quinta-feira, 13 de agosto de 2009

MARCEL PROUST: O MAIS BELO CREPÚSCULO

Para facilitar as citações, usarei ao longo do texto as seguintes siglas para a obra de Proust: No caminho de Swan (CS), À sombra das raparigas em flor (SRF), No caminho de Guermantes (CG), Sodoma e Gomorra (SG), A prisioneira (P), A fugitiva (F) e O tempo redescoberto (TR). Utilizarei também a forma abreviada Busca para referir o nome completo da obra.
Falar da obra de Proust é nos aproximarmos de um dos pontos mais altos da literatura do século XX e ao mesmo tempo desvendar alguns dos paradoxos deste século. Estes, felizmente, talvez não tenham sido resolvidos dialeticamente, mas tenham simplesmente entrando em extinção. Ao mesmo tempo, ao ler Em busca do tempo perdido, o fazemos sempre com aquela vaga sensação de que grande parte de sua genialidade se deve ao caráter algo idiossincrático de suas representações e mesmo de suas crenças. E isso em nada diminui a sua abrangência artística, tampouco compromete o seu enraizamento histórico.
Quando lembramos que Nerval saía pelas ruas de Paris e passeava pelo Palais Royal com sua lagosta de estimação presa em uma coleira ou quando viemos a saber, com a morte de Satie e a abertura de sua casa repleta de teias de aranha, que o seu piano tinha teclas quebradas, esses dados não nos soam como meras maneiras de transformar o artista em uma boutade. São consubstanciais às suas criações. Enquanto Baudelaire renova a função heróica e, de certa maneira, trágica do gênio, justamente ao levar a um impasse a sustentação dos valores da nobreza dentro da nova condição decaída do artista que se define a partir do século XVIII, Walt Whitman muda toda a poesia ocidental a partir de uma atitude rigorosamente oposta: cria uma nova cosmogonia baseada justamente nos valores da democracia e em uma equivalência ontológica de todos os seres, que se consuma na amplificação e dissolução do eu. Entre esses dois fundadores da “modernidade” corre um abismo incomensurável. E em ambos temos a oportunidade de experimentar o nonsense que este conceito traz em si, bem como os critérios equivocados que ele produziu.
A partir de Em busca do tempo perdido, temos na literatura um duplo movimento, ou seja, um corte transversal que se dá a um só tempo na subjetividade do autor e na história da literatura. Não há evolução em arte, só há evolução do artista − diz-nos esse pintor das flutuações do espírito, das atualidades e das virtualidades do mundo. É isso que produz o efeito de estranhamento desse monumento sui generis, cuja situação ambígua parece nos dizer que Proust conseguiu uma façanha. A de ser, simultaneamente, um dos maiores e um dos menos modernos artistas de seu tempo, contradizendo todos os pressupostos dos “ídolos de fogo” deste século, como observou Valéry.
Em conflito com a frase acima, talvez seja verdade que “o arcaísmo é feito de muitas insinceridades”, como nos diz Proust em sua nota sobre a pintura de Moréas, e isso se dá porque em geral retemos dos antigos “os traços exteriores”, na medida em que os antigos nunca se viram como antigos em relação a si mesmos, porque o antigo “não se voltava para o que era antigo nele”. Essa fidelidade profunda consigo mesmo marca quase todos os grandes artistas. Porém, por mais admirável que seja a questão estética implicada, há aqui um equívoco crítico e uma ponderação ingênua.
O equívoco consiste em ignorar que, muitas vezes, talvez em sua maioria, os antigos se faziam sobre o que era antigo em relação a eles mesmos. Isso é o que nos impede de saber, por exemplo, a exata extensão das crenças dos povos nômades da Eurásia sobre Pitágoras, deste sobre Sócrates, deste sobre Platão e deste último sobre toda filosofia cristã. A ingenuidade consiste em transformar algumas crenças da modernidade em valores absolutos. Fazendo isso, os seus paladinos não se percebem vítimas de si mesmos, na medida em que, ao pronunciar essa sentença, Proust ignora que o seu mundo é perfeitamente arcaico em relação ao de seu contemporâneo Marinetti. Paradoxalmente, à luz de seus silogismos, um dos dois deve ser eliminado, para que nenhum dos dois atinja a posteridade. Se esses jogos estão entre os fundamentos da própria modernidade e gozam de prestígio, isso não nos impede de compreender facilmente como e por que eles também foram a corda com a qual essa mesma modernidade se enforcou.
Mesmo advogando que “o talento é o critério da originalidade” e que esta seria o “critério da sinceridade”, sendo o prazer o critério tanto do talento quanto da originalidade, a obra de Proust, mais do que um marco zero do que virá a ser, é uma espécie de crivo de diversas tendências anteriores e contemporâneas. E isso é importante notar, para situar melhor a espiral que ela representa para a história da literatura. Algumas delas podem ser colhidas diretamente em suas anotações críticas reunidas em Contre Sainte-Beuve e em sua correspondência. Outras são intuídas ou estão dispersas citações diretas e indiretas ao longo da Busca.
Dentre as leituras e assimilações de Proust encontram-se os próprios Nerval e Baudelaire, além de Balzac, Rolland, Stendhal e Flaubert. Nesse ponto, sabe-se da importância desempenhada por Baudelaire e pela teoria das correspondências para o princípio de analogia que estrutura toda a Busca. Não só por ele, mas também pelos simbolistas. A despeito da ausência de um sentido místico, a obra de Proust não é indiferente às traduções estéticas dessas idéias, a partir da sua assimilação pelo cenáculo simbolista. Seja por meio dos princípios arcanos de Swedenborg, que passaram por Blake e pelos românticos até que Baudelaire lhes desse uma das formas artísticas finais, seja pela circulação, entre os artistas e os iniciados na arte do símbolo, de autores como Eliphas Levi (ocultista da devoção de Mallarmé), Julius Évola, Sar Péladan, Stanislas de Gaita, Papus ou das idéias de Fulcanelli e de alguns herméticos.
Nesse contexto finissecular, além de proporcionar gnose autêntica, como fato social as vias de iniciação tornaram-se um expediente para preservar as marcas de distinção social que eram paulatinamente removidas pelas sucessivas revoluções que atravessaram os séculos XIX e XX, bem como pelo materialismo crescente. Contrapartida da famosa cultura da reprodutibilidade, então emergente, conferiam traços de “nobreza” e de singularidade aos seus iniciados, além de servir de mote a esnobes e dândis, à revelia de seus talentos.
Não é outro o alimento estético dos decadentistas, nos quais essas marcas sociais em extinção ganham a versão mais caseira de uma mística da arte, inspirada em Ruskin e Pater, em Rémy de Gourmont e na écriture artiste dos irmãos Goncourt. Por isso o tênue hiato que separa figuras como Wilde e Huysmans de personagens como Axel, Des Esseintes e, no caso de Proust, do barão de Charlus (SG).
Essas torres de silêncio e contemplação, ancoradas em uma renúncia à vida, são centrais para compreender todo o período artístico que vai de 1870 a 1930, conforme o magistral estudo de Edmund Wilson estipula. A obra de Proust não é alheia a essa atmosfera. Ao contrário, representa uma de suas maiores expressões. O que importa é a possibilidade estética de traduzir os ritmos do mundo em uma interiorização sensória; esta é, a um só tempo, descritiva e volitiva, tem a função de reter o objeto apresentado pelos sentidos e, ao mesmo tempo, desmembrá-lo pelo recurso híbrido da memória, por meio do qual aquele objeto apresenta a suas virtualidades, ou seja, os demais objetos e sensações e vivências que estão latentes nele. E frise-se também o fundamento plástico e musical que estrutura a Busca, além de seu fundo filosófico, baseado sobretudo no criacionismo de Bergson, com o qual Proust teve contato muito cedo, por meio de conferências, como George Painter ressalta em sua bela biografia. Mas esses artistas são tão importantes na sua obra quanto o são Francis Jammes e Marterlinck, Montaigne e Mme de Sévigne, Wagner e Van Dyck, Veermer e Tolouse-Laututrec, Mme de Cardaillec e Mantegna, Anatole France e Henri de Rágnier. Porém, foquemos a obra.
Talvez não seja exagerado dizer que há um princípio que se manifesta da primeira à última das mais de duas mil páginas de Em busca do tempo perdido. Ele consiste, em linhas gerais, em uma perspectiva idealizada de todos os fenômenos, sejam eles personagens ou objetos, e na sua conseqüente transformação, decomposição e ruína. O ideal, assim, cumpre o papel dramático, de centro irradiador de sentido. É ele que fornece a força passional para que os personagens ajam e vivam, mas, ao mesmo tempo, o resultado deceptivo é proporcional à força idealizadora daquele e daquilo que se arruína à sua custa. Desse modo, o ceticismo e até o cinismo que encontramos em algumas de suas páginas, que vão do humor e da graça de circunstância à ironia quase histriônica em alguns casos, não é afirmativo, como se enfim o conhecimento do mundo e das paixões tivesse sido acessado e domado. Traz em si, ao contrário, a marca de uma melancolia.
Ela nos sinaliza que o objetivo foi frustrado. Obstruiu-se o percurso cujo intuito era o de conhecer e dominar o outro e o mundo, seja por meio da vida mundana, seja por meio do amor. Em ambos os casos, a exteriorização do eu e sua tentativa de assimilar e ser assimilado à realidade que o cerca é sempre insuficiente em relação ao ideal que conduz esse mesmo eu a essa excentricidade. Do ir-e-vir desses pólos de solidão e de mundanidade nascem os dramas da obra de Proust. Em sua sinfonia, sempre o tom menor predomina, como ruína inexorável de nosso destino, imersos que estamos na relatividade absoluta dos afetos, dos valores e das percepções. Dessa condição, não é possível redimirmo-nos. Aliás, a única forma parcial de redenção seria o salto fora do tempo, quando temos acesso à estrutura primeira da memória e do tempo, fora de suas representações, fato que só se consumaria na arte e que, em linhas gerais, constitui o tema do último volume (TR).
Como recorda Edmund Wilson em seu estudo magistral, o projeto inicial da Busca era o de ser uma sinfonia em três partes. Cada uma delas levaria títulos que se refeririam a um dos andamentos: Idade dos Nomes, Idade das Palavras, Idade das Coisas. A primeira etapa seria dominada pela perspectiva da infância e da adolescência, ou seja, da possibilidade da inocência, e corresponde a dois espaços principais: a província de Combray e os balneários de Rivebelle e Balbec. A segunda trata da vida adulta e tem como espaço romanesco Paris. É a descoberta do amor, uma experiência prévia à entrada na realidade efetiva das coisas, que culmina com o ponto mais agudo da crise deceptiva. A entrada neste contexto existencial está intimamente ligada não só às relações sociais, mas sobretudo às reações amorosas. Ou seja, a terceira etapa corresponde ao próprio inferno, ao exílio na falsidade e na inautenticidade, dado que o movimento de ruína do ideal atinge seu ápice a partir de Sodoma e Gomorra, mas perdura em A prisioneira e A fugitiva. Esse aspecto é interessante, pois nos leva a pensar a obra sob o ponto de vista dos andamentos, e mesmo assim é possível vermos esse leitmotiv que mencionei em todos os volumes e nos três ciclos que se desenvolvem.
Sabe-se que o primeiro volume começa pelo ambiente de Combray, província da avó do narrador Marcel e onde se desdobra o famoso episódio da madeleine. A localização é importante, pois divide em duas a topografia social do romance. De um lado, o caminho de Guermantes, que conduz à alta nobreza. De outro, o de Villeparisis, que leva à vida burguesa e às classes intermediárias. Nesse cenário, a abertura da obra dá-se com a famosa cena da hesitação de Marcel, ainda criança, na cama, esperando o beijo de boa noite da mãe, enquanto seus pais se entretêm com a visita de Swan, um dos personagens centrais. Logo na primeira cena, portanto, estamos diante da obliteração de uma assimilação da espera, e é instaurada a tônica da vigília, o que também de saída sinaliza o estilo anfíbio de Proust em toda a sua obra, esse misto belíssimo de devaneio consciente e de controle inconsciente da escrita.
A centralidade de Swan é importante nessa fase inicial por diversos fatores. Tendo-se casado com Odette de Crécy, uma cocotte de cabaré, e descido socialmente, representa a figura mundana por excelência, aquela que atravessa os estratos sociais, o nobre que é aos poucos assimilados pela burguesia, movimento que é histórico, não apenas ficcional. Mas Swan também se move no campo da idealização, e acaba apaixonando-se por Odette porque esta, embora vulgar aos olhos de todos os outros, satisfaz-lhe os desejos estéticos que, por sua vez, também pertencem apenas à construção pessoal do próprio Swan (CS). Do mesmo modo, Legrandin deseja se aproximar dos nobres Guermantes, Bergotte, o escritor, imagina-se célebre e possuidor de um talento que não tem, ao passo que o músico Vinteuil, autor da célebre sonata tocada na casa dos Verdurin, um dos temas do amor de Swan, por ter sido nesta casa que com conhecera Odette, padece da mágoa do desamor de sua filha (CS). Os Verdurin, por seu turno, também têm a sua contrapartida por alimentarem idéias de nobreza incapazes de se cumprir: vivem em uma espécie de isolamento despeitado, como se quisessem assim neutralizar de antemão o eventual desprezo que viessem a sofrer (CS). No caso deles, a idealização age de modo atípico: motivando o espírito a buscar os valores da nobreza decadente, estes são supervalorizados e temidos, e a frustração surge natimorta, como recalque.
E é logo no começo da obra que começam a cair as primeiras máscaras. Uma delas, explorada na longa digressão final (CS) e retomada no volume seguinte é a que concerne ao amor de Marcel por Gilberte, filha de Swan (CS/SRF). Esse amor, não tendo se realizado plenamente, não só não apresenta uma significação satisfatória do seu fim, como deixa no personagem uma dúvida em relação à essência mesma do amor. O atrito interrogativo será arrastado ao longo do romance, até se concretizar como o inferno da completa inviabilidade, cujo corolário é a sua paixão por Albertine, verdadeiro hieróglifo humano, cujas motivações últimas chegam ao final da obra sem uma definição a contento (AD/P/TR). Assim, vemos o princípio de idealização ruir pouco a pouco, até chegarmos a saber que a princesa de Guermantes é Mme Verdurin, desposada por questões financeiras pelo príncipe após a derrota da Alemanha (CG). A partir dessas rupturas, saímos da primeira instância da obra e adentramos a sua dimensão mais mundana (CG/SG). Porém, essa primeira queda, digamos assim, ou seja, a descoberta do falso prestígio dos Guermantes, sofre ainda uma segunda investida, quando o jovem narrador, de volta a Paris, descobre que Mme de Villeparisis não era tão brilhante quanto acreditava. Revê-a, depois de algum tempo, desclassificada, fazendo-se passar por uma espécie de escritora medíocre, eivada de problemas circunstanciais e de mesquinharias (SG).
Quando pensamos que a teia das relações se estabilizou, mais uma homeostase intervém para retirar mais uma camada da realidade e mostrar de modo ainda mais cru a sua essência. Por intermédio de Charlus, Marcel descobre que o senhor de Villeparisis era uma pessoa desqualificada socialmente, e que havia criado com artifícios o título de Villeparisis apenas para que ele fosse agregado à sua esposa. A mesma Mme de Villeparisis, um pouco mais à frente, reaparecerá, idosa e arruinada, como uma forma de mostrar a impotência patética daquela que havia gozado de tanto poder e exercido tanto a sua impiedade (SG). Essas relações de simulacros que vão cedendo estão por todas as partes; mas ganham mais vivacidade a partir do momento em que entram em cena os jogos amorosos.
É nesse momento que adentramos o reino dos simulacros, cujos representantes mais importantes são Albertine e Charlus, naturezas híbridas e conflituosas, em constante oscilação entre o masculino e o feminino (SG). A perversidade, o egoísmo e a falsidade nos conduzem a um ponto cego do romance, onde o movimento centrífugo gerado pelo princípio de idealização inicial parece ter-se destruído por completo. O pano de fundo ideal que proporcionava a tensão na iminência de sua ruína começa a enfraquecer, posto que o grotesco toma a cena e embaralha os personagens. Os melhores representantes desse mundo do instinto e do egoísmo parecem ser Morel e Charlus. Como romper esse círculo? Possivelmente por um acesso legítimo não á verdade, mas sim à realidade, em sua constituição mais primária e, mesmo assim, indevassável. Porém, a viabilidade dessa instância última, não destruída pelas séries de máscaras e perspectivas que se neutralizam umas à outras, surge apenas no final do romance (TR). Não se trata de uma redenção, mas sim de uma possibilidade de captar a matéria mesma da realidade, em sua espessura mais viscosa, além do tempo e de suas implicações. Para isso a arte, em seu sentido verdadeiro, seria uma das poucas vias de acesso, segundo Proust, a essa verdade que estaria no cerne mesmo de todas as manifestações da vida (TR).
