Para facilitar as citações, usarei ao longo do texto as seguintes siglas para a obra de Proust: No caminho de Swan (CS), À sombra das raparigas em flor (SRF), No caminho de Guermantes (CG), Sodoma e Gomorra (SG), A prisioneira (P), A fugitiva (F) e O tempo redescoberto (TR). Utilizarei também a forma abreviada Busca para referir o nome completo da obra.
Falar da obra de Proust é nos aproximarmos de um dos pontos mais altos da literatura do século XX e ao mesmo tempo desvendar alguns dos paradoxos deste século. Estes, felizmente, talvez não tenham sido resolvidos dialeticamente, mas tenham simplesmente entrando em extinção. Ao mesmo tempo, ao ler Em busca do tempo perdido, o fazemos sempre com aquela vaga sensação de que grande parte de sua genialidade se deve ao caráter algo idiossincrático de suas representações e mesmo de suas crenças. E isso em nada diminui a sua abrangência artística, tampouco compromete o seu enraizamento histórico.
Quando lembramos que Nerval saía pelas ruas de Paris e passeava pelo Palais Royal com sua lagosta de estimação presa em uma coleira ou quando viemos a saber, com a morte de Satie e a abertura de sua casa repleta de teias de aranha, que o seu piano tinha teclas quebradas, esses dados não nos soam como meras maneiras de transformar o artista em uma boutade. São consubstanciais às suas criações. Enquanto Baudelaire renova a função heróica e, de certa maneira, trágica do gênio, justamente ao levar a um impasse a sustentação dos valores da nobreza dentro da nova condição decaída do artista que se define a partir do século XVIII, Walt Whitman muda toda a poesia ocidental a partir de uma atitude rigorosamente oposta: cria uma nova cosmogonia baseada justamente nos valores da democracia e em uma equivalência ontológica de todos os seres, que se consuma na amplificação e dissolução do eu. Entre esses dois fundadores da “modernidade” corre um abismo incomensurável. E em ambos temos a oportunidade de experimentar o nonsense que este conceito traz em si, bem como os critérios equivocados que ele produziu.
A partir de Em busca do tempo perdido, temos na literatura um duplo movimento, ou seja, um corte transversal que se dá a um só tempo na subjetividade do autor e na história da literatura. Não há evolução em arte, só há evolução do artista − diz-nos esse pintor das flutuações do espírito, das atualidades e das virtualidades do mundo. É isso que produz o efeito de estranhamento desse monumento sui generis, cuja situação ambígua parece nos dizer que Proust conseguiu uma façanha. A de ser, simultaneamente, um dos maiores e um dos menos modernos artistas de seu tempo, contradizendo todos os pressupostos dos “ídolos de fogo” deste século, como observou Valéry.
Em conflito com a frase acima, talvez seja verdade que “o arcaísmo é feito de muitas insinceridades”, como nos diz Proust em sua nota sobre a pintura de Moréas, e isso se dá porque em geral retemos dos antigos “os traços exteriores”, na medida em que os antigos nunca se viram como antigos em relação a si mesmos, porque o antigo “não se voltava para o que era antigo nele”. Essa fidelidade profunda consigo mesmo marca quase todos os grandes artistas. Porém, por mais admirável que seja a questão estética implicada, há aqui um equívoco crítico e uma ponderação ingênua.
O equívoco consiste em ignorar que, muitas vezes, talvez em sua maioria, os antigos se faziam sobre o que era antigo em relação a eles mesmos. Isso é o que nos impede de saber, por exemplo, a exata extensão das crenças dos povos nômades da Eurásia sobre Pitágoras, deste sobre Sócrates, deste sobre Platão e deste último sobre toda filosofia cristã. A ingenuidade consiste em transformar algumas crenças da modernidade em valores absolutos. Fazendo isso, os seus paladinos não se percebem vítimas de si mesmos, na medida em que, ao pronunciar essa sentença, Proust ignora que o seu mundo é perfeitamente arcaico em relação ao de seu contemporâneo Marinetti. Paradoxalmente, à luz de seus silogismos, um dos dois deve ser eliminado, para que nenhum dos dois atinja a posteridade. Se esses jogos estão entre os fundamentos da própria modernidade e gozam de prestígio, isso não nos impede de compreender facilmente como e por que eles também foram a corda com a qual essa mesma modernidade se enforcou.
