso apenas mimetiza o abismo social que marca tão bem a sociedade brasileira, e está posto nas figuras dos rabugentos e parasitas sociais de Machado de Assis, aqueles sujeitos sempre cindidos entre a genialidade e a estupidez, sem nunca chegar à dimensão propriamente humana de um diálogo com seus semelhantes. Entre a grandiloquência canônica e a imbecilidade, parece não haver negociação possível; esse fosso é o melhor alimento para que doutores e analfabetos continuem tranquilos, proliferando-se em paz, em seus respectivos lugares.
Para falar de literatura brasileira, Jorge Amado e Vinicius de Moraes, por exemplo, são grandes autores de passagem. Não creio que possamos comparar Jorge Amado à complexidade humana de Guimarães Rosa ou de Machado; também não tem o prodígio da forma e da linguagem, como o encontramos em Osman Lins; não chega às dimensões da experiência do abismo interior que temos em Clarice Lispector, Lucio Cardoso ou Cornélio Penna; não chega à vertigem e à linguagem encarnada de Hilda Hilst; não tem a dimensão metafísica e negativa de um Murilo Rubião; tampouco chega à travessia mítica de um Ariano Suassuna. Malgrado as críticas bem-vindas ao modernismo paulista, o Macunaíma é uma obra que consegue compor uma rapsódia das matrizes culturais brasileiras, sob um ponto de vista de fábula, coisa que em Jorge Amado acaba sempre redundando em uma dimensão algo folclórica.
Mas seu papel, não no cânone da literatura brasileira ou mundial, mas sim na formação de leitores, foi e continua sendo enorme, muito maior do que muitos autores tidos como canônicos; sua obra nos faz empenhados em estabelecer um compromisso ficcional com as verdades que ele nos oferece; transita em diversas camadas sociais e culturais; coloca problemas políticos e sociais em um nível de acessibilidade a um público diversificado. Mais que isso: leva-nos a Hemingway e à literatura realista, ao interesse pela antropologia, pela literatura de costumes e religiosa, pelos relatos históricos sobre a Bahia e a fundação do Brasil.
Há uma espinha dorsal da poesia que está ligada aos poetas que a concebem nem como jogo verbal, nem como mediação de sentidos externos, indo colher seu enigma no próprio mistério órfico de sua origem. De Paz a Lezama, de Dylan Thomas a Kaváfis, de Rilke a Montale, de Bonnefoy a Saint-John Perse, de Eliot a Pound, de Akhmátova e Mandelstam a Drummond, Jorge de Lima e Murilo Mendes. Comparar Vinicius com esses poetas é quase uma piada de mau gosto. Todos eles estavam em busca de uma fundamentação da linguagem nos limites mesmos da nossa percepção e compreensão de mundo, ao passo que Vinicius é uma espécie artesão de formas prévias aplicadas a eventos circunstanciais da vida prosaica. Porém, nesses termos, foi um mestre. E mais que isso, abriu caminhos para a leitura de poesia e para a ampliação de sua irradiação.
De Vinicius vamos a Neruda, que é um autor criticável, mas que escreveu o Canto General. De Vinicius vai-se ao Lorca, a Whitman, a Claudel, a Fitzgerald, a Baudelaire, a Verlaine. De Vinicius vai-se a Camões, à tradição do soneto e à própria tradição da lírica de língua portuguesa, de Sá de Miranda a Camilo Pessanha e a Pessoa. Sob um ponto de vista do cânone, colocarmos Whitman e Vinicius numa mesma balança é disparate. Mas do ponto de vista da grande cadeia da leitura, que proponho aqui, sem borrar as distinções valorativas, pode-se pensar em autores como Vinicius como autores de passagem, autores que nos levam a outros, que mantém viva a força atrativa do Ímã, mas que sinalizam as outras vozes ocultas sob a sua voz, e, por isso, a despeito da grandeza ou pequenez de suas obras, são autores que têm uma importância infinitamente maior para a formação de leitores do que um Mallarmé, por exemplo.
Há autores que têm uma função de passagem tão destacada que acabam nos conduzindo até mesmo a outras regiões do conhecimento. Lembro, por exemplo, a importância que Aldous Huxley e George Orwell na minha adolescência. Levaram-me à filosofia, à física, à história, à política, à mística. Tudo por conta dos mundos inabitáveis de ambos e das experiências psíquicas do primeiro. Os escritores beats, que têm momentos de genuína grandeza literária, como em Ginsberg, em outros funcionam como escritores de passagem. Penso em Kerouac, por exemplo. Que ele tenha momentos de lirismo, como em Viajante solitário, em On the Road e em Os subterrâneos, é indiscutível. Que a proposta de libertação social que os beats encabeçaram possa ser minimizada também é algo discutível. Mas deixando de lado o fenômeno sociológico, literariamente quase toda a obra de Kerouac não passa de uma etapa da linguagem que vai da adolescência à vida adulta. Porém, foi ele que me abriu, aos quinze anos, para Nietzsche e, deste, para Espinosa, Blake e alguns místicos. Foi ele quem me conduziu a Thoreau, a Emerson e a Whitman. Foi ele que, em suas listas de escritores transgressores, tão ao gosto dos adolescentes, me levou a Baudelaire, aos simbolistas e até mesmo a Schopenhauer.
Na contramão da escalada da cadeia da leitura, não raras vezes há grandes autores que podem deformar o leitor. Isso depende do momento em que eles lhe forem apresentados, e da maneira que o leitor chega a esses mesmos autores. Uma leitura de Montaigne, de Proust ou de Raul Pompeia feita por um garoto pode levá-lo a abandonar definitivamente a literatura. Por seu lado, o cânone oficial eleito pelas histórias da literatura não apresenta empecilhos menores à formação do leitor. A velha e inconcebível eleição canônica de obras e autores tendo em vista os critérios linguísticos e político-nacionais já destruiu muitas gerações de leitores. E se continuar, com o atual andamento da velocidade dos meios de comunicação e com a multiplicidade dos acessos possíveis à informação, vai acabar matando outras tantas gerações ainda no berço. O motivo é tão claro como a luz do dia, mas os expedientes ideológicos que corroboram os critérios canônicos parecem ser mais luminosos do que qualquer obviedade.
Para a formação de um leitor, Milton é muito mais importante do que o padre Manuel Bernardes, Tasso é muito mais importante do que Basílio da Gama, os trovadores toscanos e provençais, mais importantes do que quase toda a poesia galego-portuguesa, e Dante, mais importante do que todos eles juntos. Stendhal é muito mais importante do que Camilo Castelo Branco, Laurence Sterne e Xavier de Maistre são muito mais importantes do que Fagundes Varela e Casimiro de Abreu. Faulkner é muito mais necessário para se conhecer literatura do que Oswald de Andrade. Rimbaud é infinitamente mais central e urgente do que Joaquim Manuel de Macedo, e Baudelaire, um autor decisivo diante da palidez do dispensável Anchieta.
Os tempos da literatura
Nas polarizações propositais que fiz acima, apenas cotejei autores de outras línguas com autores de língua portuguesa. Mas a partir delas é possível vermos quanto o ideal da formação de leitores tem sido sabotado desde os bancos escolares. Se fizéssemos uma revisão drástica do cânone de língua portuguesa, teríamos que revolver e rever muita coisa, a começar pela eleição dos autores da própria língua. Sob um pretexto formativo, de cunho sociológico e histórico, cujo objetivo é mostrar-nos as etapas da formação de uma hipotética consciência nacional, a história da literatura faz dos autores peças dessa engrenagem. Se esse discurso é vigente desde o ensino fundamental, com livros didáticos e histórias da literatura, pode-se ter a dimensão de quanto a leitura já foi e continua sendo empobrecida.
Para sanar esse problema, teríamos que rever os pressupostos que organizam a eleição dos autores canônicos, abrindo a premissa para o estudo da língua portuguesa por meio também de suas traduções, e não apenas das obras originalmente escritas nesta língua por cidadãos da lusofonia, mais precisamente, por brasileiros e portugueses. Mas talvez seja exatamente esse o ideal de uma cultura literária das mais sólidas, e o primeiro passo para o desenvolvimento de um amor autêntico pela arte verbal. Sem isso, todo o resto se perde, seja a circunstância política, seja o contexto histórico, seja o próprio passado que, enquanto passado, está morto.