Dentro desse panorama, e mesmo o projeto da divisão ternária da Busca tendo sido abandonado, o segundo volume, À sombra das raparigas em flor, traz como uma de suas duas partes o belo título “Nomes de terras: a terra”, espécie de reminiscência desse estrutura embrionária. Este volume é um devaneio adolescente sobre o amor e sobre todas as questões que marcam a obra de Proust. Depois do fracasso de seu romance com Gilberte, filha do judeu Swan, narrado longamente em forma de epílogo (CS), a meditação sobre essa frustração amorosa prossegue, de maneira bastante significativa, fornecendo elementos para a dúvida cáustica do amor e das relações sociais que vão sendo cada vez mais e com maior intensidade destruídas (SRF). A idealização amorosa, portanto, prossegue nesta parte da obra e, pode-se dizer, expande-se para diversas instâncias.
Um dos temas mais idealizados ao longo do primeiro volume da Busca é justamente a nobreza dos Guermantes, o marcado fascínio que a oposição entre os caminhos de Guermantes e Villeparisis ativa no imaginário do menino Marcel, fato que será aprofundado mais adiante (CG). Porém, antecipando o desdobramento ulterior, em À sombra das raparigas em flor essa idealização já merece algumas pinceladas magistrais. Por seu lado, o teor deceptivo que a duquesa de Guermantes viria imprimir no espírito de Marcel não está isolado; compartilha de outro movimento centrífugo, composto em espiral, e que consiste na edificação de um mito de pureza e a sua conseqüente destruição. Trata-se da atriz Berma (SRF). Essas duas figuras congregam em si boa parte do movimento pendular da Busca, e são pintadas magnificamente.
Ora, antes mesmo do personagem-narrador conseguir, graças à intervenção e aos favores do senhor de Norpois, um ingresso para assistir à interpretação que a atriz faz da Fedra de Racine, já havia reservado páginas e páginas para compor o caráter dessa espécie de heroína dos palcos. O tom algo efusivo e um tanto histriônico que a obra de Proust revela no que diz respeito aos valores e à honra é algo que o coloca como um dos grandes moralistas de todos os tempos. É esse motivo também que o leva a não assumir de saída um ceticismo filosófico ou a meramente aceitar a verdade irredutível das aparências. Não. A questão da verdade em Proust é mais delicada, mais complexa. E um dos aspectos que o atestam é esse atrito entre a glorificação da face alheia, no que ela tem de mais genuíno, e a miséria dos confins mais sórdidos de nossas almas. Tal diapasão, tal captação dos fenômenos mais amplos da vida, tendo um sentido moral como fundamento, produz-nos a sensação de que terá também, como essência, um conteúdo trágico. Não é isso o que ocorre, mas sim o seu reverso. Eis que Proust nos apresenta à contrapartida do drama moral: o cômico. E esse é um dos aspectos mais interessantes da Busca, que vai da ironia aos limites do histriônico e do grotesco, pontuado em diversos momentos da obra, infelizmente impossível de ser aprofundado aqui.
Cabe ressaltar apenas que esse movimento vai agregando a si os personagens, os caracteres, os valores, sempre com o intuito de negar a sua estabilidade e a substância verdadeira de seus atos. Mesmo quando há intencionalidade, há frustração ocasionada pelo destino, como no caso, enunciado pelo narrador, dos verdadeiros motivos que teriam levado Swan a se casar com a vulgar Odette. Na realidade, diz-nos, sua motivação profunda era a de conseguir estabelecer um contato inusitado, possibilitando a Odette a glória da intimidade com a duquesa de Guermantes (SRF). Esse intuito não se cumpre pelas vias de Swan, que morre. Mas sim pelas próprias circunstâncias da vida, pois, após sua morte, de fato a duquesa espontaneamente trava amizade com Odette. Seu sonho mundano, cujo maior satisfação era produzir relações sociais transversais, a um só tempo se quebra e se realiza; há energia deceptiva suficiente para saber que Swan fracassou em seus intentos e, mais que isso, foi varrido pela doença antes mesmo de realizar o seu intuito. Mas essas aspirações, ao se realizarem, ou seja, ao cumprirem seu papel real, objetivo, que já lhes parecia estar destinado, não fazem mais do que lançar a última pá de terra sobre o ideal algo bufo e algo heróico que animava Swan.
Em meio a essas espirais de altivez e desolação, entre esses píncaros de miséria e gratuidade, entre essa comédia altissonante cujas protagonistas são a ilusão perfeita e a realidade insuficiente, começa o outro movimento dessa sinfonia, um dos mais importantes para compreender a obra de Proust. É aquilo que, como o definiu Deleuze, podemos chamar de ritornello, usando um termo da música que é, aliás, mencionado pelo próprio Proust (CS). Quando um tema e uma frase musicais retornam em outro ponto de uma mesma obra, adquirem um novo sentido. Sabemos que é a mesma modulação, uma variedade diferente da mesma frase poética executada há pouco. Mas o que se passou até que houvesse a repetição altera o sentido dessa frase e, justamente por meio da repetição, confere-lhe nova espessura. Esse aspecto é de suma importância, e em À sombra das raparigas em flor tal recurso começa a emergir com toda a sua força. Um dos leitmotiven do primeiro volume, sobretudo da primeira parte, “Em torno da sra. Swan”, como o título diz, é Gilberte. Esta é explicada, referida, reiterado e trançado ao longo de todo este volume, bem como a reflexão dos possíveis motivos que levaram a fenecer o amor entre ela e Marcel, como uma espécie de baixo contínuo ou de neurose obsessiva (CS/SRF). Outro tema que ficou famosa na Busca, além do mais que glosado episódio da madeleine, é a Sonata de Vinteuil. Sabe-se que ela começou como uma música especial das reuniões na casa dos Verdurin. Entretanto, a maneira como ela passa a repercutir no espírito do narrador começa também a produzir uma cascata de sensações, no centro das quais emerge, como regra, a inautenticidade, a impossibilidade de possuirmos o cerne de nossas vidas, dada a impossibilidade de retermos uma mínima frase musical intacta no espírito. Nesse sentido, o narrador, ao tratar de sua sensação íntima em relação à sonata, diz-nos que nunca chegou a “possuí-la inteiramente”, e, justamente por isso, ela “assemelhava-se à sua vida” (SRF).
É fato que alguns personagens servem de âncora ao furor idealizante de Marcel. E parecem sinalizar algumas ordens de realidades, quase como se o narrador nos dissesse de maneira onisciente que havia forças tentando salvaguardá-lo de si mesmo. Esse processo de desmistificação está em episódios simples e até bastante rápidos, como aquele no qual o seu amigo Bloch adverte o narrador de que as mulheres de Méséglise só se interessam pelo amor, querendo dizer com isso, em termos mais prosaicos, que para elas há tudo, menos amor (SRF). Porém, estes estendem-se e se interpenetram em outros, de modo que vão gerando situações mais densas. Outros pequenos sinais compõem o cenário mais amplo da segunda parte de À sombra das raparigas em flor, “Nomes de terras: a terra”. Esta transcorre quase em sua totalidade no balneário de Balbec, onde o narrador passa férias com os amigos Robert, o próprio Bloch e, principalmente, Saint-Loup, com quem trava os diálogos mais densos e chega mesmo a trocar confissões.
A estadia em Balbec é notável sob diversos pontos de vista, dos mais filosóficos aos mais plásticos e estritamente literários. A começar pelo relato da viagem de trem, na qual o narrador, criatura nervosa e asmática, mostra-se tenso diante de uma decisão aparentemente desprezível (coisa recorrente em Proust): tomar ou não café. Decide enfim tomar, o que afeta o seu sistema nervoso e fá-lo desenvolver, em estado de torpor, uma descrição sutilíssima das tramas do veludo azul das cortinas (SRF). Mas a apostasia estética não pára aqui, e, nas descrições praianas, mais uma vez a paleta do pintor Proust mostra toda a sua variedade colorística, seja mostrando um grupo de meninas belas que, saltitando pela areia, mais parecem um borrão composto contra o horizonte, seja descrevendo um jantar no restaurante do Grande Hotel, no qual as figuras aparecem à janela de vidro como se estivessem em um aquário, com requintes de zoologia e de botânica. A comicidade produz nesses casos uma espécie de resgate do ser perdido na inautenticidade. Quando estamos fora da vida que, em seu torvelinho, vai nos expulsando paulatinamente de seu centro de gravidade, resta-nos ou o sofrimento pela condição inexorável dessa primeira idade do mundo e da vida que se perde, ou uma maneira de neutralizar sua ação moral. E, nesse caso, o riso funciona como forma libertadora do luto implícito em todos os atos de reconhecimento do mundo.
As espirais dão suas idas e vindas até estabelecerem um novo centro provisório de imantação. Esse movimento é às vezes semelhante à embriaguez, em outras, à mais refinada mescla de vigília e racionalidade. Em outros momentos, temos um devaneio regrado. Por isso, mesmo tendo o próprio Proust se referido à sua obra como uma catedral e alguns críticos mencionarem a metáfora do tecido, creio que o mais preciso seja a de um novelo. O seu método não é compositivo, mas decompositivo: parte de uma sensação, de um fato, de uma fisionomia, de uma conversa, e se incumbe de trazer à tona as suas virtualidades subjacentes, que são em última instância infinitas. Essa sensação de infinito que respiramos na Busca é o que lhe confere um estatuto quase religioso, mesmo sendo sua radicação tão terrena e secular. Talvez seja a mesma sorte de qualidades do espírito que experimentamos nas grandes obras de arte, mas também nos momentos de vida legítima, que, na lógica de Proust, paradoxalmente, são muito poucos. Quase inexistentes, dir-se-ia.
Ou seja, as digressões vão destecendo o novelo do pensamento mesmo depois que todas as margens já foram ocupadas, pois nada melhor do que esta obra para colocar-nos em contato com as margens da linguagem. Quando uma dobra é desfeita, é sempre possível encontrar novas sutilezas a esmiuçar e a desdobrar. Como eu disse, esse movimento vem marcado por um rigoroso senso de perda da inocência, de irreversibilidade. Entretanto, há sim, agora e e sempre, o retorno, o eterno retorno das coisas, quase como querendo demonstrar a nossa insuficiência diante da efetividade do mundo alheio ao nosso destino e à nossa vontade. Nesse sentido que a obra de Proust cumpre quase esquematicamente as leis alquímicas da diluição e da coagulação, solve et coagula, de uma das formas mais conscientes vistas em arte. Enfim, a mise-en-scène proustiana de À sombra das raparigas em flor chega a seu término, que não é a verdade, mas sim um dos tantos nós de tensão no qual o espírito se reconhece diante de sua decifração impossível. Esse ponto é o episódio e o personagem do pintor Elstir.
O papel de Elstir, definido como um célebre pintor, amigo de Swan, que vive em Rivebelle, região contígua a Balbec, é central. Marcel, despertando a sua admiração por aquele personagem, começa a freqüentar o seu ateliê e a ensaiar uma amizade. Em uma dessas visitas, o narrador fica surpreso diante de um dos quadros. A longa descrição, misto de sensação e forma objetiva, desperta a sua curiosidade sobre aquele rosto indefinido que ao fim de indagações, sugere-lhe um travesti. É quando por fim descobre que se trata de um retrato de Odette de Crécy, pintado por Elstir em sua juventude (SRF). Não por acaso, é a partir desse momento que o narrador insere o tema de Albertine, personagem que é um dos leitmotiven da Busca e que ocupará lugar de destaque nos volumes seguinte. Mais que isso, será a sua namorada, em uma vida a dois que pode ser traduzida como um pesadelo de ciúme e auto-anulação (SG/P/AD).
Pode-se pensar que Elstir é um ponto de viragem entre o ideal e o real. Mas de uma viragem, como era de se supor, sem retorno. Nele o conflito entre o princípio de idealização, cujo mais alto núcleo irradiador é a arte, entra em colapso. Diferente de Berma, que se revela uma atriz mesquinha, totalmente aquém da potência idealizada por Marcel, Elstir não o decepciona. Pelo contrário, fornece outra forma de negação da vida: o simulacro. Marcel tardou a reconhecer o rosto de Odette naquele ser andrógino. Pois bem: esse equívoco é o que compõe a própria realidade e a essência mesma da vida, diria Proust. Pois não há limite entre a representação e a falsidade, assim como não o há entre a falsidade e a minha condição intransponível em relação aos outros. Se não posso conhecer o outro, se o outro é e sempre será opaco, oculto, uma parcela indecifrável de mim mesmo e entretanto imerso na região mais profunda de meu ser, tampouco a representação artística esgota a potência de simulacros de que a vida é repleta. E, nesse caso, tanto o conhecimento quanto o autoconhecimento são uma farsa. De certa forma, com Elstir a arte se fratura, rompe-se como núcleo de gravitação ideal. E não é por acaso que, a partir do volume seguinte, que a descida ao inferno da inautenticidade vai ganhando cada vez mais espessura e realidade (CG).
Essa guinada do fim de À sombra das raparigas em flor representa o poder da arte de sutilizar a aparência até destruí-la. E parece assim querer demonstrar-nos que, para Proust, essa seria a vingança possível da vida contra a vida. Seria o golpe de mestre que poria de pernas para o ar a interrogação maliciosa que as formas nos lançam, sem contudo fornecer-nos sequer uma saída provisória, à medida que a ilusão se calcifica e a dimensão ideal só existe na memória, como passado. Aliás, sequer assim. Pois o passado também retorna e, ao retornar, paradoxalmente, deixa de ser eterno, negando parcialmente o seu estatuto. Nesse sentido, alterando a premissa de Oscar Wilde, para Proust a arte não existe para nos salvar da verdade. Ela é a verdade que nos confere existência. Mas esta conclusão é o ponto de partida e o de chegada de Em busca do tempo perdido. No meio, o inferno da inautenticidade, da mentira, da falsidade, do relativismo moral, em suma, de todas as formas possíveis de não habitar o cerne do real, sempre inapreensível. É esse o espaço privilegiado ocupado pela arte, verdade metamórfica, incompleta, sempre mostrando seu misto de sonho e silêncio, de miséria e esplendor, mas ainda assim mais fiável do que os conceitos ou a pura experiência, em seu estado bruto.
Desde o Dom Quixote a literatura tem sido o palco privilegiado da encenação de um drama que é humano, mas também cósmico. Épica da negatividade, a essência da literatura tem-se mostrado na sua aptidão de mostrar de maneira consumada a excentricidade do eu em relação à verdade, que é proporcional à consciência que esse mesmo eu é capaz de ter do outro e de si mesmo. O resultado desse conflito, no qual o grande tema é a incapacidade do espírito reassimilar em si a substância do mundo e, consequentemente, tornar a ser assimilado por ela a contento, é o movimento pendular da linguagem que acaba por encontrar a sua edificação ideal sobre a perfeição de sua própria ruína.
Essa ascendência do negativo, essa exaustão do espírito que, quanto mais segue em busca de sua superação e de sua completude, mais se aprofunda nas regiões abissais do vazio, da morte, do exílio e do desespero, podem ser vistas como uma espécie de coração da arte moderna. Nesses termos, a obra de Proust não é a inauguração de uma nova literatura, mas o canto agônico de um mundo que não mais existe e a mais integral recapitulação de um dos fundamentos da ficção: o tempo. Sua grandeza depende de um ideal, e mesmo as formas de aviltamento e de impotência que ela nos sugere usam como parâmetro essa idealidade pressuposta. A ruína da ruína, ou a ruína dos valores, como conseqüência nefasta do próprio projeto da modernidade, transformou a obra de Proust e suas preocupações em uma espécie de questão clandestina, para não dizer anacrônica. E se é para recorrer a paradoxos, a realização empírica dos ideais da modernidade, ou seja, o esvaziamento do real, que foi pulverizado em uma série de infinitos pontos de vista que não se completam, que nunca correspondem ao ideal que impulsiona o próprio sentido concreto da existência e da vida, promoveu a inviabilidade e a iminente destruição destas mesmas existência e vida. A eventual crítica que podemos fazer à obra de Proust, portanto, diz respeito mais à sua vigência do que à sua efetividade artística. Dentre as diversas metáforas de que dispomos no oceano de metáforas que é Em busca do tempo perdido, podemos utilizar a mais trivial, pois não é apena da originalidade que deriva seu verdadeiro encanto. Sendo o mais belo crepúsculo da literatura, ela nasceu da dignidade de sua auto-anulação. Porém, com seu veneno, não gerou o seu antídoto. E quanto mais deslocada de nosso tempo ela for, tanto mais essencial ela será.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Pedra de Luz: entrevista cedida a Carlos William, Flávio Paranhos, Francisco Perna Filho e Edival Lourenço

Carlos Willian Leite - Onde começa sua genealogia?
Minha genealogia de nome vem do meu pai, embora não saiba ao certo a origem. Filho de pernambucana com mineiro, nasci em São Paulo. Minha origem estelar vem da mutação dos unicelulares, da evolução, dos desdobramentos e infinitos acidentes materiais que resultaram em um planeta que se chama Terra e em seres bípedes que se chamam homens e que escrevem coisas chamadas poemas. Minha genealogia espiritual vem de todos os poetas, filósofos, historiadores e artistas que admiro e com quem partilho outro tempo e outro espaço no mesmo presente. Minha genealogia cotidiana vem dos rostos e paisagens que vi, do que toquei, do que passei, do que passou por mim.

Flavio Paranhos - Rodrigo, sua formação é em Letras, mas você demonstra grande intimidade com a Filosofia. Para sua literatura isso é bom ou ruim? Em outras palavras, dominar a filosofia pode significar ser dominado por ela? A "contaminação" é sempre benéfica?
Boa pergunta Flavio. Hölderlin tem uma definição curiosa, engraçada, segundo a qual a filosofia seria o sanatório dos poetas. Nesse sentido acho que ela pode nos salvar, mais do que contaminar ou castrar. A literatura que mais leio consiste em filosofia, história, poesia e ficção breve. Durante algum tempo tive dilemas sobre essa questão. Se a literatura de gênero crítico e analítico tolheria a criativa. Mas hoje penso que, no fundo, toda grande filosofia é grande literatura. Há mais poesia em um bom filósofo do que em muitos poetas.

Flavio Paranhos - "Existe algo mais provocante para o poeta do que sua relação com a palavra?", pergunta Heidegger, e eu me permito perguntar a você. E seguindo com ele: "nenhuma coisa é onde a palavra faltar" (Heidegger se apropria do último verso de um poema de Stefan George). Qual sua relação com a palavra? Acredita em sua força?
Pensar a palavra a partir da concepção de Heidegger é um trabalho fascinante. Em um ensaio brilhante sobre Rilke ele nos diz que quando passamos pela floresta passamos por dentro da palavra floresta, quando passamos pelo poço passamos pela palavra poço. Ele concedeu uma dignidade à poesia poucas vezes vista, na medida em que a colocou como voz da origem: a filosofia não explica a poesia, mas aprende com ela. Nesses termos e nos termos de outros filósofos a palavra ganha uma potência que me atrai muito. Quebra-se também uma dimensão mais analítica ou positiva que julgo empobrecedora. Gosto de pensar a palavra nesse campo de conceitos. Também me interessa muito a relação entre linguagem e pensamento mítico.

Flavio Paranhos - Pelo que sei, você é um admirador de Hilda Hilst. Você conhece seu teatro (editado pela Nankin)? Se o conhece, o que acha? O que explicaria ser tão pouco explorado?
Infelizmente não conheço o seu teatro. Quero conhecê-lo, porque quero ler toda sua obra. Conheço bem a prosa, sobretudo aquela mais antiga recolhida no livro Ficções, e toda a poesia. Hilda é uma autora excepcional. Uma das grandes escritoras da segunda metade do século. Sua literatura é difícil. Muitas vezes anárquica. Talvez venha daí certa resistência.

Edival Lourenço – Filosoficamente a poesia entra na categoria dos “inutilitários”. Como a poesia, sendo “inútil”, possa ter utilidade para a vida das pessoas?
A inutilidade pressupõe uma relação necessária e um contraste com o mundo dos instrumentos e dos fins. Isso pode gerar uma visão da poesia como ornamento ou como adereço, o que é bastante criticável. Diria que ela é intransitiva, não inútil. Esse seu caráter intransitivo não se dá apenas na linguagem. Abre uma clareira de sentido que nos remete à experiência originária, que é ao mesmo tempo a mais universal e a de mais difícil apreensão. A experiência poética nasce da tensão do arco dobrado sobre a lira, para lembrar o sempre oportuno Octavio Paz. É nesse sentido que a poesia pode ser revolucionária. Ao cumprir radicalmente o retorno ao eixo estruturante da experiência e do imaginário, encontra nele um manancial de possibilidades que não são contempladas pela nossa vida cotidiana, regrada por uma lógica quantitativa e instrumental. Nesse diapasão, pode nos colocar em contato com aquela moral lúdica de que fala o grande filósofo Vicente Ferreira da Silva. E assim cumprir a sua revolução, entendida no sentido etimológico: aquilo que volta a seu centro transfigurado.