As implicações dos autores de passagem podem ser grandes. Mas há outros tipos de passagens literárias, que não se fazem de obra a obra, mas de leitor a leitor, e que tem no ensaio e na crítica suas formas privilegiadas. Não trato delas aqui, pois não cabem nesta exposição e tal diálogo já pressupõe em si leitores formados, diferente do que vinha tratando até agora, isto é, das maneiras pelas quais há autores rigorosamente populares ou que gozam de prestígio junto a leitores os mais variados, e mesmo assim funcionam como condutores rumo ao desconhecido terreno do novo, que brota do horizonte do passado ou dos interlocutores do presente. O diálogo entre leituras já não diz respeito à formação de novos leitores, mas ao refinamento de leitores já convertidos. Mesmo assim, é de grande importância, pois é ele que nos leva à ascensão na cadeia de anéis, rumo a formas cada vez mais genuínas de expressão e, se for realizado de maneira consciente, a obras cada vez mais endereçadas à realidade plena de nossa vida e de nosso espírito. Não é preciso recorrer a Auden, a Valéry, a Borges, a Calvino ou ao clássico Talento individual e tradição, de Eliot, para saber o papel desse diálogo para a trama da literatura.
Das leituras ao mundo
Por fim, e para finalizar, um pouco de polêmica. Diz respeito não tanto à leitura e aos leitores, mas à legibilidade. Além da formação de leitores, é preciso prestarmos atenção a um fenômeno cada vez mais gritante, de consequências graves, que tem contribuído para a deformação de leitores: a especialização e a burocratização da leitura. Em geral, esses sintomas ocorrem em graus desenvolvidos de leitura, não necessariamente em uma mesma pessoa, mas quase sempre entre pessoas de cultura elevada e não raro de certa erudição. Entretanto, por mais legítimo que seja a finalidade de uma tal especialização, do ponto de vista estrito da leitura, que tratamos aqui, caso o leitor não domine também algumas obras e autores fundamentais e não consiga estabelecer uma visão orgânica de conjunto das obras e dos autores, no tempo e no espaço, ele estará forçosamente em um processo de leitura degenerativa.
Em outras palavras, o isolamento de partes de obras ou de discursos em outras partes de obras e discursos que não encontram mais ressonância com o contexto de onde foram extraídos, é o começo de um divórcio entre conhecimento e erudição, entre a experiência concreta de minha vida e a plenitude da vida do espírito. Comprometer esse percurso que vai do fragmento ao todo, e que, segundo Ortega y Gasset, é o princípio da própria inteligibilidade do mundo, é o mesmo que instituir em campos separados o meu coração e a minha mente, a minha circulação sanguínea e a minha coordenação motora, o meu sexo e a minha visão, destruindo as sutis formas de comunicação que essas instâncias estabelecem entre si. Sob o nome de cultura, de pesquisa, de erudição ou qualquer outro adjetivo principesco, não é nada mais do que própria ruína da cultura que vislumbramos nesse desmembramento, o canto de cisne dessas partes isoladas e exiladas, não de uma hipotética totalidade universal, mas sim do contexto vivo no qual nasceram.
Nessa cultura da especialização, torna-se cada vez mais difícil englobar alguns campos de conhecimento, dentre os quais alguns que são nucleares para se compreender a própria essência do homem. Por exemplo, me parece praticamente impossível conhecer os motivos que nos conduziram até o estágio atual da humanidade sem recorrer aos textos básicos daquela fase que Karl Jaspers definiu como Era Axial, conceito fecundo utilizado por Toynbee na sua morfologia histórica e que recentemente serviu de base de A grande transformação, bela obra da historiadora das religiões Karen Armstrong. Há muitas controvérsias quanto às datas, mas em linhas gerais formação da Era Axial vai de 900 a 200 a.C., remontando, entretanto, às origens arianas dos povos das estepes da Eurásia e à sua descida, a leste e a oeste, em direção ao Mediterrâneo e ao Indo, a partir de 1600 a.C. Um dos primeiros profetas a deflagrar as mudanças que adviriam dessa transformação espiritual teria sido Zoroastro, por volta de 1200 a.C.
Trata-se, em linhas gerais, do período onde brotaram todas as ideias seminais que serão espinha dorsal de todo o desenvolvimento espiritual, social, religioso, histórico, moral, legal, filosófico, artístico, científico e militar, tanto do Ocidente quanto do Oriente. Essa nascente comum teria engendrado Sócrates, Buda, Lao Tze, Deutero-Isaías, Confúcio e Cristo. Esses nomes, articulados, constituíram: a base socrático-filosófica do Ocidente, que miraculosamente se transfigura em Cristo, assumindo a dimensão de verdade revelada, e recebe a racionalização grega, judaica e alexandrina, da teologia posterior; as bases do budismo, que, mesclado ao hinduísmo, o alterará radicalmente; o taoísmo e o confucionismo, que definirão, respectivamente, as concepções esotéricas e exotéricas, a espirituais e as políticas, do Oriente e do Extremo Oriente; o legado de Zoroastro que teria sido retomado por Mani, e, por meio dos maniqueus, ter-se-ia transfigurando e consumando muito depois com Maomé; a mensagem do Deutero-Isaías, que servirá de fundamento, tanto à preservação e desenvolvimento do judaísmo, quanto à configuração de uma cultura judaico-cristã, além do próprio Cristo, cuja mensagem e efeito ulterior dispensam maiores comentários.
Ora, essa guinada na quadratura espiritual da humanidade, levada a cabo no intervalo de cerca de sete séculos e que tem motivações internas profundas, não foi fruto de um mero acúmulo material (como quereriam historiadores materialistas, sendo aqui historiador materialista um mero truísmo), nem fatos totalmente isolados uns dos outros, como linhas que corressem paralelamente, tampouco um desprezível acaso ou um imperativo Destino. Em outros termos, quero dizer que a motivação profunda que ocasionou a mudança operada pela Era Axial não é acessível ao especialista. Ela só pode ser entendida em termos espirituais, ou seja, se abordada, a um só tempo, verticalmente e em conjunto. Dado que a prática de uma leitura do conjunto ou de uma leitura orgânica do movimento da história, que devolva os textos à totalidade de sentido da qual eles provêm, está há tempos em declínio, esse acesso às formas globais de sentido e da própria vida humana nos está sendo paulatinamente confiscado. É preciso restituir o sentido oculto da leitura, ou seja, não mais uma leitura de livro a livro, mas sim uma leitura do texto ao mundo, que seria uma concepção da leitura como uma chave privilegiada para adentrar os mistérios do Espírito, capaz de juntar as suas peças aparentemente desconexas. Só assim elas poderão falar, miraculosamente, sobre o seu devir e sobre o nosso futuro.
Do mito ao mito
Por seu lado, podemos nos perguntar: a tão criticada vertente da “espiritualidade” contemporânea, com sua literatura de gosto e valor tão duvidosos quanto populares, seria de fato a besta apocalíptica do fim dos tempos, como querem os intelectuais? Ou, a despeito do evidente artificialismo das buscas “sagradas” e de suas interrogações “religiosas”, tão em voga nos dias de hoje, estaria se desenhando um movimento de sensibilização para os textos sagrados, que são a base centrípeta para uma compreensão genuína da história? Até que ponto o interesse “espiritual” dos dias de hoje, entre a publicidade e a frivolidade, não pode operar um salto qualitativo, e nos conectar, não a uma cadeia que ligue a literatura à literatura, nem o autor ao autor, nem a obra à obra, mas produzir uma nova legibilidade das origens e das destinações humanas? A retomada, em outra chave de leitura, dos textos dos avatares, pode vir a ser um meio para o homem eleger um novo caminho para si, como alternativa a tantos outros caminhos de miséria, angústia e desespero? É algo que só a história dirá. Isso, porém, já são leis não escritas. Não pertencem a nosso domínio nem ao domínio deste texto. Ou seja, o limite e o ponto final das leituras e dos leitores, de que tratei até aqui, chegou ao fim.
Texto escrito originalmente para o debate:
Coordenação da mesa: Maiara Gouveia
CRITICISMO
Toda crítica e toda a poesia pressupõem uma saudável mescla de dúvida e devoção sobre um determinado dado, seja ele qual for. Platão diz que a filosofia nasce do espanto. Vico diz que o mito nasce do espanto. Há, entretanto, um intervalo grande entre as duas concepções de espanto. O primeiro nasce de uma posse da consciência. Espanto-me porque percebo que sou algo e que este algo não é o mundo. O segundo me revela a condição mundana e, por conseguinte, a minha condição; traz-me à luz a forma das coisas e a minha própria forma. Espanto-me porque a árvore não é a árvore, mas é um deus. Por extensão, espanto-me porque eu, tal como a árvore, não sou apenas eu, mas um híbrido de consciência e de substância divina. Também sou árvore, também sou um deus, porque os nomeio.