Carlos Willian Leite - É possível hierarquizar a poesia brasileira, sem cometer injustiças? Aliás, existe poeta injustiçado?
As injustiças acontecem justamente por conta de uma má hierarquização ou de sua ausência. A diversidade é fundamental. Mas dizer que toda a sua gama de matizes se equivale é burrice. É o mesmo que anular o seu próprio princípio heterogêneo, o que é uma contradição. A crítica, em termos gerais, deve ser analítica, mas também judicativa. Deve resultar do juízo de um leitor que já leu impessoal e imparcialmente de tudo, e por isso faz de sua leitura um terreno, senão isento, o mais objetivo possível. O crítico é uma espécie de medium entre a tradição e a obra. Seu juízo deve sempre transcender a esfera privada de seu gosto sem esquecer a contingência histórica de sua leitura. Nesse sentido ele é um leitor muito especial. Mais do que fruir a obra individualmente ele a lê como eixo estruturante de um fio secular que se realiza nele e que nele se objetiva. Quanto aos poetas injustiçados são muitos. O cânone é uma coisa movente e na maioria das vezes confuso. Todas nossas certezas cabem aos mortos. É difícil avaliar o vivo. Os melhores poetas geralmente demoram décadas para serem tidos como tais. Às vezes só postumamente. É impressionante o medo que temos de estabelecer valores e hierarquizar as coisas. Isso é fruto de uma cultura de populismo e demagogia. Creio que isso aconteça porque ainda confundimos bem e mal com bom e ruim. Atribuímos sempre causas transcendentes e morais a fenômenos puramente artificiais e contingentes. Nietzsche diria que o fazemos por sermos ainda animais religiosos. Em nós ainda predominam o espírito gregário e o gosto pelo rebanho.

Edival Lourenço - Você afirmou em entrevista que “Eles (os escritores), como os loucos, são todos inocentes”. Você compartilha das idéias platônicas de que os escritores são seres sem razão, leves, que se deixam guiar pela voz das musas?
Uma das coisas que mais me interessam é a relação entre poesia e loucura. A idéia platônica do poeta como portador do furor divino é das mais ricas. É uma tradição que vem de Platão, mas que se atualiza em muitos e muitos momentos da história de maneira diversa, até contraditória. Até Lorca chega a falar do daimon, e defende a poesia como possessão. Assim escreveu o Poeta en Nueva York, um dos melhores livros de poemas do século XX. Quando disse que os poetas são loucos queria apenas enfatizar a liberdade radical de criação. O que me incomoda é a avaliação crítica posterior dessas criações e o lugar que elas ocupam na sociedade e na vida intelectual. Aí há distorções que devem ser debatidas e analisadas.

Francisco Perna Filho – Aí você toca num ponto interessante, possibilitando uma retomada da pergunta anterior. Nós sabemos que não há semilouco, como também não há meio poeta, o que sabemos é que, por mais que se queira atribuir inspiração e desregramento aos poetas, as suas obras são fruto de muito trabalho e estudo, daí concluirmos que todo juízo deve ser assentado em conhecimento prévio, para que, ao emiti-lo, não o façamos artificialmente, como é o caso de pseudocríticos que, pelo imediatismo midiático, cometem os maiores desatinos, e um deles é julgar um escritor – baseando-se apenas em uma obra dentre as tantas que ele (o escritor) escreveu. O que você nos diz sobre isso? Já cometeu tal pecado?
Sim. Mas eu sou um dos maiores defensores do estudo e de que a arte é fruto de um longo, exaustivo e intenso trabalho. Esse debate entre furor inspirado e studium é algo que atravessa praticamente todas as poéticas e artes retóricas de todos os séculos. O problema que você coloca é uma banalização extremamente grosseira do poeta como inspirado, que desconhece as regras da arte e que vive da própria áurea que criou em torno de si. A imprensa e a mídia de modo geral colaboram para a disseminação desta visão pobre talvez porque ela seja mais vendável e conveniente. Para mim não há oposição entre domínio técnico e loucura poética. Há gradação e diferença de ênfase em cada poética e em cada autor. Quanto a julgar um escritor por uma só obra e causar alarde em torno disso, são coisas diferentes. É bom conhecer todo o trajeto de um autor. Mas se ele oferece uma obra imaginamos que ela, como obra, tenha que se sustentar, ter alguma autonomia. Parece que Picasso chegou a escrever peças de teatro. Não as conheço. Mas seria errado um crítico julgar os erros e acertos de suas peças tendo em vista o gigantismo de seu trabalho plástico. São obras distintas. Devem ser vistas distintamente.

Edival Lourenço – Em seu poema Ezequiel, de Pedra e Luz, você se apropria de um tom deliberadamente profético e faz, digamos, uma neoprofecia. Usa elementos da antiga tradição para falar de coisas que são presentes (ou seriam perpétuas?). Seria a poesia uma nova forma de profetizar? De se fazer profecia ainda que laica?
A pergunta vai ao âmago de boa parte do livro. Agradeço a sua leitura atenta e a possibilidade de falar dele. Uma das idéias desse livro é a de que a poesia é uma criação intempestiva, para usar um conceito de Nietzsche, retomado por Deleuze. Ela nega o binômio histórico-eterno, que estaria ligado a um dualismo de base empírico-transcendental, e tenta criar um tempo de pura duração e imantação. É o pêndulo que oscila entre esses dois extremos sem se ater a nenhum, porque o intempestivo é o desdobramento de uma potência, de um conjunto de forças, não a configuração metafísica de uma essência. A poesia não está submetida ao tempo, embora nasça dele, e não é eterna, embora queime para além dos limites contingentes de nossos corpos tragados pela história. Por isso é muito importante para mim esse esteio mítico, do qual geralmente me valho para descrever uma situação ou pintar um estado de coisas atual. Nesse poema, como você bem notou, a recorrência é bíblica, recorrência que por sinal me interessa e vem me interessando cada vez mais. Mas há outros elementos da tradição que sinto necessidade de atualizar, sempre tendo em vista o nosso horizonte atual, a minha vida, a nossa experiência de homens imersos no tempo e habitantes da história. Há um belo ensaio de Heidegger que trata da palavra como imagem do mundo. Em outra oportunidade, o filósofo diz-nos que a poesia é o que dá fundamento à história. Creio que ele o afirma nesse sentido. A linguagem (e no caso a linguagem poética) é produto do tempo, mas o lança a um futuro incerto e, assim, produz outros tempos vindouros em sua virtualidade. O mito não é produto da história: ele a produz. Essa movência é bastante rica para todas as formas de criação e para o pensamento.

Carlos Willian Leite - A Heloisa Buarque de Holanda disse que você se equivoca quando critica o Paulo Leminski, porque não há só uma régua para se medir o valor e a qualidade da produção artística, e que o Leminski até hoje mobiliza leitores porque expressou de forma bastante eficaz o ethos de seu momento geracional e político...
A entrevista na qual faço essas críticas foi dada em uma fase muito turbulenta da minha vida. Continuo pensando as mesmas coisas. Mas acabei sendo um pouco agressivo e faltou fundamentação. Aproveito agora para externar publicamente essas desculpas. A poesia do Paulo Leminski tem a virtude de transitar em vários setores do público leitor. Mesmo sua derivação para a música popular deu canções belíssimas nas mãos desse grande artista que foi Itamar Assumpção. Mas ela, em sua fatura, para conseguir essa elasticidade, usa recursos muito primários e se atém a efeitos superficiais de sentido. Não é possível ter tudo. O que acho errado é se reverenciar Leminski como um dos grandes poetas brasileiros. O lugar dele está amplificado. E isso eclipsa outros poetas cuja linguagem é menos acessível, mas muitas vezes mais rica. Quanto a não haver uma só régua para aferir valor, isso é quase como dizer que valor nenhum deve ser aferido. É nos reconhecermos vencidos pelo vale-tudo do relativismo, que é a maneira disfarçada com que a ideologia liberal vende seu cânone para que continuemos sendo colonizados cultural e intelectualmente. Para que continuemos sendo escravos de centros de poder intelectual e poético capazes de produzir Rilke, Trakl, Perse, Celan, Éluard, Helder, Pound, Eliot, entre tantos outros. Quanto às gerações, um dos problemas no Brasil é que nos preocupamos tanto com décadas e gerações que acabamos esquecendo o século e o milênio.

Francisco Perna Filho - Quando você fala em “escravos de centros de poder intelectual” e cita grandes nomes da poesia universal, reflete a influência que estes poetas exerceram e exercem sobre nós outros, não estaria aí, ao combater este centro de influência, o senhor querendo negar a sua dívida para com eles (os poetas citados ou outros não mencionados), mesmo que de forma indireta?
De maneira nenhuma. Estou dizendo exatamente o oposto. O que precisamos é ter a humildade e a inteligência de reconhecer nosso lugar periférico diante da economia simbólica mundial. Só depois desse reconhecimento podemos dar a guinada que nos conduza a uma posição interessante. Enquanto ficarmos camuflando nossa indigência com sociologia duvidosa e enquanto formos o galhinho que quer passar por tronco à custa de teoria ruim, continuaremos a ser o celeiro intelectual do mundo. E continuaremos sendo ventríloquos do que eles produzem, sem a mínima capacidade de criar algo à altura. Os álibis culturalistas são grandes responsáveis pela nossa escravidão. Só lendo a melhor literatura do mundo pode-se produzir algo equivalente. Coincidentemente, ou seria por ironia do destino, essa literatura é produzida nos países ricos. Deglutamo-la.

Edival Lourenço – O verso 82 do poema East coker do livro Quatro Quartetos (1943) de T. S. Eliot, ele diz que “A sabedoria encerra apenas o conhecimento de segredos mortos”. No seu poema No sentido da terra (que por sinal me lembrou o tom de Terra devastada), parte III, você diz que “É no sentido da terra que temos que cavar um mundo novo./ Na fenda da artéria (...)/ O sol do sono. Estômago entre ciprestes”. “Estômago entre ciprestes” me soou como tumba, “segredos mortos”. Até que ponto você foi influenciado por Eliot? Você acredita que o passado é a fonte de toda a “sabedoria literária”?
Eliot é um poeta excepcional. No Centro de Estudos Cavalo Azul, onde leciono e que é dirigido pela poeta Dora Ferreira da Silva, chegamos a ler a instância Little Gidding dos Quatro Quartetos. A sua observação é bastante pertinente, agradeço e me sinto muito envaidecido com a comparação. Porém, em termos gerais, além da minha pequena estatura diante de um poeta como Eliot, o que distingue os poemas de Pedra de Luz, em especial esse, dos Quartetos, é uma diferença de poéticas. Eliot é muito ligado a uma tradição tomista e os Quartetos são praticamente a culminância de suas convicções religiosas e de seu credo literário. Toda a sua estrutura é escalar e se cumpre em um movimento ascendente, que se dá com a ascensão da chama que se transforma em puro Amor. O diálogo direto é com a Commedia, com alguns poetas franceses e com Tomás de Aquino. Minha poesia é mais telúrica, mais ligada a esse mergulho no sentido da terra, no espaço interior do mundo, de que fala Rilke, também desconsiderando as diferentes envergaduras. Com relação à importância desse domínio dos mortos e de seus segredos, aí é um campo que me interessa muito. Você percebeu muito bem a importância dessa voz que sopra dos tempos imemoriais. Tento sempre atualizar essa tradição e esses dados seculares na poesia. Mas confesso que não tenho a convicção de Eliot no poder do passado como fonte de sabedoria. Esse é um lado de sua obra: ser um teatro que encena outras obras. Mas a valorização da tradição, sobretudo do período medieval, como grande núcleo coeso, religiosa e intelectualmente falando, é bastante discutível. Também há aí um princípio de mortificação implícito: toda a história é vivida como máscara e, portanto, criar é fugir de si, não exprimir-se. No entanto, conhecemos grandes poetas que praticamente quiseram aniquilar essa tirania impessoal da tradição, como Whitman. Esse fato não o diminui. Mas o torna sim mais interessante. Talvez por isso, por essa crítica da tradição, Eliot e Pound o tenham repudiado.

Edival Lourenço - Numa entrevista você afirma que um de seus poetas preferidos é Augusto dos Anjos. Mas a estrofe:
Eu, filho carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco,
do poema Psicologia de um vencido, que é uma das mais popularizadas do autor, não é horrorosa por qualquer ângulo que se olhe?
Julgar Augusto dos Anjos a partir de critérios de bom ou mau-gosto é ainda não ter compreendido Baudelaire. Augusto dos Anjos não é apenas um dos maiores poetas brasileiros. Ele é um poeta importante do século XX. Se não tivesse nascido em Pau D’Arco, mas em Berlim, e escrito em alemão, seria lido como um dos bons expressionistas. Há um conceito que gostaria de desenvolver teoricamente e que pode ser traduzido como princípio de negatividade. O Eu realiza esse princípio em uma escala que poucas vezes se viu em poesia. Ele equaciona, na poesia, algo que vem explícito no título de um de seus poemas: um vandalismo poético. Ele destrói o positivismo com a ascensão ao Nirvana. Mas destrói as filosofias orientais fazendo-as imergir na carne que apodrece. Destrói o sujeito e o subjetivismo com uma tesoura bramânica. Destrói a ciência com a objetivação do Espírito. Mas desloca a Idéia para fora do mundo. Cria uma involução monista a partir do evolucionismo. Destrói o idealismo com o elogia da matéria. Destrói o cristianismo propondo a infinita e eterna transformação desta mesma matéria. Mas deixa a sua origem em suspenso, ao sugeri-la eterna. Expulsa o Espírito Santo e ao mesmo tempo atrofia Eros. Em uma implosão, destrói a poesia, como apostasia do belo. Por fim, deglute a crítica, propondo um lugar anômalo, fora das instituições, e assim praticamente anuncia a sua falência, para usar o conceito de Leyla Perrone-Moisés. O sorriso irônico das fotos do poeta se endereça a todos os leitores e críticos que estão até hoje procurando inutilmente conceitos e gavetinhas nas quais guardá-lo. O título de um livro de Antonio Negri definiria bem a sua poética: anomalia selvagem. Ele é uma força que não pode ser domesticada. Por isso a importância de sua poesia. Por isso a sua urgente modernidade.

Flavio Paranhos - Sou forçado a concordar com Edival Lourenço quando perguntou a respeito de Augusto dos Anjos. Não acho que se trata de compreender Baudelaire (ou Poe, ou Schopenhauer), mas de se enxergar só o que há. E o que há não é muito rico. Portanto eu pergunto, forçando um pouco a barra, será que não se está a superestimá-lo?
Podemos criar vários padrões valorativos, vários modelos de análise. Não digo que não haja dados objetivos que forneçam limites para a interpretação. Mas o leque de possibilidades de leitura de um mesmo autor é bastante grande. Aqui precisaríamos pegar a obra de Augusto dos Anjos e propor praticamente um diálogo à parte só sobre ela, para debater esses diversos pontos. Frisei a importância de Baudelaire apenas como um autor que deu uma guinada no estatuto da representação e do belo. Augusto dos Anjos segue seus passos, sem fazer nenhuma equivalência valorativa entre os dois poetas, mas apenas ressaltando a convergência de suas poéticas.

Francisco Perna Filho - Não há dúvida quanto a importância de Augusto dos Anjos: muito lido, difundido, estudado. Agora, tocando em contemporaneidade e ausências, o que você tem a nos dizer sobre Gerardo Mello Mourão. Por que ele é pouco difundido (ou estou enganado)?
Gerardo Mello Mourão é um ótimo poeta. Um dos fortes poetas brasileiros em atividade. Talvez o isolamento dele se deva a dois motivos, um formal e outro ideológico. O formal é pelo fato de sua poesia, com forte base mítica e histórica, destoar de uma tendência mais hegemônica que vem predominando nas últimas décadas. Por outro lado deve haver resistência a ele devido às posturas políticas que ele assumiu. Acho isso entristecedor. Citando versos do grande poeta Mário Faustino ditos no Terra em Transe do gigante Glauber: política e poesia são coisas demais para um homem só. Há grandes homens que cometeram erros históricos. Não quero minimizá-los, estetizá-los ou despolitizar a arte. Estamos todos enovelados em idéias e atos. Não há como escapar. Duas das mulheres que foram importantes na minha vida são judias. Quero ser lúcido o bastante para que isso não me impeça de reconhecer que Heidegger e Pound estão entre os intelectuais e poetas mais importantes do século XX. Mais que isso: amar o trabalho deles. No fundo, é o velho ditado: não se corrigem os erros da história com mais erros no presente.

Carlos Willian Leite - O mini-conto paranaense a la Dalton Trevisan é uma tendência lingüística ou é preguiça mesmo?
Não saberia responder essa pergunta. Li pouco o Dalton Trevisan porque tenho me distanciado desta poética da concisão. Mas conheço ótimos leitores que gostam de sua obra.

Edival Lourenço - No conto A partida do trem, do livro Onde estivestes de noite (1974), Clarice Lispector afirma através de uma personagem, possivelmente um alter ego, que “Eu tentei ler Joyce, mas, parei porque era muito chato”. Como você vê essa afirmativa, partindo de Clarice Lispector?
É a opinião da Clarice, ou melhor, desse pretenso alter ego. Há inúmeros leitores e escritores que também a acham uma chata e têm seus motivos e argumentos pra isso. É muito saudável que os escritores tenham posições e gostos definidos e argumentem em favor de suas idéias. Para mim Joyce é um dos maiores escritores de todos os tempos. O Ulisses é um monumento que aparece de século em século.

Francisco Perna Filho - Não seria Ulisses – para muitos – indigesto por conta da tradução de Houaiss? Você viu o trabalho de tradução Bernardina da Silveira Pinheiro?
Não vi ainda a tradução da Bernardina da Silveira Pinheiro. Gosto da tradução do Houaiss. Seria preciso fazer uma análise cuidadosa das duas pra ver os ganhos e perdas.

Carlos Willian Leite - Por que a crítica literária migrou para as universidades? Qual a importância da teoria literária?
Não diria que a crítica migrou para a universidade, mas sim que ela minguou na imprensa. Isso é resultado de um problema muito sério que é da ordem da economia simbólica dos dias de hoje. Cada vez mais a cultura é tida como digestivo e a literatura como um subproduto de uma cadeia comercial indistinta. O espaço de reflexão necessário a uma avaliação crítica que tenha em vista apenas os critérios literários vai sumindo. Resta uma mescla de colunismo social, jornalismo informativo, diluição de teoria, impressões pessoais, cartéis mantidos entre editoras e jornais. Na universidade estão algumas das pessoas que mais entendem de arte e de literatura no Brasil. Mas o afastamento é pernicioso, porque cria um abismo entre as duas instâncias e bloqueia a divulgação da teoria produzida na universidade bem como a absorção, por esta, do que de melhor está sendo produzido na literatura atual, criando um descompasso, uma idiossincrasia. A teoria nos dias de hoje tem uma importância gigante. Todas as invectivas contra a teoria e a universidade são produzidas por um discurso espúrio, demagogo e populista. Sob o pretexto da universalização e da acessibilidade do conhecimento defende-se sim a sua aniquilação, na medida em que se questiona um dos seus cernes, que é o seu caráter não-instrumental. A crítica à teoria, na maioria das vezes, pactua com um ideal liberal cujo intuito é a destruição da ciência, leiloada em benefício da eficiência. Em outras palavras, é praticamente um projeto de recondução à barbárie.

Carlos Willian Leite - Qual sua opinião sobre os críticos brasileiros? Existe isenção crítica?
A pergunta é muito genérica. Falar na crítica ou em críticos brasileiros é querer abranger milhares de quilômetros de erros, acertos, disparates e quejandos em algumas palavras. A generalidade sempre produz injustiças.

Edival Lourenço - Hoje em dia, uma das formas da crítica, principalmente os resenhistas, menosprezar uma obra é tachá-la de regionalista. Obras como Dom Quixote, Hamlet, Abril despedaçado são, num sentido amplo, regionalistas. A que se deve esse cacoete de parte da crítica nacional?
A interpretação de algumas destas obras que você menciona como sendo regionalista é questionável. A interpretação regionalista do Quixote, por exemplo, é algo que vem na Espanha com a Geração de 1898 e é de forte extração romântica. Mas hoje está bastante datada. De qualquer modo, você tem razão, é errado reduzir o termo regionalismo a um cacoete, na medida em que é uma designação teórica e técnica para um tipo de literatura que, descontados os matizes e nuances, pode abranger autores monumentais como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Esse problema se relaciona ao mencionado acima, ao descompasso entre teoria e imprensa. Os críticos usam e abusam de pressupostos teóricos, mas escamoteiam ou muitas vezes ignoram sumariamente as suas origens. Assim, cria-se uma bagunça de conceitos. A literatura e os leitores só perdem com isso.

Carlos Willian Leite - Ainda no aspecto da representação, olhando pela ótica aristotélica, é possível se falar em ética na poesia?
Aristóteles foi e continua sendo uma das pedras-de-toque para se pensar a dissociação entre ética e representação. Ele secciona a representação dos juízos morais. O que é belo em arte pode ser vicioso em termos civis. Mas se tal coisa que é viciosa no nível da representação consegue se ultimar como representação, deve ser julgada bela, a despeito de sua conotação ética. Essa questão está na Poética e na Ética, pelo que me lembro. É uma grande premissa. Bastante civilizada. No nosso tempo essas relações se tornaram complexas, e ganharam agravantes políticos. Mas acho-a válida e necessária, ainda mais nos dias de hoje, onde predomina o mais asqueroso pensamento politicamente correto.

Edival Lourenço - O filme 2 filhos de Francisco é sucesso de público e de crítica, sendo elogiado inclusive por pessoas que praticamente detêm o “monopólio do bom gosto”. Você acredita que com isso a música sertaneja estará absolvida da pecha de “brega”?
Se isso ocorrer será um sinal de que vivemos em um país agonizante, que está às vésperas da extinção. Uma pessoa que diz gostar de música sertaneja industrializada da mesma forma que gosta de Debussy, ou é hipócrita ou é esquizofrênica. Há coisas que não convergem. Não há pirueta dialética capaz de propor sínteses convincentes dessas coisas.

Carlos Willian Leite - Quem é o grande poeta brasileiro vivo?
Não gosto dessa eleição de príncipe dos poetas. É algo monarquista, como diz jocosamente o Fabrício Carpinejar. Seriam muitos nomes, seria ruim disseminar e dispersar tanto. Cheguei a publicar alguns textos na imprensa sugerindo alguns. Prefiro falar dos bons poetas mais ou menos da minha geração que tenho conhecido. Um deles é a Mariana Ianelli. Às vezes tem um tom bíblico, um andamento de litania. Precisa de um leitor maduro e com grande capacidade de interiorização. Seu livro que acaba de ser lançado, Fazer Silêncio, é belíssimo. Fico feliz de saber da existência de uma poética assim entre nós. Outro nome é o de Dirceu Villa. Grande conhecedor de Pound, tradutor fino de várias línguas e um dos melhores e mais cultos poetas que há hoje no Brasil, com certeza. O Descort é um dos livros fortes publicados por poetas que estão começando. É uma voz diferente. Também menciono o nome de Pablo Simpson, estudioso de Bonnefoy e autor do belo Mitologias. É um poeta que consegue atingir o sublime sem pagar tributos à impostação. Voz que esculpe pequenos cristais. E destaco o belíssimo e singular A Casa Azul ao Meio-Dia, de Flávia Rocha. Acompanho o trabalho dela faz tempo e fiquei muito feliz de ver a consumação de tanta reflexão poética e de tanto trabalho em um livro tão equilibrado, inventivo e cuidadoso. Uma beleza o trabalho com as imagens e a maneira como ela retém a memória afetiva na linguagem. Um dos bons livros de poemas publicados recentemente.

Edival Lourenço - Os concursos literários têm valorizado muito os livros de poemas que mantêm um núcleo temático, uma unidade prosódica, estética etc., formando um todo coeso. Qual a conseqüência disso para a poesia?
Não sei falar sobre o teor do resultado dos concursos literários. Eu mesmo ganhei vários deles. Mas meus livros não têm muito desses ingredientes. Não acho que eles sejam decisivos para julgar o valor de uma obra. Mas quando um autor é premiado algumas vezes por júris e concursos de regiões e critérios totalmente diferentes, acho que é preciso reconhecer que há algo ali.

Carlos Willian Leite - Ao passo que você renega a poesia marginal de certa forma você renega Drummond, não existe um contra-senso entre o discurso praticado e ação de quem faz o discurso?
Não entendo a conexão entre a poesia marginal e o Drummond. O poeta mineiro é uma voz que continha em si inúmeras vozes. Ele vai do poema-piada ao claro enigma da língua absolvida e à cosmologia poética contida no livro que encerra a Máquina do Mundo. Vai da anotação circunstancial, quase prosa, aos lampejos líricos de fatura vária, de versos, metros e ritmos os mais refinados. Vai de uma negação do mundo e da linguagem a um encantamento de amor dos mais humanos. A proposta da poesia marginal, se é que não generalizamos demais falando assim, acentuou algumas dicções poéticas que pudessem se inserir com mais força no plano político, cultural e social em questão. Trata-se de duas propostas poéticas bastante distintas.