Do estado de simpatia cósmica ao estado de reflexão crítica há um hiato interessantíssimo, e, em detrimento do que se tem dito, há tantas pontes que conectam quanto abismos que separam. Mas não é esse o assunto que me interessa aqui. O que podemos supor é que o espanto reflexivo, entendido como espanto, é conatural à própria manifestação elementar da vida. Seja como simpatia ou como princípio dissociador da minha consciência que, em movimento, acaba por se descobrir a si mesma, em ambos os casos temos uma ação fundamental.
Para lembrar Vilém Flusser, um estado crítico fundado em uma dúvida radical e amplificado até atingir o paroxismo é algo incapaz de ser realizado empiricamente, tampouco é encontrável como vivência ou como dado vital. Não é, portanto, uma realidade efetiva, mas meramente nominal, teórica, no pior sentido da palavra. Afinal, uma pessoa que duvidasse de tudo em todos os instantes de sua vida terminaria invariavelmente chegando ao suicídio – ou à loucura. Isso demonstra que há um princípio de crença animando até mesmo a possibilidade de exercermos a crítica, seja qual for o seu escopo, a sua finalidade, o seu objeto, o seu grau ou o seu fundamento lógico, cognitivo ou ontológico. Um germe de crença está enraizado, ainda que timidamente, até na minha capacidade mais radical e transgressora de negar o real em sua totalidade.
Da mesma maneira, se produzo uma concepção de mundo que transforma a força crítica em horizonte último de todos os conhecimentos e experiências possíveis, todo o real passa a se oferecer a mim como hipóteses a serem desenhadas em um pano de fundo recortado e constantemente criticado. Sem substância e sem subsistência, nesses termos não poderei nunca transcender o estatuto de minha premissa, ou seja, em última análise, não posso cumprir a premissa crítica em sua última aspiração, que seria uma crítica da crítica. Tomada como uma positividade e ser cumprida em quaisquer circunstâncias e para todos os fins da vida, eis que o fundamento da minha hipótese se confirma inviável. Mais que isso, funda-se sobre a sua própria inviabilidade, em suma, em seu suicídio.
Fides quaerens intellectum, a fé busca a inteligência, diz Santo Agostinho. Credo quia absurdum, creio porque é absurdo, diz Tertuliano. Essas duas afirmações, extremas e aparentemente excludentes, complementam-se e reafirmam a unidade do pensamento. O mundo só me é inteligível na medida em que eu creio. Sem a crença, entendida como base prévia do conhecimento, não haveria sequer a possibilidade de criticar os fundamentos da fé e mesmo os da razão, que, por seu turno, me faculta o exercício de crenças periféricas, secundárias. Se, ao crer, vinculo a crença à impossibilidade de uma explicação última do mundo, demonstro os limites de todo conhecimento demonstrativo quanto à essência desse mesmo mundo e também no que concerne à essência do próprio conhecimento. Ao fazê-lo, resgato a substância mesma do pensamento, sua forma primeira, sua estrutura não-relacional, o seu ser, diríamos. Produzo uma dupla superação: do real como unidade finita e do pensamento como unidade autossuficiente.
Essa atitude de excentricidade me põe em contato, por sua vez, com a dupla articulação de toda a sabedoria, no seu grau mais elevado: a verdade e o absurdo. Por ser verdade e por ser absolutamente transcendente, não é acessível à luz fosca, subsidiária, adventícia da minha razão; por isso, absurdo perante os desígnios omnicompreensivos a que ela anseia. Sendo absurda e relativa, devolve-me à minha finitude, à minha interminável busca de sentido, justamente o que me faz humano, in fieri. Por outro lado, ao reduzir o perímetro de alcance de meu pensamento, preservo o real intacto em sua subordinação àquilo que o transcende. E, por conseguinte, também o próprio pensamento.
Ao reduzir o estatuto de minha inteligência, apreendo o mundo em uma amplitude maior do que a fornecida pelos expedientes lógicos que lhe atribuem valor e o predicam. Ao superar o demonstrável, devolvo a minha consciência à sua origem ilimitada e, portanto, ao que não se quantifica, ao imponderável. Isso só me revela que há um além para o qual a consciência caminha e justamente este além lhe é consubstancial; ele é que nega o estatuto fechado do meu pensamento, negação sem a qual não há processo noético, e, portanto, não haveria negações ou afirmações parciais de nada, mas apenas uma completa anomia e indistinção improdutivas.
Em resumo, a partir da crença, chego à inteligência. A partir desta, chego ao absurdo. Depois do absurdo, reabsorvo a razão, plena em seu fracasso, ciente de sua insuficiência essencial, transformada e redimida depois da transformação, do conhecimento e do reconhecimento, que se realizaram em seu interior. Negação da negação, reintegro a minha capacidade compreensiva aos domínios do mundo, ao círculo amplo de minha abrangência, mínimo diante do que lhe excede. Desse ponto de vista e ao contrário do que vulgarmente se diz à exaustão, o impensável é o elemento crítico que se infiltra em minha razão e produz nela a crítica da crítica, ou seja, a negação de sua condição autotélica, que é inviável e inverossímil. Apenas o contato com o Outro, com a absoluta transcendência, molda a meu eu em sua singularidade, abre a clareira de minha consciência e possibilita que esta conheça e se reconheça, que esteja no mundo porque se percebe também fora do mundo.
Sem cogitar o imponderável que nos cerca e que nos anima, dia a dia, esse complexo fenômeno a que chamamos de consciência, desde seus graus mais elementares às suas espirais mais complexas, o próprio ato de pensar atinge uma contradição embaraçosa, pois passa a se apoiar em resoluções parciais de uma questão ontológica mais ampla. Assim, traduz-se, seja em um eu abstrativo e puro, sem efetividade, seja em uma fé cega, que não atinge os elementos críticos capazes de revelar a sua relatividade e precariedade intrínsecas. Da mesma maneira que Santo Anselmo postulou aquilo além do que nada pode ser pensado, traduzindo-o na substância divina que transcende todo o inteligível e todo o real, fé e inteligência se completam e se minimizam mutuamente mediante o imperativo dessa realidade excêntrica divina.
Não cabe crer e explicar, tampouco conhecer e ignorar ou crer que tudo o que não compreendo é a projeção negativa de algo que compreendo. Trata-se, sim, de dar o salto qualitativo sobre o absurdo fundamental da vida humana. Esse é o testemunho que caracteriza e legitima o verdadeiro ato de fé. Há uma luz mais ampla que nos possibilidade reter as dimensões e variantes da própria luz. É possível criticar a luz. Mas não é possível criticar a condição que, enquanto luz, me possibilita a legibilidade do mundo – e da luz. Sem absurdo, não há inteligência. Sem absurdo, tampouco há fé. Sem crença, não há nem absurdo nem inteligência. Há apenas massa amorfa e impassível à espera do fim dos tempos, sem compreensão e sem revelação, de nada e de ninguém. Isto posto, quase todas as proposições negativas e pseudocríticas da modernidade são destituídas de validade empírica, lógica e ontológica. Em suma, são um equívoco, ou, para sermos mais claros, uma fraude.
Do estado de simpatia cósmica ao estado de reflexão crítica há um hiato interessantíssimo, e, em detrimento do que se tem dito, há tantas pontes que conectam quanto abismos que separam. Mas não é esse o assunto que me interessa aqui. O que podemos supor é que o espanto reflexivo, entendido como espanto, é conatural à própria manifestação elementar da vida. Seja como simpatia ou como princípio dissociador da minha consciência que, em movimento, acaba por se descobrir a si mesma, em ambos os casos temos uma ação fundamental.
Para lembrar Vilém Flusser, um estado crítico fundado em uma dúvida radical e amplificado até atingir o paroxismo é algo incapaz de ser realizado empiricamente, tampouco é encontrável como vivência ou como dado vital. Não é, portanto, uma realidade efetiva, mas meramente nominal, teórica, no pior sentido da palavra. Afinal, uma pessoa que duvidasse de tudo em todos os instantes de sua vida terminaria invariavelmente chegando ao suicídio – ou à loucura. Isso demonstra que há um princípio de crença animando até mesmo a possibilidade de exercermos a crítica, seja qual for o seu escopo, a sua finalidade, o seu objeto, o seu grau ou o seu fundamento lógico, cognitivo ou ontológico. Um germe de crença está enraizado, ainda que timidamente, até na minha capacidade mais radical e transgressora de negar o real em sua totalidade.
Da mesma maneira, se produzo uma concepção de mundo que transforma a força crítica em horizonte último de todos os conhecimentos e experiências possíveis, todo o real passa a se oferecer a mim como hipóteses a serem desenhadas em um pano de fundo recortado e constantemente criticado. Sem substância e sem subsistência, nesses termos não poderei nunca transcender o estatuto de minha premissa, ou seja, em última análise, não posso cumprir a premissa crítica em sua última aspiração, que seria uma crítica da crítica. Tomada como uma positividade e ser cumprida em quaisquer circunstâncias e para todos os fins da vida, eis que o fundamento da minha hipótese se confirma inviável. Mais que isso, funda-se sobre a sua própria inviabilidade, em suma, em seu suicídio.
Fides quaerens intellectum, a fé busca a inteligência, diz Santo Agostinho. Credo quia absurdum, creio porque é absurdo, diz Tertuliano. Essas duas afirmações, extremas e aparentemente excludentes, complementam-se e reafirmam a unidade do pensamento. O mundo só me é inteligível na medida em que eu creio. Sem a crença, entendida como base prévia do conhecimento, não haveria sequer a possibilidade de criticar os fundamentos da fé e mesmo os da razão, que, por seu turno, me faculta o exercício de crenças periféricas, secundárias. Se, ao crer, vinculo a crença à impossibilidade de uma explicação última do mundo, demonstro os limites de todo conhecimento demonstrativo quanto à essência desse mesmo mundo e também no que concerne à essência do próprio conhecimento. Ao fazê-lo, resgato a substância mesma do pensamento, sua forma primeira, sua estrutura não-relacional, o seu ser, diríamos. Produzo uma dupla superação: do real como unidade finita e do pensamento como unidade autossuficiente.
Essa atitude de excentricidade me põe em contato, por sua vez, com a dupla articulação de toda a sabedoria, no seu grau mais elevado: a verdade e o absurdo. Por ser verdade e por ser absolutamente transcendente, não é acessível à luz fosca, subsidiária, adventícia da minha razão; por isso, absurdo perante os desígnios omnicompreensivos a que ela anseia. Sendo absurda e relativa, devolve-me à minha finitude, à minha interminável busca de sentido, justamente o que me faz humano, in fieri. Por outro lado, ao reduzir o perímetro de alcance de meu pensamento, preservo o real intacto em sua subordinação àquilo que o transcende. E, por conseguinte, também o próprio pensamento.
Ao reduzir o estatuto de minha inteligência, apreendo o mundo em uma amplitude maior do que a fornecida pelos expedientes lógicos que lhe atribuem valor e o predicam. Ao superar o demonstrável, devolvo a minha consciência à sua origem ilimitada e, portanto, ao que não se quantifica, ao imponderável. Isso só me revela que há um além para o qual a consciência caminha e justamente este além lhe é consubstancial; ele é que nega o estatuto fechado do meu pensamento, negação sem a qual não há processo noético, e, portanto, não haveria negações ou afirmações parciais de nada, mas apenas uma completa anomia e indistinção improdutivas.
Em resumo, a partir da crença, chego à inteligência. A partir desta, chego ao absurdo. Depois do absurdo, reabsorvo a razão, plena em seu fracasso, ciente de sua insuficiência essencial, transformada e redimida depois da transformação, do conhecimento e do reconhecimento, que se realizaram em seu interior. Negação da negação, reintegro a minha capacidade compreensiva aos domínios do mundo, ao círculo amplo de minha abrangência, mínimo diante do que lhe excede. Desse ponto de vista e ao contrário do que vulgarmente se diz à exaustão, o impensável é o elemento crítico que se infiltra em minha razão e produz nela a crítica da crítica, ou seja, a negação de sua condição autotélica, que é inviável e inverossímil. Apenas o contato com o Outro, com a absoluta transcendência, molda a meu eu em sua singularidade, abre a clareira de minha consciência e possibilita que esta conheça e se reconheça, que esteja no mundo porque se percebe também fora do mundo.
Sem cogitar o imponderável que nos cerca e que nos anima, dia a dia, esse complexo fenômeno a que chamamos de consciência, desde seus graus mais elementares às suas espirais mais complexas, o próprio ato de pensar atinge uma contradição embaraçosa, pois passa a se apoiar em resoluções parciais de uma questão ontológica mais ampla. Assim, traduz-se, seja em um eu abstrativo e puro, sem efetividade, seja em uma fé cega, que não atinge os elementos críticos capazes de revelar a sua relatividade e precariedade intrínsecas. Da mesma maneira que Santo Anselmo postulou aquilo além do que nada pode ser pensado, traduzindo-o na substância divina que transcende todo o inteligível e todo o real, fé e inteligência se completam e se minimizam mutuamente mediante o imperativo dessa realidade excêntrica divina.
Não cabe crer e explicar, tampouco conhecer e ignorar ou crer que tudo o que não compreendo é a projeção negativa de algo que compreendo. Trata-se, sim, de dar o salto qualitativo sobre o absurdo fundamental da vida humana. Esse é o testemunho que caracteriza e legitima o verdadeiro ato de fé. Há uma luz mais ampla que nos possibilidade reter as dimensões e variantes da própria luz. É possível criticar a luz. Mas não é possível criticar a condição que, enquanto luz, me possibilita a legibilidade do mundo – e da luz. Sem absurdo, não há inteligência. Sem absurdo, tampouco há fé. Sem crença, não há nem absurdo nem inteligência. Há apenas massa amorfa e impassível à espera do fim dos tempos, sem compreensão e sem revelação, de nada e de ninguém. Isto posto, quase todas as proposições negativas e pseudocríticas da modernidade são destituídas de validade empírica, lógica e ontológica. Em suma, são um equívoco, ou, para sermos mais claros, uma fraude.
EVOLUÇÃO
Em uma passagem tão instigante quanto polêmica, Ortega y Gasset sugere que a modernidade padece de um mal intransponível. Na medida em que ela instaura, como sua essência, a necessidade de superação de toda a etapa anterior, ela paradoxalmente funda para si a sua própria impossibilidade. Não estamos diante de um problema relativo à validade do conhecimento ou à sua fundamentação ontológica, mas sim de um erro meramente lógico, pois, nesses termos, o projeto moderno nunca conseguiria e sequer conseguirá ultimar a sua premissa. Afinal, propor-se superar a superação é algo que vai da falácia lógica à tautologia e ao mero truísmo.
Natimorta, a modernidade ambiciona ser sempre uma superação de si mesmo, sem, contudo, poder superar o coração dos valores a partir dos quais ela lança luzes sobre as coisas e acima de tudo sobre si mesma. Porque se eu instituo a superação como fundamento, atesto consequentemente a insuficiência intrínseca a meu projeto, que vem implícita na própria premissa que ele sustenta. Ora, ao contrário do que se imagina, essa identidade entre criação e miséria, entre transgressão e liberdade, entre arte e destruição é-nos bem conhecida, propalada por quase todos os teóricos da modernidade.
E ela não se espraia apenas na criação artística, muito pelo contrário. Diz respeito à dimensão axiológica em torno da qual giram todas as demais dimensões humanas. Ao fazer coincidir, no interior do meu projeto, o seu não-ser e o seu telos (finalidade), demonstro que a sua essência é a sua própria ruína. Porém, mais uma vez sob um ponto de vista lógico, essa ilação é algo tão paradoxal quanto dizer que a essência da vida é a morte, e não que há um duplo domínio incógnito, um umbral, uma película de fina tessitura onde esses dois inexplicáveis mistérios se tocam.
Entre uma concepção e outra há muita diferença. E para perceber isso, basta pensar no princípio de não-contradição de Aristóteles. É claro que os apologistas de certas concepções da modernidade sacarão da manga da camisa os seus ases e outros tantos blefes. Dentre eles, a síntese, proposta por Hegel, entre os princípios contraditórios que se resolvem em uma mútua assimilação que, temporalmente, se dá no Espírito e, conceitualmente, na Ideia, espelho do Absoluto. O fantasma recalcado sempre retorna, meu caro Hamlet. E sempre retornará, por toda a eternidade. Sinal de que as sínteses são sempre aparentes, fenomênicas, e, no plano da realidade, só ocorreriam em uma instância última, tangível, porém inatingível: Deus. Além disso, o termo negativo em jogo aqui não é uma mera palavra ou um conceito vazio. Pode ser uma vida, um objeto, todo um conjunto de seres vivos em sua luta elementar pelo sol. Seriam assimiláveis, também eles, um ao outro? Sombras, sombras. Fogos fátuos. Jogos de palavras.