Edival Lourenço - No poema História do Futuro você faz um jogo de elementos no mínimo curioso. Recorre a uma forma antiga (o soneto) para falar do porvir. Mas ao falar do porvir remete ao passado, ou pelo menos a um futuro que se parece com o passado, pós-escatológico, talvez num mix de concepções judaico-cristã e evolucionista. Seria essa uma tendência da poesia atual: ignorar barreiras estéticas e filosóficas?
Esta resposta até certo ponto completa uma anterior. A poesia se enraíza na história pra poder transcendê-la. Por isso a leitura de Baudelaire sobre o temporal e o atemporal na arte é tão urgente. Gostei muito da sua interpretação. Também é muito interessante a questão que você coloca. Não sei dizer se é uma tendência da poesia contemporânea. Na verdade toda a poesia acaba recorrendo a um esteio atemporal, fornecido pelos mitos e pela tradição, e o projeta em um futuro hipotético. O arco de tensão entre um futuro mítico e um passado inédito é uma das tônicas de muita poesia que já se produziu. O que mais me interessa na poesia é essa mescla de tempos históricos e imaginários. A sua dimensão trans-histórica. O que tentei desenvolver nesse poema, a partir de um tema do padre Antonio Vieira, é essa ubiqüidade de todos os tempos, que se equivalem na identidade pura de Deus. Dessa forma, o que ainda está por vir já se consumou e o que já passou ainda espera ser inaugurado e revelado em outra chave. Trabalho essa temporalidade em outro poema chamado Círculo de Giz, do meu primeiro livro, História Natural. É algo que me é muito caro. Você o pescou muito bem em meio a tantos poemas de Pedra de Luz. Agradeço muito a sua análise aguda e perspicaz.
Carlos Willian Leite - Que análise faz dos modernistas depois da geração de 45 e dos poetas malditos até os dias atuais?
Rapaz, mas isso é uma convocação de tese (risos). É muita coisa.

Edival Lourenço – O seu Pedra de Luz é um livro inventivo, denso e que comporta leituras e releituras com muita reflexão. Até poemas aparentemente simples como Fábula Milenar e de Costumes traz referências de grande simbologia, como a cidade de Uruk, que existiu no Vale do Eufrates, antecedente à Babilônia. Ou seja, um ovo indez da civilização. Com esse grau de refinamento, e o estilo corrido e superficial da vida moderna, qual público resta para ser leitor de poesia?
Fiquei muito feliz ao saber que ovo indez é um ovo primevo, o primeiro de uma saga. Uma beleza a linguagem goiana assim em meio à nossa conversa. Também porque viajei muito quando criança com meus pais. Conheço Goiás, Minas, Maranhão, Bahia, Amazonas, Pará, Paraná e outros muitos interiores desse país. Acho que isso estimulou muito uma imagem mítica do mundo, e que tento encarnar na poesia. Seguindo sua pergunta inteligente, esse poema é uma espécie de brincadeira com esse ventre primeiro da humanidade, que é a nossa origem Sumério-Acadiana. O poema propõe um jogo com os costumes e com a lógica dos dominantes e dos dominados que, dada a sua amplitude histórica, seria sempre a mesma. Quanto à recepção da poesia por um estilo corrido e superficial da vida atual, como você menciona muito bem, ela não deve se preocupar com isso. Há coisas que necessitam ser ditas. Há existências que precisam se realizar, a despeito do público. Vivemos em um mundo muito publicitário. Tudo existe e só existe em função da exterioridade e do seu consumo final. Quanto a isso, sempre me lembro de uma bela descoberta. Há algumas imagens na Catedral de Chartres que não podem ser vistas pelo público. Estão incrustadas nos desvãos do teto, inacessíveis. Os historiadores da arte sempre acharam um enigma, imagens que foram pintadas para não serem vistas. Mas a solução do enigma é óbvia: foram feitas para os olhos de Deus. Ele é onisciente. Vê tudo. Não são para serem vistas pelos homens. É proposital. Acho essa uma bela anedota contra o mundo midiático imbecil em que vivemos. Há coisas que são feitas para não serem vistas. Por mais que isso contrarie a lógica espúria do mercado, que é quem cada vez mais dita as regras. Independente da circulação, do aplauso ou da vaia, as coisas existem. São irredutíveis em sua verdade metafísica. E, no fundo e em última instância, é apenas isso o que interessa.

Carlos Willian Leite - Para quem daria o Oscar da poesia se ele existisse, Yves Bonnefoy ou Herberto Helder?
O Yves Bonnefoy é um dos grandes poetas atuais. Entre Helder e Bonnefoy fico com Herberto Helder. Voz das mais robustas, transbordante, lirismo que atingiu o seu ápice e imagem enlouquecida que desfaz todas as gramáticas da poesia. Ele e António Ramos Rosa são os maiores poetas da língua portuguesa.

Carlos Willian Leite - Ao contrário da prosa, não existe uma nova geração de poetas. O que difere são pequenas exceções. Isso é culpa da Internet que cartelizou a poesia ou da academia que fossilizou a linguagem e elegeu uma idéia definitiva de poesia objeto, uma espécie de lirismo atrofiado na fonte?
Não. Acho que a Internet não tem nada a ver com isso. Não sei se não há uma nova geração de poetas. Talvez eles não sejam tão coesos, não mais se articulem e se projetem em grupos, como vem ocorrendo na prosa. O motivo disso não sei.

Edival Lourenço - Para Habermas, fora da vida doméstica, fora da igreja e do governo existe uma “esfera pública”, onde as idéias são examinadas e discutidas. No entanto, essa “esfera pública” vem sendo disputada pelo poder da mídia e das grandes corporações. Você acredita que a Internet representaria o surgimento de uma nova “esfera pública”, onde a reflexão pudesse acontecer com autonomia?
A questão é bastante interessante. Muito bem sacada. Não diria que a Internet chega a criar uma esfera pública, porque o seu acesso ainda é filtrado por componentes econômicos que ainda marcam bem a inserção e a exclusão social de seus usuários ou possíveis usuários. Ainda é uma ferramenta híbrida, de domínio de poucos. Mas acho que ela pode produzir um espaço saudável de anarquia na cultura contemporânea. A mistura das linguagens, a liberdade de informação, o princípio ativo que a diferencia radicalmente dos cool media, como dizia o McLuhan, tudo isso pode concorrer para a formação de uma cultura de informação e trocas simbólicas. Mas tudo isso depende da resolução de alguns problemas de base. Sem eles não há teoria ou utopia tecnológica que se sustente.

Edival Lourenço - Como você se sentiria se dormisse e acordasse daqui a 100 anos e Paulo Coelho tivesse se tornado o Machado de Assis do século 22?
Eu morreria de novo.

Francisco Perna Filho - O fato de Paulo Coelho ser bastante lido e apreciado em outros países, não seria responsabilidade dos seus tradutores, já que, ao traduzir, perde-se ou se ganha muito, dependendo do grau de inventividade de quem traduz?
Sua observação é bastante interessante. Mas não acredito que uma tradução possa alterar tanto o original. Paulo Coelho é uma das poucas coisas universais que temos no mundo relativista, global e pós qualquer coisa em que vivemos. Ao invés de comprar um remédio para o corpo você compra um livro para o espírito. Isso é a o ápice da diluição da cultura com finalidade medicamentosa em um mundo doente. Indica que não só ruíram todos os projetos de construção de uma civilização e todos os projetos políticos coesos, mas que ruiu a própria possibilidade de se pensar em literatura com o mínimo de objetividade. É a falência de toda mediação crítica. Isso é o mesmo que dizer que fomos vencidos pela razão da indústria, ou seja, por aqueles que detêm o poder financeiro e de informação. O oposto dos valores intelectuais e do espírito.

Francisco Perna Filho - Em termos de literatura, qual é a sua maior angústia?
Em geral a literatura é sempre fonte de prazer e alegria. Mas tenho algumas angústias irresolúveis. Uma é saber quanta e quanta coisa magnífica há a ser lida ou relida e que nossa vida é tão escassa e tão cheia de dificuldades. Também às vezes me angustia pensar no número de pessoas que desconhecem alguns livros ou não têm acesso a eles. Parece que é quase como desconhecer a luz do sol. Na minha escrita, a angústia é de sentir que ela escoa e muitas vezes não consigo atingir o ponto que gostaria de atingir. Mas isso faz parte. Meus fracassos, hesitações, dúvidas e erros também são a minha literatura. É a escrita do mundo e das coisas. Para além da ética espúria dos fariseus.

Carlos Willian Leite - Um fato marcante de Pedra de Luz é o cenário do antagonismo complementar. Dentro desse contexto, mas abrindo um diálogo para o lado da crença: Deus seria possível, sem a existência demônio?
Essa pergunta é provocativa e bastante interessante. Há um texto polêmico e pouco conhecido do Mircea Eliade no qual ele diz, mais ou menos nessas palavras, que o mal do mundo existe porque Satã foi excluído dele. Todo o mal nasceria, segundo a visão de Eliade, não da participação do demônio, mas sim de sua expulsão. O demônio seria responsável pelo equilíbrio necessário entre luz e treva, para que essa balança não seja desregulada e produza aquilo que Jung define como enantiodromia: a fixação exclusiva em um pólo de dois opostos complementares e a anulação de sua síntese possível em uma antítese absoluta. Podemos pensar no demônio em termos bastante metafóricos, como representante de forças ínferas, telúricas, subterrâneas. Por outro lado, a sociedade técnica e o modo de organização do capitalismo tenderam e tendem cada vez mais a um abafamento dessa dimensão, em proveito de uma funcionalidade e de uma assepsia cada vez mais produtiva, cada vez mais desenraizada das forças abissais do espírito. A única ocupação da cultura de fariseus na qual vivemos é atirar pedras na face alheia. Todos ignoram hipocritamente a floresta obscura que têm dentro de si, para lembrar o magnífico Lawrence. Nunca conheci quem tivesse levado porrada, diria Pessoa. Todos são perfeitos em tudo. Ninguém se reconhece como cúmplice dos crimes mais sórdidos que há no mundo. Anulam-se hipocritamente e assim temos um mundo de vítimas sem nenhum assassino, o que é uma grande fraude. Todos são perfeitos e o inferno são sempre os outros. Esse movimento de cisão, essa separação, pode explicar muito da violência recalcada que eclode nos dias de hoje, e ganha forma, seja em aberrações políticas e ideológicas, seja em manifestações religiosas que parecem querer dizer o que o demônio está querendo dizer há muito mas está sendo sistematicamente abafado por uma utopia de progresso e de esclarecimento que é não só extremamente duvidosa, mas é sim aquela que vai nos levar ao extermínio. Enquanto não reconhecermos que há uma nódoa de barbárie em cada gesto civilizado, continuaremos sendo os bárbaros adiados que somos e que sempre fomos.

Carlos Willian Leite - Outra característica de Pedra de Luz são as variações estruturais de cada poema. Isso quase sempre inviabiliza uma unidade coerente. Mas, no caso de Pedra de Luz, embora essas variações sejam perceptíveis, existe uma idéia central de totalidade, mas que, ao mesmo tempo, é compartilhada e complementa os extremos fronteiriços. Como foi possível ordenar uma variação formal sem perder a unidade?
A idéia fixa que me persegue é que cada sensação pede um poema e cada poema pede uma forma. A gama de flutuações em nossa percepção é muito grande. Montaigne dizia que o que chamamos de eu é uma coleção heteróclita de estados de espírito e de paisagens. Alberto Caeiro diria que não somos o mesmo ao longo de um único dia. A poesia, ao lidar com a matéria-prima da sensação, acaba sendo enovelada nessa multiplicidade. Tento não gerar um desequilíbrio poético dos poemas de um mesmo livro. Mas quanto à unidade, confesso que cansei de pensar no assunto. O leitor que una as peças dispersas do que eu sou escrito.

Carlos Willian Leite - Você reescreveu os poemas de Pedra de Luz?
Infinitas vezes cada um deles. Cada poema tem uma estória. Há desde aqueles que nascem prontos até aqueles que são escritos, reescritos, cortados e novamente reescritos indefinidamente. Às vezes, depois de tudo isso, vão para o lixo. Outras não. De modo geral ajo por ímpeto, escrevo movido por uma urgência, mas depois que tenho a matéria bruta, trabalho-a ad nauseam. Quase sempre é assim.