Essas contradições já foram assinaladas por dezenas de teóricos, com base na evidente tradição da ruptura, sobre a qual o projeto moderno se baseia. Porém, em geral, enaltece-se o teor positivo (crítico) do mesmo, sem considerá-lo de fora, sem tomá-lo como uma fatalidade, uma liberdade inexorável, dentro da qual há matizes, nunca uma crítica radical dos seus pressupostos ou de sua estrutura. Dessa forma, ainda não seríamos absolutamente modernos? Apenas pela reversão drástica de todos os valores isso se daria? Apenas com a consumação? Quando a destruição retém em si essência de sua forma anterior? Em certo sentido, sim.
Porque, para que tal contradição de resolva, teríamos que empreender um salto qualitativo, uma quebra dialética. Dir-se-ia que seria preciso uma guinada no estatuto eidético do real. Essa consiste em uma crítica da crítica, em um reconhecimento da absoluta ruína da razão crítica ou da desrazão cética, enfim, por meio de uma mudança da perspectiva global sob a qual temos visto o mundo do nos últimos séculos, dir-se-ia quase no último milênio. Uma revolução em nossa experiência do mundo, do real, do pensamento.
Muito se repisa a importância da imanência, do devir, princípio dessas singelas contradições que enumerei acima. Se algo passa, passa sempre e sempre deve passar em relação a algo distinto. Para que eu defina que todo o universo muda e sua essência é exatamente essa (mudar), então preciso de um imperativo metafísico que me demonstre a permanência, em contraste com a qual possa afirmar a minha proposição. Sem esta, sequer posso pensar a ideia de mudança; sem qualquer contraste parcial, eu acabaria por reduzir o mundo a uma completa anomia, feito de devir e devires que sequer podem ser postulados como tal. Não se pode medir uma diferença com outras diferenças, indefinidamente, pois não é possível haver um valor absoluto da mesma, uma Diferença, o que seria um paradoxo tolo, pois redundaria em uma destruição sumária e suicida da própria e maravilhosa heterogeneidade do Universo.
Essa impossibilidade se deve também a algo que concerne à teoria da percepção, que lhe é solidária. Por exemplo, a ordem dos termos de um enunciado não nasce de uma superação dos elementos anteriores. Tampouco o todo é uma justaposição, síntese ou soma das partes, por mais coesa que seja essa síntese. É a gradação de suas ocorrências que mostra o sentido daquilo que se nos oferece. A substância daquilo que se transforma é que define os graus parciais de transformação decorridos sobre o transformado e os modos de transformar operados por aquele ou aquilo que exerce a força de transformar. Sim, leitor, por mais que isso possa parecer óbvio, um cachorro não é a soma de uma orelha de cachorro, de um focinho de cachorro, de patas e rabo de cachorro, de tórax e órgãos de cachorro, procedendo assim ad infinitum até termos, por fim, o cachorro em sua cachorridade. A consecução mesma dos termos ao infinito já nos demonstra a vacuidade da soma dos termos isolados, como o enigma de Zenão, para o qual a subdivisão quantitativa dos segundos resultaria inadvertidamente no próprio infinito.
Esse etapismo escatológico que caracteriza a própria concepção moderna de tempo e de história tem consequências graves, tanto para o nível da nossa relação com o passado quanto para a organização da cultura e da vida psíquica em geral. Uma das coisas mais diretas que ele acarreta é a perda da dimensão transcendente da vida. Esse primeiro fator é o responsável pela assunção de uma paulatina transparência científica, acompanhada de uma proporcional opacidade simbólica da mesma. Posso macaquear um sem-número de fórmulas que descrevem o interior da matéria, mas não consigo ver a relação de contiguidade que existe entre Aristóteles, Avicena, Tomás de Aquino, Heidegger e eu. Entendidos como etapas sucessivas e superadas da dialética histórica, o que é vivo do passado não o é mais de maneira estrutural e estruturante do presente, mas como resíduo arqueológico de uma forma mentis há tempos superada e abolida. Aproprio-me dela, mas a neutralizo ao isolá-la do centro de interrogação que lhe deu vida. Dessa maneira, o próprio passado que recuperamos, recuperamo-lo deformado, pois lançamos luz sobre os restos materiais e apagamos a consciência interrogadora a partir da qual esse mesmo passado se produziu.
Não é por outro motivo que um exegeta de Platão ou de Duns Scott, em seu trabalho, pode produzir algo que esteja a milhares de quilômetros do núcleo duro da filosofia de Platão e Duns Scott. Isso não se dá por incompetência, falta de erudição ou inépcia. Mas apenas porque a nossa época, sendo materialista, reduziu os sujeitos concretos da história e do pensamento a resíduos materiais. Boa parte da exegese crítica, dos trabalhos acadêmicos, das propostas filosóficas e das análises históricas, neste contexto, acabam por se tornar edificações residuais do passado. Destacado da motivação interna que lhe deu origem, a obra do espírito diz mais daquela que disserta sobre ela do que sobre ela mesma ou sobre aquele que a criou. Assim, ruína de ruína, a incapacidade de apreender o movimento interno do pensamento em um ir e vir que é o fluxo e o refluxo entre a tradição e o futuro, a análise racional do passado não faz nada mais do que antecipar a morte do porvir e produzir a sua própria destruição, apoiada nas camadas ocultas e visíveis da história. Aquele presente pleno e puro de que fala Santo Agostinho é o oposto simétrico da presentificação obtusa da vida e do pensamento modernos, pois estes consistem em reduzir o passado a uma ruína e em confiscar o futuro como antecipação do que ele poderia não ser. Esse é o resultado natural e previsível de uma mentalidade e de formas de vida guiadas pela mística da evolução, da superação e do desenvolvimento.
Natimorta, a modernidade ambiciona ser sempre uma superação de si mesmo, sem, contudo, poder superar o coração dos valores a partir dos quais ela lança luzes sobre as coisas e acima de tudo sobre si mesma. Porque se eu instituo a superação como fundamento, atesto consequentemente a insuficiência intrínseca a meu projeto, que vem implícita na própria premissa que ele sustenta. Ora, ao contrário do que se imagina, essa identidade entre criação e miséria, entre transgressão e liberdade, entre arte e destruição é-nos bem conhecida, propalada por quase todos os teóricos da modernidade.
E ela não se espraia apenas na criação artística, muito pelo contrário. Diz respeito à dimensão axiológica em torno da qual giram todas as demais dimensões humanas. Ao fazer coincidir, no interior do meu projeto, o seu não-ser e o seu telos (finalidade), demonstro que a sua essência é a sua própria ruína. Porém, mais uma vez sob um ponto de vista lógico, essa ilação é algo tão paradoxal quanto dizer que a essência da vida é a morte, e não que há um duplo domínio incógnito, um umbral, uma película de fina tessitura onde esses dois inexplicáveis mistérios se tocam.
Entre uma concepção e outra há muita diferença. E para perceber isso, basta pensar no princípio de não-contradição de Aristóteles. É claro que os apologistas de certas concepções da modernidade sacarão da manga da camisa os seus ases e outros tantos blefes. Dentre eles, a síntese, proposta por Hegel, entre os princípios contraditórios que se resolvem em uma mútua assimilação que, temporalmente, se dá no Espírito e, conceitualmente, na Ideia, espelho do Absoluto. O fantasma recalcado sempre retorna, meu caro Hamlet. E sempre retornará, por toda a eternidade. Sinal de que as sínteses são sempre aparentes, fenomênicas, e, no plano da realidade, só ocorreriam em uma instância última, tangível, porém inatingível: Deus. Além disso, o termo negativo em jogo aqui não é uma mera palavra ou um conceito vazio. Pode ser uma vida, um objeto, todo um conjunto de seres vivos em sua luta elementar pelo sol. Seriam assimiláveis, também eles, um ao outro? Sombras, sombras. Fogos fátuos. Jogos de palavras.
Essas contradições já foram assinaladas por dezenas de teóricos, com base na evidente tradição da ruptura, sobre a qual o projeto moderno se baseia. Porém, em geral, enaltece-se o teor positivo (crítico) do mesmo, sem considerá-lo de fora, sem tomá-lo como uma fatalidade, uma liberdade inexorável, dentro da qual há matizes, nunca uma crítica radical dos seus pressupostos ou de sua estrutura. Dessa forma, ainda não seríamos absolutamente modernos? Apenas pela reversão drástica de todos os valores isso se daria? Apenas com a consumação? Quando a destruição retém em si essência de sua forma anterior? Em certo sentido, sim.
Porque, para que tal contradição de resolva, teríamos que empreender um salto qualitativo, uma quebra dialética. Dir-se-ia que seria preciso uma guinada no estatuto eidético do real. Essa consiste em uma crítica da crítica, em um reconhecimento da absoluta ruína da razão crítica ou da desrazão cética, enfim, por meio de uma mudança da perspectiva global sob a qual temos visto o mundo do nos últimos séculos, dir-se-ia quase no último milênio. Uma revolução em nossa experiência do mundo, do real, do pensamento.
Muito se repisa a importância da imanência, do devir, princípio dessas singelas contradições que enumerei acima. Se algo passa, passa sempre e sempre deve passar em relação a algo distinto. Para que eu defina que todo o universo muda e sua essência é exatamente essa (mudar), então preciso de um imperativo metafísico que me demonstre a permanência, em contraste com a qual possa afirmar a minha proposição. Sem esta, sequer posso pensar a ideia de mudança; sem qualquer contraste parcial, eu acabaria por reduzir o mundo a uma completa anomia, feito de devir e devires que sequer podem ser postulados como tal. Não se pode medir uma diferença com outras diferenças, indefinidamente, pois não é possível haver um valor absoluto da mesma, uma Diferença, o que seria um paradoxo tolo, pois redundaria em uma destruição sumária e suicida da própria e maravilhosa heterogeneidade do Universo.
Essa impossibilidade se deve também a algo que concerne à teoria da percepção, que lhe é solidária. Por exemplo, a ordem dos termos de um enunciado não nasce de uma superação dos elementos anteriores. Tampouco o todo é uma justaposição, síntese ou soma das partes, por mais coesa que seja essa síntese. É a gradação de suas ocorrências que mostra o sentido daquilo que se nos oferece. A substância daquilo que se transforma é que define os graus parciais de transformação decorridos sobre o transformado e os modos de transformar operados por aquele ou aquilo que exerce a força de transformar. Sim, leitor, por mais que isso possa parecer óbvio, um cachorro não é a soma de uma orelha de cachorro, de um focinho de cachorro, de patas e rabo de cachorro, de tórax e órgãos de cachorro, procedendo assim ad infinitum até termos, por fim, o cachorro em sua cachorridade. A consecução mesma dos termos ao infinito já nos demonstra a vacuidade da soma dos termos isolados, como o enigma de Zenão, para o qual a subdivisão quantitativa dos segundos resultaria inadvertidamente no próprio infinito.
Esse etapismo escatológico que caracteriza a própria concepção moderna de tempo e de história tem consequências graves, tanto para o nível da nossa relação com o passado quanto para a organização da cultura e da vida psíquica em geral. Uma das coisas mais diretas que ele acarreta é a perda da dimensão transcendente da vida. Esse primeiro fator é o responsável pela assunção de uma paulatina transparência científica, acompanhada de uma proporcional opacidade simbólica da mesma. Posso macaquear um sem-número de fórmulas que descrevem o interior da matéria, mas não consigo ver a relação de contiguidade que existe entre Aristóteles, Avicena, Tomás de Aquino, Heidegger e eu. Entendidos como etapas sucessivas e superadas da dialética histórica, o que é vivo do passado não o é mais de maneira estrutural e estruturante do presente, mas como resíduo arqueológico de uma forma mentis há tempos superada e abolida. Aproprio-me dela, mas a neutralizo ao isolá-la do centro de interrogação que lhe deu vida. Dessa maneira, o próprio passado que recuperamos, recuperamo-lo deformado, pois lançamos luz sobre os restos materiais e apagamos a consciência interrogadora a partir da qual esse mesmo passado se produziu.
Não é por outro motivo que um exegeta de Platão ou de Duns Scott, em seu trabalho, pode produzir algo que esteja a milhares de quilômetros do núcleo duro da filosofia de Platão e Duns Scott. Isso não se dá por incompetência, falta de erudição ou inépcia. Mas apenas porque a nossa época, sendo materialista, reduziu os sujeitos concretos da história e do pensamento a resíduos materiais. Boa parte da exegese crítica, dos trabalhos acadêmicos, das propostas filosóficas e das análises históricas, neste contexto, acabam por se tornar edificações residuais do passado. Destacado da motivação interna que lhe deu origem, a obra do espírito diz mais daquela que disserta sobre ela do que sobre ela mesma ou sobre aquele que a criou. Assim, ruína de ruína, a incapacidade de apreender o movimento interno do pensamento em um ir e vir que é o fluxo e o refluxo entre a tradição e o futuro, a análise racional do passado não faz nada mais do que antecipar a morte do porvir e produzir a sua própria destruição, apoiada nas camadas ocultas e visíveis da história. Aquele presente pleno e puro de que fala Santo Agostinho é o oposto simétrico da presentificação obtusa da vida e do pensamento modernos, pois estes consistem em reduzir o passado a uma ruína e em confiscar o futuro como antecipação do que ele poderia não ser. Esse é o resultado natural e previsível de uma mentalidade e de formas de vida guiadas pela mística da evolução, da superação e do desenvolvimento.
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
UMA VEZ − E BASTA: AS VIDAS E MORTES DE EMPÉDOCLES E DE HÖLDERLIN
HÖLDERLIN, Friedrich. A morte de Empédocles. Introdução e Tradução Marise Moassab Curioni. São Paulo: Iluminuras, 2009.
A obra e o mito
“Eu caminho entre vós como um deus imortal, não mais como mortal”. Por mais estranha que essa frase possa soar aos ouvidos modernos, ela parece explicar a situação de Empédocles de Agrigento, sua vida e sobretudo a sua morte. Pois foram as causas fantásticas desta última que o transformaram em mito. Em uma das versões, perseguido pelos sacerdotes de Agrigento, desapareceu nas proximidades do Etna. Em outra, teria se atirado nas lavas do vulcão, gesto que é entendido como corolário de sua ascese filosófica. Em todo caso, essa condição de “íntimo da divindade”, e, ao mesmo tempo, de “exilado dos deuses”, é que gerou o antagonismo cósmico de sua filosofia, a tragédia elementar dos ciclos da vida, do mundo e da transmigração das almas.
O poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843) não só fundou as bases do mito de Empédocles em um drama em versos que é, do início ao fim, encantamento da linguagem e do pensamento unidos em um só acorde, como forneceu aquela que talvez seja a leitura mais dramática da vida do filósofo e, de saída, da vida e da obra dele próprio, Hölderlin. Esse verdadeiro testamento poético que é A morte de Empédocles (Editora Iluminuras, 2009) chega às mãos do leitor brasileiro por meio de Marise Moassab Curioni, em uma tradução impecável, com frequentes laivos de brilhantismo, fruto de anos de dedicação. Nela Marise conseguiu o milagre de preservar o sentido, a música e, acima de tudo, o mito e os conceitos do poeta. Não por acaso, a obra acaba de receber o 1° Lugar do Prêmio Jabuti − 2009, na categoria Tradução.
Como nos adverte a tradutora, embora tenha ficado inacabada, a obra foi composta em três versões, cada uma lançando luzes sobre uma de suas facetas. Por mais difícil que seja definir o seu núcleo, talvez ele esteja no conflito entre a possibilidade e a impossibilidade de reconciliação. Ainda que o filósofo diga que está “reconciliado” com “mortais e deuses”, acredito que essa reconciliação seja apenas parcial; não é efetiva, mas simbólica. Ela se dá no nível do indivíduo, não no nível coletivo, ou seja, naquilo que constitui o essencial da tragédia enquanto tragédia. Hölderlin tinha plena noção disso. E o poeta assim o quis para que nós arquemos com metade de sua arte. Em outras palavras, para que nós finalizemos a transformação em nós mesmos.
Mesmo conhecido como “amigo dos deuses” e como “homem semelhante aos deuses”, “tão divino e próximo”, para quem é tão “íntima a Natureza”, o destino demasiadamente humano de Empédocles o coloca como “anátema sagrado”. Nas contrações e distensões da Discórdia e do Amor no movimento da Esfera, o Empédocles criado por Hölderlin nos mostra que estamos tão próximos das “Fontes da Vida” quanto da “fuga dos deuses”, pois mesmo o “divino conhece o ocaso”. Até mesmo o divino se furta ao comércio com os homens e, quando se mostra a eles, macula-os com sua marca sacrílega.