Carlos Willian Leite - Onde vai dar essa coisa de poesia do objeto, um resquício do concretismo, que ressurgiu dentro das universidades?
Já disse em alguns textos críticos e em entrevistas o que penso de poesia concreta e de arte objetual. Seria preciso ver caso a caso. Nada impede que um sujeito use um novo suporte e faça uma maravilha com isso. Basta ver um artista gigante, para mim um dos maiores gênios brasileiros, como o Farnese de Andrade. O que ele fez com os assemblages é algo que em alguns momentos nos faz rever o valor de Duchamp. O problema é que as pessoas se entorpecem pela teoria e se deslumbram com o suporte e perdem de vista a discussão rigorosamente qualitativa.
Carlos Willian Leite - A poesia concreta, na sua visão, criou algo de perene e que possa ser tomado como ponto de referência poética?
Também já falei sobre isso em outros momentos. Não sei se tenho grande coisa a acrescentar a esse assunto. Os irmãos Haroldo e Augusto de Campos são tradutores magníficos e homens muito cultos. Deram contribuições notáveis nesse campo e elevaram o nível de exigência no que diz respeito a essa prática. Temos uma grande dívida e respeito em relação a eles nesse ponto. A poesia deles que fale por si. O que sou radicalmente contra é a intervenção teórica deles. Acho que há muitos problemas teóricos que devem ser debatidos. Até como uma forma de civilidade e de discussão séria de idéias.

Carlos Willian Leite - Quais são as obras essenciais para que um poeta saia do círculo vicioso de querer inventar o já inventado?
A pergunta é muito extensa. Há todos os clássicos, todas as obras de todos os tempos que, se lidas e bem assimiladas, podem mudar a espinha dorsal de uma cultura e de uma época. De forma mais prosaica, peço que prestemos mais atenção na poesia portuguesa. É uma das melhores do mundo, não há problemas de obstáculos lingüísticos e a quantidade de poetas gigantes praticamente desconhecidos aqui é assustadora. Eles mantiveram a tradição do lirismo e conseguiram aprofundá-la. Graças a isso eles tiveram nomes como Ruy Belo e têm nomes como António Ramos Rosa e Herberto Helder.

Carlos Willian Leite - A crítica literária no Brasil não seria apenas uma ficção conveniente para os grandes vendedores de livros?
A crítica está sitiada entre a teoria universitária e o colunismo social. Enquanto não solver esse impasse, vai continuar produzindo retalhos de textos pouco analíticos, pouco consistentes, pouco interessantes.

Carlos Willian Leite - Como você disse, você também tem seus fracassos, hesitações, dúvidas e erros. A literatura é uma estrada que pode levar o ser a diminuir as possibilidades de ser vítima da hipocrisia moderna?
Acho que essa pergunta se liga diretamente à pergunta sobre o papel do demônio no mundo moderno. Remeto aqui àquela preciosidade que é A Literatura e o Mal do George Bataille e a um ensaio de Blanchot, intitulado Literatura e Direito à Morte. A literatura pode ser um altar incandescente onde se queimam todas as nossas falsas verdades e, mais que isso, toda a falsidade. O poeta pode ser a vítima sacrificial, o indigente anatematizado que restitui luz à noite do mundo a partir de sua própria imolação, para lembrar alguns conceitos do grande estudioso René Girard e algumas passagens de Heidegger. Nesse sentido a literatura encarna a experiência do mal para purgar os homens de sua ação. Embriaga-se para dar-nos mais lucidez. Uma lucidez mais cortante, cada vez mais saudável, porque não ignora que somos cúmplices de toda a abjeção que existe sobre a terra. Mas sabe sim que o fato de negarmos isso é que vai nos conduzir ao suicídio coletivo.

Carlos Willian Leite - Qual a distância que separa o poeta Rodrigo Petronio do prosador?
Gosto muito de ficção curta e de ensaio. São gêneros que me dão muito prazer ler e escrever. Vejo-me acima de tudo como poeta, e plasmo esses gêneros com a poesia. Não sei se em algum momento terei que abdicar de algum deles. Não sei qual terá o papel principal. Sei que até agora, graças à minha megalomania, tenho gostado de me dedicar a todos eles. E tenho um livro novo de contos e outro de ensaios.

Carlos Willian Leite - Qual sua opinião sobre a política cultural do ministro Gilberto Gil?
Não saberia dizer assim de cara. Vi algumas manifestações interessantes na área de livros e de difusão de leitura. O que me parece é que às vezes a ação fica muito em um nível populista, de ressaltar o acesso e a partilha dos pães, mas se esquece que os comedores não têm dentes. É preciso equacionar isso.

Carlos Willian Leite - Quem é o maior chato da literatura brasileira?
Por nomes assim não sei dizer. Coisas que não suporto mais é poeta com discursinho universitário e cartilha teórica debaixo do braço e prosador que elogia cultura de boteco, uma hipotética marginalidade e um hipotético submundo. O ápice da esquizofrenia nacional, diria o Glauber Rocha.

Carlos Willian Leite - Onde terminará sua genealogia?
Nas estrelas.

Pedra de Luz de Rodrigo Petronio: em busca da poesia total - Claudio Willer


Depois de um ensaio como o de Mário Dirienzo – Corpo como razão: a poesia de Rodrigo Petronio (disponível em Agulha, www.secrel.com.br/jpoesia/ag50petronio.htm) – com um mapeamento tão minucioso e preciso do recente Pedra de Luz (A Girafa, São Paulo, 2005), resta apenas fazer o registro mais subjetivo dessa obra.
Através de um exercício de abstração, faço de conta que não conheço o autor, que Rodrigo Petronio não é meu interlocutor regular. Procuro imaginá-lo ou visualizá-lo, a esse hipotético desconhecido, através da leitura do seu livro de poesia. Assim praticando o mais puro impressionismo em crítica, diria que Pedra de Luz espanta. Isso, não só por sua dimensão, mas pela amplidão, pelo que tenta abarcar. A impressão que me provocaria, se fosse possível essa separação total de autor conhecido e poesia lida, é que Pedra de Luz foi escrito por alguém que já viu tudo. Viu e, acrescente-se, viveu. E que já leu de tudo, também. Ou, ao menos, do que importa. Devorador de poesia, dialoga, em sua leitura ativa e participativa, com os clássicos, inclusive Camões, a Bíblia, com Baudelaire e Rimbaud, e com os modernos e contemporâneos, como Apollinaire, Octavio Paz (o título, Pedra de Luz, é alusão à Pedra de Sol do mexicano), Drummond, Herberto Helder (inclusive em epígrafes), Roberto Piva, e tantos outros. Daí resultar um livro de poesia dessas dimensões, e dessa amplidão temática e formal, dos metros mais tradicionais e do soneto à mais contemporânea prosa poética; da linguagem direta ao hermetismo.
É como se a sua feitura fosse impulsionada por uma ambição desmedida de realizar a poesia total, a impossível síntese do simbólico e do real. O livro todo é animado por uma tensão entre dois mundos: um deles, atual, prosaico; outro, mítico, arcaico ou atemporal. Há um trânsito entre um e outro, no conjunto de poemas que compõem Pedra de Luz. Daí a variedade de referências geográficas: o poeta vai de Heliopolis ao metrô paulistano, passando pela Costa do Marfim.O caráter pletórico de Pedra de Luz, com sua variedade e diversidade, mostra Rodrigo Petronio como um selvagem refinado, um bárbaro erudito impelido por uma sensação de urgência de, ao mesmo tempo, querer destruir e refazer o mundo: Uso as mesmas palavras para batizar um mundo novo:/ Pão, cinzel, ouro, fala, sol, fome, selva./ E eis que elas circulam por minhas artérias:/ Sexo, sede, fruto, pomo. Essa recriação tem que ser feita pela via da transgressão: Rouba, saca, esquarteja, plagia/ Furta, copia, inventa, cria, corta [...] Isso é poesia – o resto é arte, proclama de modo veemente.
Pensando bem, esse ímpeto destrutivo e simultaneamente de reconstrução ou recriação não é coisa de autor ‘maduro’, do hipotético erudito já de certa idade que poderia visualizar através dos poemas, alguém que leu de tudo e já viu tudo, porém de um adolescente. É o juvenil levado a extremos. Mas talvez o talento poético resida nisso, na capacidade de preservar a rebelião e o lirismo mais juvenil para chegar a sínteses como esta: Tens a lâmpada, a migração das aves, o ruído das veias, a seiva dos animais e a alvura do cisne. Em outras palavras, tudo.


Meio-dia e o escuro da estrela - Mário Dirienzo

MEDITAÇÃO DO MEIO-DIA

Um rosto é uma sombra tragada pela intensa luz do meio-dia. Narciso se desengana. Seu rosto é mero reflexo no lago. Não é no espelho, mas na janela, que Narciso, amparado pelo Abandono, enxerga o Aberto. O sol, o relógio de sol, o rosto que vê e se vê o mundo, mais a sombra, invisível, mas existente, no sol, no relógio e no rosto.
Nem reflexo nem reflexão; nem sujeito nem objeto, o ser, que, em sua totalidade, está sempre aí, na contingência de uma manifestação finita, que não evoca uma substância, mas uma presença, presença que precede e sucede aquilo que se dá, sendo uma dádiva para além do dado.
Se a substância é uma hipóstase, subsistem, todavia, as singularidades: a singularidade de cada eu; a singularidade de Deus.
Onipotência, onisciência, onipresença, atributos do ente supremo. O que ainda vigora no reinado da penúria do ser ao invés da opulência do ente é a onipresença: a onipresença do ausente – “Deus como falha”, como lacuna. Não aspirar à alma imortal, mas esgotar o “campo do possível”. Só o mortal – o poeta – pode esgotar o campo do possível, pois não aspirar à imortalidade estática das estátuas que hipostasiam os grandes feitos. O poeta – lírico da lira pendurada nos chorões do exílio – jaz nas entrelinhas da imortalidade épica e no hamletiano silêncio que resta das tragédias.
A alma não é um narcíseo ídolo, assim como Deus, não tem imagem nem as margens da moldura de um espelho ou de um espetáculo.
Por que há algo em lugar do nada?, indaga a filosofia. O nada se coloca, às avessas, como o avesso daquilo que é. Mas o nada se colocando, de algum modo, é – existe. A existência, para além de sua causalidade e efetividade, imbuí-se de “casualidade”, eventualidade: “Graça de Deus”, que as indulgências e os cálculos não compram.
“Salvação”, palavra inevitável: salvação do corpo e da alma, mediante “um nada além do nada”. Se Deus me ama, ele possui a riqueza e a pobreza do Amor: “Sou o que falta a Deus”. Mas não pelas “obras”. “A salvação só acolhe os desregrados”. Com a morte, participamos da penúria de Deus.
O sol intenso do meio-dia é negro, até que Ela, a desejada Indesejada das gentes, traga a iluminação do deus que comigo morre e comigo nasce.

O ESPELHO ESCURO DA ESTRELA


O além e aquém do brilho é a parte velada da Verdade. O que vem à luz pressupõe o que jaz à sombra. Sombras, trevas, podem ser signo do Mal ou do que simplesmente não se manifesta, sendo inefável, inenarrável, fora de qualquer preceito, conceito ou constatação.
Blake viu o mundo num grão de areia, em “Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto”, Rodrigo Petronio vê num punhado de açúcar – açúcar negro, mascavo – galáxias pulverizadas, deterioradas, imergindo na infinita noite de uma xícara de café. Essa noite, avesso da luz, nos acompanha, assim como o silêncio acompanha e pontua o som.
Na medida em que, num lapso-de-tempo, está o Tempo, um cotidiano hábito, como tomar um cafezinho, evoca a dissolução do cosmos. A doçura do açúcar é imolada no pavilhão de uma xícara, assim como uma estrela é engolida pelo buraco negro. A vida é nutrição, o que implica destruição. Viver é matar ou morrer; matar e morrer.
Com efeito, viver seria um crime, só uma existência nirvanizada, acima dos ciclos de vida e morte, seria sã, santa – sagrada. Os rituais civilizados sempre encobrem o caráter criminoso, assassino, da vida em sua essência. O conteúdo das normas erra como música amorfa regida por uma letal batuta, que transfigura o monstro em maestro.
Não há como fugir do sentido eucarístico. Há sempre uma hóstia – o sentido original do termo designava a vítima expiatória oferecida ao deus – que agrega em seu ser a hostilidade do mundo. Todos somos hóstias expostas à voracidade do mundo. Mas Deus – eis a verdade cristã – fez-se hóstia e foi devorado pelos nossos pecados.
O poeta assume ter devorado Deus, confessa o crime que imbui o ritual civilizado, pois a Lei, em sua dinâmica contraditória, nasce da violência, violência que transborda e, violando a violação primeva, cria a Ordem, o que resplandece e ofusca o Caos. Sem as cores do escuro Caos não há Poema; sem o preto no branco não há a clara, concisa e precisa Lei. No princípio, era o Poema, verve metaforizante que semeava no Campo do Possível, no qual nascem plantas dadas, gêneros, espécies, sins, nãos, senões a serem evitados – Lei, à revelia do Poema.
Se luz é sinônimo de ser, do que aparece, vem a ser, as trevas são a ausência de ser, de procriação. A “menstruação da luz” evocada no poema opõe-se ao “estro da luz”, ao “cio da luz”. Na menstruação, não há fertilidade, a semente não vinga: é o lado leteu da Verdade.
O mito de Narciso também pode lançar luz sobre o texto. Digamos que, em “Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto”, há um Narciso às avessas, possuidor de um rosto divino, celeste, de rocio vindo do céu, dando-se como oferenda à Terra. É um rosto sem feições que se perde no negror da xícara de café, a qual é um espelho devorador, desdobrado na boca de quem toma o café, noite na qual estrelas, como grãos de açúcar, estão dissolvidas. De forma que o ensimesmamento deste rosto, que é – creio – o rosto de Deus, não é o mesmo ensimesmamento de Narciso. Enamorado da própria imagem, Narciso se afoga no lago que a refletia. Um rosto de orvalho não tem imagem. Deus, não sendo um ídolo, não idolatra nem a si mesmo. Seu destino é eternamente sair de si, encarnar-se na matéria – encarnar-se na nossa miséria, que, assim, se eleva ao Absoluto.
“Sei que Deus sem mim não vive um só momento./ Ele expiraria com meu passamento”, disse Angelus Silesius. Esse mim, todavia, não vem de um eu narcisista; é expressão daquilo que Heidegger denominou Dasein, o ser – aí, no mundo, para a morte. Mas essa morte morre neste instante: o Tempo é eterno.