Ainda que a “Natureza seja sagrada”, vivemos em “tempos carentes de heróis”. Para Empédocles, os “deuses pátrios” não correspondem mais à sua verdade íntima, ou seja, não são suficientes para legitimar nem o humano como humano nem o divino, como divino. É em razão desse processo de isolamento que, nas palavras do sacerdote Hermócrates, o filósofo acaba “virando um estrangeiro”. Não estrangeiro da pátria e do plano temporal, mas um estrangeiro da existência atemporal, apartado primeiro dos deuses, e, por conseguinte, dos homens, por não mais compartilhar das crenças que os enraízam.
A cena mundana
Em A morte de Empédocles, Hölderlin conseguiu captar a dinâmica do sagrado em toda a sua plenitude e complexidade, por meio da qual a filosofia assume as dramatis personae do poeta. Ao lê-la, somos induzidos a retirar essa máscara, chamada Empédocles, e nos vemos diante de um rosto: Hölderlin. Poeta solar, da loucura mais cristalina que já se concebeu, ele soube intuir a pulsação cósmica que subjaz à enantiodromia e ao jogo infinito dos contrários. Sendo também, não poeta de poetas, mas um “poeta da poesia”, nas palavras de Heidegger, coube a Hölderlin fundar sua própria tradição, o que equivale, para o Espírito, a fundar-se a si mesmo, como poeta e como homem, o que é o mesmo que se desvelar como ser existente (Dasein).
Assim, sua efígie parece dizer-nos que desde que saímos da Esfera, desde que saímos do Um e nos arrojamos à constante transformação, não há outra saída senão esta. Uma só vez. E “uma vez mais” − e tudo está determinado. Uma só vez. E basta. Esse é o sentido da vida. Essa é sua beleza, que sempre será trágica, pois ambas as palavras no fundo são uma coisa só.
terça-feira, 17 de novembro de 2009
CARL DREYER E A FÉ
Não é preciso nenhuma reflexão teórica ou ter um conhecimento cinematográfico desenvolvido para saber que A Palavra e o Martírio de Joana d’Arc estão entre as maiores obras já realizadas no cinema. Para irmos mais longe, diria que atingem aqueles píncaros da criação artística, que colocam Dreyer como um herdeiro da arte ocidental. Àqueles que estejam desconfiados do entusiasmo de minhas palavras, vão ver os filmes. Depois conversamos. A experiência estética de ver Dreyer é algo similar a ouvir Haeldel, Mozart, os motetos de Gesualdo, Monteverdi, Palestrina. Aproxima-se mais da música, porque toca o inexprimível, a corrente oculta do ser que, quando menos esperamos, deságua numa forma de emoção que transcende em tudo a emoção plástica.
A frivolidade teórica de nosso tempo, que não consegue produzir quase nada que extrapole o ramerrão de uma hermenêutica da suspeita; que quer ver em tudo relações de poder e camadas discursivas; que quer reduzir o homem a uma espécie de micróbio político cercado de política por todos os lados; que pretende entronizar um Universo que, também ele, não seja nada mais do que uma bolha política, não uma noosfera (esfera do Espírito), mas uma polisfera. Pois bem, a frivolidade teórica de todos os tempos, sobretudo o nosso, provavelmente verá nesses dois filmes, com sorrisos nos lábios, uma crítica à religião. O primeiro, pelas disputas entre protestantes e católicos e pela burocracia da instituição religiosa que ignora a fé e a santidade verdadeiras, travestindo-as de loucura. O segundo, pela perseguição da Igreja, que quer assassinar aquela que teve uma revelação legítima.
A frivolidade teórica de nosso tempo, que não consegue produzir quase nada que extrapole o ramerrão de uma hermenêutica da suspeita; que quer ver em tudo relações de poder e camadas discursivas; que quer reduzir o homem a uma espécie de micróbio político cercado de política por todos os lados; que pretende entronizar um Universo que, também ele, não seja nada mais do que uma bolha política, não uma noosfera (esfera do Espírito), mas uma polisfera. Pois bem, a frivolidade teórica de todos os tempos, sobretudo o nosso, provavelmente verá nesses dois filmes, com sorrisos nos lábios, uma crítica à religião. O primeiro, pelas disputas entre protestantes e católicos e pela burocracia da instituição religiosa que ignora a fé e a santidade verdadeiras, travestindo-as de loucura. O segundo, pela perseguição da Igreja, que quer assassinar aquela que teve uma revelação legítima.
Nada mais equivocado. Em nenhum momento o foco de Dreyer são essas dimensões históricas, contingentes. Sua arte vai em uma direção muito diferente, joga-nos de cabeça na vertente estrutural do homem, cerceado, impelido pelo chamamento divino. Não existe homem natural; não há humanidade fora da transcendência. Por isso, ele não nos apresenta o negativo da fé, uma hipotética razão autossuficiente que esquadrinha as coisas. Toma, sim, a fé em sua fonte, em seu estado puro, em sua luz mais intolerável e em sua mais comovente lucidez. A obra de Dreyer é um dos maiores monumentos erguidos à infinitude da fé.
O teólogo judeu Joshua Heschel, formado na escola teológica e fenomenológica de Marburg, desenvolveu uma abordagem fenomenológica da consciência mística que pode ser classificada como teologia das profundezas. Ao estudar o texto dos profetas bíblicos, Heschel se ateve à estrutura profunda do profeta, tentando depreender o estado de consciência daquele que profere no momento mesmo em que executa a sua mistagogia. Nessa descida em busca da primeira voz que antecede as vozes da alma, Heschel identificou uma diferença marcante entre a mística e a profecia. A mística, em sua concepção, seria quando o homem vê o mundo pelos olhos de Deus. Na profecia, Deus é que vê o mundo pelos olhos dos homens. God is search of man. Há nessa mudança algo muito mais sério do que uma inversão de vetores ou um jogo de palavras. O que ele quer nos fazer compreender é que a profecia torna o profeta um possuído, ao passo que a metanoia mística, em última instância, faz do místico um amoroso; na profecia não há união amorosa e contemplativa com Deus, não há um abandono de si, uma consciência da finitude das coisas criadas, que nos devolve ao seio do Criador. Há, ao contrário, algo que se assemelha ao aniquilamento da consciência individual. Como se a água divina brotasse no interior da consciência finita do homem, e praticamente a arrebentasse. Isso é a profecia.
E é por isso que, segundo Heschel, o objetivo da profecia é lançar ao mundo um grande Não. Voz que se eleva do abismo da consciência, da transcendência mais radical, o profeta aniquila a estupidez de nossas sombras e simulacros, esmaga o nosso “humanismo ridículo”, como diz o filósofo Luiz Felipe Pondé, que quer dimensionar a vida a partir da luz fosca de nossa razão demasiadamente humana. Esse é o sentido de crise estabelecido pelo profeta, crise global, que abrange em si todos os demais setores da sociedade e do pensamento, pois é uma crítica das raízes, que atinge os fundamentos mesmos do mundo. Essa é a relação vertical de Deus com os homens. Esse é o olhar que os personagens de Dreyer nos lançam.
É a partir da perspectiva do possuído pelo divino que Renée Falconetti, interpretando Joana D’Arc, nos lança o seu olhar convulsivo, em um dos “monólogos” mais brilhantes da história do cinema, e que Joahannes passeia pelos cômodos da casa se dizendo filho de Deus. A câmera que rola sobre os trilhos e nos embevece com tomadas cada vez mais marcantes; os jogos de luzes e sombras, dos mais equilibrados do cinema em preto e branco; o texto e os jogos cênicos e de linguagem entre os atores. Tudo isso ainda parece ser apenas a atmosfera que Dreyer cria em A Palavra para dar por fim seu golpe de mestre. E esse golpe está alocado justamente na gravidade de sua mensagem. No fundo, Dreyer apenas nos diz a maior de todas as obviedades: a vida é um milagre. Mas com isso praticamente reinventa a roda. Estamos lançados no sobrenatural, e nunca sairemos dele, nem em vida nem na morte. O mistério da ressurreição não é mais miraculoso e inexplicável do que o fato de eu ter duas mãos, cinco dedos em cada uma delas, o céu ser azul e de haver chuva e espaço onde nos movemos, por mais que há cinco séculos não façamos nada mais do que explicar exaustivamente o porquê de todas essas coisas. E o porquê da impossibilidade da ressurreição. É a perda desse sentido milagroso e, portanto, absolutamente indevassável de tudo o que existe que criou o niilismo racional moderno e transformou o milagre em uma espécie de excrescência do funcionamento “normal” das coisas. A normalidade é o Paraíso dos psicóticos.
E é por isso que, segundo Heschel, o objetivo da profecia é lançar ao mundo um grande Não. Voz que se eleva do abismo da consciência, da transcendência mais radical, o profeta aniquila a estupidez de nossas sombras e simulacros, esmaga o nosso “humanismo ridículo”, como diz o filósofo Luiz Felipe Pondé, que quer dimensionar a vida a partir da luz fosca de nossa razão demasiadamente humana. Esse é o sentido de crise estabelecido pelo profeta, crise global, que abrange em si todos os demais setores da sociedade e do pensamento, pois é uma crítica das raízes, que atinge os fundamentos mesmos do mundo. Essa é a relação vertical de Deus com os homens. Esse é o olhar que os personagens de Dreyer nos lançam.
É a partir da perspectiva do possuído pelo divino que Renée Falconetti, interpretando Joana D’Arc, nos lança o seu olhar convulsivo, em um dos “monólogos” mais brilhantes da história do cinema, e que Joahannes passeia pelos cômodos da casa se dizendo filho de Deus. A câmera que rola sobre os trilhos e nos embevece com tomadas cada vez mais marcantes; os jogos de luzes e sombras, dos mais equilibrados do cinema em preto e branco; o texto e os jogos cênicos e de linguagem entre os atores. Tudo isso ainda parece ser apenas a atmosfera que Dreyer cria em A Palavra para dar por fim seu golpe de mestre. E esse golpe está alocado justamente na gravidade de sua mensagem. No fundo, Dreyer apenas nos diz a maior de todas as obviedades: a vida é um milagre. Mas com isso praticamente reinventa a roda. Estamos lançados no sobrenatural, e nunca sairemos dele, nem em vida nem na morte. O mistério da ressurreição não é mais miraculoso e inexplicável do que o fato de eu ter duas mãos, cinco dedos em cada uma delas, o céu ser azul e de haver chuva e espaço onde nos movemos, por mais que há cinco séculos não façamos nada mais do que explicar exaustivamente o porquê de todas essas coisas. E o porquê da impossibilidade da ressurreição. É a perda desse sentido milagroso e, portanto, absolutamente indevassável de tudo o que existe que criou o niilismo racional moderno e transformou o milagre em uma espécie de excrescência do funcionamento “normal” das coisas. A normalidade é o Paraíso dos psicóticos.
A propósito, ambos os filmes nos conduzem ao debate muito delicado entre loucura e santidade, loucura e revelação. Não vou me embrenhar nessa floresta. O mais importante é frisar que Dreyer tem uma posição muito lúcida em relação a isso. Não desmerece o “louco”, ainda que tomado como simples carta fora do baralho. Entretanto, é apenas quando Johannes se “cura” que pode efetuar o milagre. Em nenhum momento há confusão entre espiritualidade e psiquismo, confusão tão marcante no pensamento e na arte do século XX, e que criou uma série de boutades, equívocos e mistificações. Joana e Johannes fazem a vis mystica e crucis. Estão inseridos numa demanda que os ultrapassa, não submetidos à tirania de pulsões que os aviltam. Ao fim, são o Louco e a Criança que operam a Ressurreição. Reconstroem assim o Reino. Ou seja, Johannes não age sozinho, deliberando sobre a realidade a partir de um voluntarismo, ainda que seja inconsciente. É, sim, o intermediário de um milagre que já ocorre, mas que ninguém enxerga. Vocês não acreditam, vocês não acreditam, vocês não acreditam − são mais ou menos estas as palavras que Joahannes repete em seu estado de transe. Claro. Erigimos uma teologia absurdamente racional, organizamos o mundo em torno de uma dúzia de preceitos morais e ainda assim esperamos que o sobrenatural sobreviva? Queremos, mesmo assim, que Deus − viva? Não seríamos aqueles famosos assassinos de Deus, contra os quais o louco de Nietzsche blasfema ao entrar na taverna? Enfim, crer ou não crer, de fato, nunca foi o verdadeiro problema. Como diria Chesterton, o ateu não é aquele que não acredita em nada. Pelo contrário, justamente por ser ateu, é forçoso que acredite em absolutamente tudo. O crente crê apenas em uma Causa, provável embora não demonstrável: Deus. O ateu, ao recusar uma causa primeira e una, acredita na matéria. Ou seja, em tudo o que existe.
É por isso que nos últimos cinco séculos acreditamos na técnica, na ciência, na razão, no darwinismo, na evolução, na política, na ideologia, na transformação social, na fraternidade, na justiça, na psicanálise, nas terapias, na biologia, na física quântica, nas cotas raciais, na emancipação do indivíduo, na felicidade, no marxismo, na liberação sexual, no sincretismo, nas ONGs, nas academias de ginástica, na matéria, no holismo (Senhor, explica-me o que venha a ser o holismo), na revolução, na subversão, na igualdade entre os homens, na vida saudável, na descrição do Universo, isso somado a uma lista tão extensa quanto o próprio Universo. Tudo isso porque acreditamos acima de tudo na liberdade. A invenção da liberdade parece ter sido mesmo um dos maiores desastres da história humana.
O olhar silencioso de Joana não responde. Mais indaga do que responde. É uma navalha atravessando essas inúteis indagações. Como dizem os místicos ortodoxos gregos, “o homem é um animal visitado”. Sim. Visitado por Deus. Ela não se sabe livre, mas sim eternamente cativa. E é justamente essa ciência que a liberta, não da prisão ou do desejo ou do poder ou da religião ou do machismo ou da má consciência ou da depressão ou dos medicamentos ou das injustiças sociais ou da política ou das ideologias ou da libido ou dos complexos ou de sua classe social ou do capitalismo ou do subdesenvolvimento ou do inconsciente ou da simples e cândida maldade. Isso a liberta do mundo, devolve-a ao Reino.
É por isso que nos últimos cinco séculos acreditamos na técnica, na ciência, na razão, no darwinismo, na evolução, na política, na ideologia, na transformação social, na fraternidade, na justiça, na psicanálise, nas terapias, na biologia, na física quântica, nas cotas raciais, na emancipação do indivíduo, na felicidade, no marxismo, na liberação sexual, no sincretismo, nas ONGs, nas academias de ginástica, na matéria, no holismo (Senhor, explica-me o que venha a ser o holismo), na revolução, na subversão, na igualdade entre os homens, na vida saudável, na descrição do Universo, isso somado a uma lista tão extensa quanto o próprio Universo. Tudo isso porque acreditamos acima de tudo na liberdade. A invenção da liberdade parece ter sido mesmo um dos maiores desastres da história humana.
O olhar silencioso de Joana não responde. Mais indaga do que responde. É uma navalha atravessando essas inúteis indagações. Como dizem os místicos ortodoxos gregos, “o homem é um animal visitado”. Sim. Visitado por Deus. Ela não se sabe livre, mas sim eternamente cativa. E é justamente essa ciência que a liberta, não da prisão ou do desejo ou do poder ou da religião ou do machismo ou da má consciência ou da depressão ou dos medicamentos ou das injustiças sociais ou da política ou das ideologias ou da libido ou dos complexos ou de sua classe social ou do capitalismo ou do subdesenvolvimento ou do inconsciente ou da simples e cândida maldade. Isso a liberta do mundo, devolve-a ao Reino.
O grande Não que Dreyer desfere contra o mundo é uma das mais enfáticas recusas proferidas em tom profético. Mas também é, em primeiro lugar, uma descoberta e a abertura de um caminho. Ele diz que a verdadeira crítica ao que nos cerca só nasce quando Deus nos busca e nos visita, e deixamos que ele se infiltre em nossa consciência e a aniquile. O resto são dispositivos racionais, discursivos e pseudocríticos, cuja única função é nos afastar da verdade e regular parcial e homeopaticamente o absurdo da existência. Não dar-lhe um sentido, mas torná-la feliz, como reza o vocabulário da geriatria e da publicidade. E assim não fazemos nada mais do que fornecer respostas cada vez mais eficientes para perguntas cada vez mais descartáveis. Como tudo, aliás.
Leia: http://maiaragouveia.blogspot.com/2009/11/carl-dryer-mestre-de-mestres.html
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