Assinatura do Sol: o visível e o invisível - Mário Dirienzo

As Idéias

Assinatura do Sol é uma série de poemas assinada por Rodrigo Petronio. Na medida em que os poemas são assinados por alguém, permito-me parodiar o múltiplo poema e dizer que, na verdade, “é uma assinatura do sou”. Mas esse “sou” não é uma expressão subjetivista ou solipsista, mas, o “Eu sou o que sou”, o bíblico Iahweh, indicado pela epígrafe de Edmond Jabès, poeta vinculado à tradição judaica, a qual é uma crítica radical à deificação da natureza e dos homens.
O eu do poeta, seja ele Rodrigo Petronio, Mário Dirienzo, Dora Ferreira da Silva ou Hölderlin é como Jacó naquela sua luta com o Anjo de Iahweh, narrada pelo Gênesis. O eu, nada diante do infinito, mas tudo em face do nada, trava, no campo do mito, sua luta contra o divino, pelo divino. Com efeito, poema é polêmica. O poema é uma visceral expressão da vida, a qual se define pelo conflito, se um deles é luta do eu com Deus, outro é a “teomaquia”, a luta entre deuses. Daí, ao lado do invisível, irrepresentável, inimaginável Deus bíblico, aparecerem nos poemas divindades afro-brasileiras, as quais vinculam-se de forma imediata a forças da natureza. O Deus sem rosto evocado por Jabès é sobrenatural, transcendente, paira acima da imanência e naturalidade dos deuses pagãos.
O pensador italiano Vicenzo Vittielo coloca o poeta Edmond Jabès como um excelente exemplo da experiência hebraica do divino como ausência, experiência que se contrapõe à greco-romana, na qual a Natureza estava cheia de deuses. O hábitat “natural” do Deus judaico é o deserto, o exílio de Seu povo, à espera de um Messias – sempre futuro, nunca presente. Versos de Jabès, citados por Vittielo, ilustram essa visão da invisibilidade de Deus, que toma como “idolatria” toda assimilação de Deus a qualquer criatura. “Ninguém viu Deus, mas as etapas de Sua morte são, para cada um de nós, visíveis.” “O Criador é rejeitado pela criação. Esplendor do universo./O homem se destrói criando.”
Por outro lado, no Ocidente, o Deus do monoteísmo foi assimilado ao Primeiro Motor aristotélico. Essa assimilação passou a designar Deus como a causa das coisas. A famigerada lei de causa e efeito teria, ao longo dos séculos, retirado a vivacidade da vida, transformando os entes encantados em dados objetivos, cuja causa emigrou da onipotência de Deus, radicando-se na prepotência humana.
Contra essa monomania e monotonia (pós-)monoteísta Assinatura do Sol, com a “delicadeza de um deus que morre”, vocifera. Personifica essa peleja o bíblico Can, cuja pele escura traz a assinatura do sol. Can é o filho de Noé que foi por este amaldiçoado, pois viu Noé nu e embriagado. De Can vem os camitas, etíopes, egípcios, os africanos: a raça dos homens escuros e seu culto politeísta. De Can viria tudo o que é negro, os orixás, a noite, a “noite dos tempos”, “do universo origem e suporte”.
O rosto escuro pode ser o rosto de alguém da raça negra, alvo de repulsa e/ou atração. Nós brasileiros temos sempre um rosto negro no nosso rosto, por mais brancos que sejamos, por mais que consideremos o rosto negro uma alteridade, pois essa alteridade é parte de nossas raízes.
Aprofundando a idéia da alteridade como raiz, encontramos Deus como o rosto negro, que se furta aos rosto de todos os matizes, pois o negro é a negação da cor. Por outro lado, o rosto divino contém todos os rostos, assim, o seu rosto é branco, soma de todas as cores. Sendo tanto branco quanto negro, o rosto de Deus é um paradoxo, que não devemos decifrar, mas viver.
Neste diapasão, a polêmica entre monoteísmo e politeísmo perde o sentido: tudo é uno e múltiplo, simultaneamente. Há deuses e/ou os deuses são as faces de Deus. A própria Bíblia, o livro do monoteísmo, diz num salmo de Davi, também citado por Jesus, que os homens são deuses, são deuses porque julgam e são filhos do Altíssimo. E o conceito cristão de Trindade implica uma tripartição de Deus em Pai, Filho e Espírito Santo.
Mas, digressões teológicas à parte, o que importa na existência de quem realmente vive é que o entusiasmo não morra, pois, como assinala Assinatura do Sol, “tudo o que morre é o riso de um deus”, assim como “tudo o que existe nasce da delicadeza de um deus que morre”. Esse deus que morre rindo é o Deus da Graça e não o da Lei, isto é, não é o Deus que julga e paga o salário do pecado – que é a morte –, mas é o Deus que salva, que não exige oferendas, dando-se ele próprio como oferenda. Seria o Deus cristão, que está dentro e fora do cristianismo, assumindo inúmeras formas, do Crucificado a Dioniso.
Nós poetas – no fundo todo ser humano é um poeta – morremos junto com esse deus, como quem, já sendo dia, dormiu na noite anterior, pois “tudo o que existe é sol de um sol mais claro”. A noite é um sol de um sol que ainda é noite. A assinatura do sol é uma queimadura e/ou um aquecimento, um efeito que revela sua causa, mas essa causa é por acaso, é uma ordem que não renega o caos de sua origem. A “eventualidade do ser”, para além e aquém de qualquer conceito, é o que a verve poética, em uníssono com o estro cósmico, revela sempre e sempre, não obstante a fluência inexorável e a influência ferrenha das idéias fixas, que forcejam à exaustão por ajustar o intelecto à coisa, escamoteando o tragicômico qüiproquó que perfaz e desfaz todos os entes.
Deveras! Só um “deus”, minúsculo em sua representação e que assume a condição de feto, deixando-se afetar pelo amor e morte, pode, verdadeiramente, ser DEUS.

Imagens

Até agora, Rodrigo – já me permito o vocativo –, pensei como um filósofo ou um teólogo, ou melhor, como um arremedo desses dois operários do pensamento, a partir deste instante, quero pensar como uma abelha, não uma abelha-operária, mas como um zangão, cuja única função é voar, reproduzindo-se. Espero que meu narcisismo, que vê em cada imagem poética apenas o reflexo do meu rosto vaidoso e do meu estro canhestro, seja aniquilado pelo gozo nupcial e que eu morra risonho e delicado como o deus de Assinatura do Sol, deixando o pólen espraiar-se vida afora, vida adentro.
Eu sigo com os olhos e o coração as linhas, os alinhavados dos poemas. A linha é o prolongamento de um ponto. Em Assinatura do Sol não há ponto-e-vírgula. As vírgulas e os dois pontos, na medida do possível, são eliminados. Esse modo de pontuar o texto tem o condão de privilegiar a coordenação, a analogia, em detrimento da subordinação, do silogismo. Há um magnetismo de imagens: uma imagem se casa com outra. Nos poemas só há casamentos e não causas gerando efeitos. A realidade não é efetiva: “o mundo ainda está para ser criado.”
O casamento é um cruzamento. Linhas, linhagens que se interpenetram, multiplicando-se. O texto é têxtil, trama ou teia de fios: labirinto por onde perambulam Teseu e o Minotauro. Outrossim, o texto é o fio de Ariadne. Eu, também incorporando um monstro que é, ao mesmo tempo, Teseu, Minotauro e Ariadne, sigo os fios de luz e trevas que perfazem a Assinatura do Sol. Perfilho a linhagem de Can, sem abdicar do semítico Deus sem rosto, de rosto-espelho-da-noite onde esplendem as estrelas. “No espelho de terra”, filial do espelho da noite, lavro a minha cara: não me limpo da terra nem me livro da noite.
Das “veias verdes de Ogum” cresce o mundo e peixes grafam tatuagem na pedra. As linhas assinadas pelo sol circulam pelo globo; as linhas ondulam, encaracolam-se e tornam-se corolas de belas flores.
Eu, em meus vôos ociosos de zangão, sempre me deparei com os hibiscos, essas flores em forma de bailarinas, que vermelhas, rosadas, alaranjadas, brancas esplendem em virtude da luz do sol. Eu vi os hibiscos, mas “só a lua conhece o interior dos hibiscos”. A nudez dos entes é o visível, veste-se de pele, pêlos, pétalas, mas a nudez mais nua é a nudez do invisível, vértebra invisível de um cesto de vime, os dedos diáfanos da luz, que luz com mais brilho na escuridão da noite.
A linha da luz costura todas as coisas, forjando o espaço e os símbolos, mas a poesia às vezes se cansa das metáforas e prefere andar nua sem a sua túnica bordada de mitologia, de esférica e estratosférica música ou princípios aristotélicos. O mito, todavia, em razão de seu condão centrípeto, impede que a poesia caia na muda aridez das coisas simplesmente dadas. E o alinhavo e a linhagem de Assinatura do Sol prosseguem: as veias verdes de Ogum fluem num “assobio”, linha melódica que se alonga além de si mesma. Esse assobio é um sinuoso e erétil sibilo; é uma serpente, uma serpente entre rosas, uma agulha que volta a costurar com notas musicais a veste florida dos seres. A serpente que incita à ciência do bem e do mal é uma deidade da qual nasce, precária como o pecado, a beleza, beleza que pode ser a de um par de seios, sóis brancos munidos de duas mamilares luas negras.
São dados zoológicos: o zangão não produz mel nem tem ferrão, sua função na colméia limita-se à reprodução. Para ele a flor é uma genitália, a genitália da abelha-rainha. Sem o ferrão guerreiro, sem o mel operário, o zangão pode ser espelho do poeta, que reproduz o mundo mediante metáforas, hauridas das musas e da mãe das musas – a Memória.
“Deus morre para que a manhã se levante. Erga sua toalha e banhe nossos corpos nus./ Para que toda a excentricidade retorne ao destino do mel. A abelha trabalhe.” Esses versos de Assinatura do Sol retornam à idéia do “deus que morre” e, segundo Jabès, assim como a criação rejeita o Criador, “o homem se destrói criando”. O gozo procriador do zangão é letal. O poeta é um deus, um demiurgo, que morre na sua obra, excentricidade sibilina, a qual está imbuída de fel, mas que desemboca na simplicidade e na doçura do “destino do mel”, que nutre a colméia humana, a colméia cósmica.
Destino do mel – destino de mel. Gostei do sabor que você extraiu do Fado, Rodrigo. Se nossa sina sabe a dor e a angústia, um mel maior é aquilo que alimenta a plenitude da vida, para além do inevitável azedume que nos tiraniza. A vida é agridoce, e quem é sábio agradece.
Encerro estas linhas como “a pele que fecha sua pupila”, como um deus falho, que morre, para que a existência em êxtase insista. Eu não estou nestas linhas, como você, Rodrigo, não está nos “seus” poemas. A criação nos rejeita, nos destrói, todavia, Deus está conosco, neste calvário – na Ressurreição.