Mesmo advogando que “o talento é o critério da originalidade” e que esta seria o “critério da sinceridade”, sendo o prazer o critério tanto do talento quanto da originalidade, a obra de Proust, mais do que um marco zero do que virá a ser, é uma espécie de crivo de diversas tendências anteriores e contemporâneas. E isso é importante notar, para situar melhor a espiral que ela representa para a história da literatura. Algumas delas podem ser colhidas diretamente em suas anotações críticas reunidas em Contre Sainte-Beuve e em sua correspondência. Outras são intuídas ou estão dispersas citações diretas e indiretas ao longo da Busca.
Dentre as leituras e assimilações de Proust encontram-se os próprios Nerval e Baudelaire, além de Balzac, Rolland, Stendhal e Flaubert. Nesse ponto, sabe-se da importância desempenhada por Baudelaire e pela teoria das correspondências para o princípio de analogia que estrutura toda a Busca. Não só por ele, mas também pelos simbolistas. A despeito da ausência de um sentido místico, a obra de Proust não é indiferente às traduções estéticas dessas idéias, a partir da sua assimilação pelo cenáculo simbolista. Seja por meio dos princípios arcanos de Swedenborg, que passaram por Blake e pelos românticos até que Baudelaire lhes desse uma das formas artísticas finais, seja pela circulação, entre os artistas e os iniciados na arte do símbolo, de autores como Eliphas Levi (ocultista da devoção de Mallarmé), Julius Évola, Sar Péladan, Stanislas de Gaita, Papus ou das idéias de Fulcanelli e de alguns herméticos.
Nesse contexto finissecular, além de proporcionar gnose autêntica, como fato social as vias de iniciação tornaram-se um expediente para preservar as marcas de distinção social que eram paulatinamente removidas pelas sucessivas revoluções que atravessaram os séculos XIX e XX, bem como pelo materialismo crescente. Contrapartida da famosa cultura da reprodutibilidade, então emergente, conferiam traços de “nobreza” e de singularidade aos seus iniciados, além de servir de mote a esnobes e dândis, à revelia de seus talentos.
Não é outro o alimento estético dos decadentistas, nos quais essas marcas sociais em extinção ganham a versão mais caseira de uma mística da arte, inspirada em Ruskin e Pater, em Rémy de Gourmont e na écriture artiste dos irmãos Goncourt. Por isso o tênue hiato que separa figuras como Wilde e Huysmans de personagens como Axel, Des Esseintes e, no caso de Proust, do barão de Charlus (SG).
Essas torres de silêncio e contemplação, ancoradas em uma renúncia à vida, são centrais para compreender todo o período artístico que vai de 1870 a 1930, conforme o magistral estudo de Edmund Wilson estipula. A obra de Proust não é alheia a essa atmosfera. Ao contrário, representa uma de suas maiores expressões. O que importa é a possibilidade estética de traduzir os ritmos do mundo em uma interiorização sensória; esta é, a um só tempo, descritiva e volitiva, tem a função de reter o objeto apresentado pelos sentidos e, ao mesmo tempo, desmembrá-lo pelo recurso híbrido da memória, por meio do qual aquele objeto apresenta a suas virtualidades, ou seja, os demais objetos e sensações e vivências que estão latentes nele. E frise-se também o fundamento plástico e musical que estrutura a Busca, além de seu fundo filosófico, baseado sobretudo no criacionismo de Bergson, com o qual Proust teve contato muito cedo, por meio de conferências, como George Painter ressalta em sua bela biografia. Mas esses artistas são tão importantes na sua obra quanto o são Francis Jammes e Marterlinck, Montaigne e Mme de Sévigne, Wagner e Van Dyck, Veermer e Tolouse-Laututrec, Mme de Cardaillec e Mantegna, Anatole France e Henri de Rágnier. Porém, foquemos a obra.
Talvez não seja exagerado dizer que há um princípio que se manifesta da primeira à última das mais de duas mil páginas de Em busca do tempo perdido. Ele consiste, em linhas gerais, em uma perspectiva idealizada de todos os fenômenos, sejam eles personagens ou objetos, e na sua conseqüente transformação, decomposição e ruína. O ideal, assim, cumpre o papel dramático, de centro irradiador de sentido. É ele que fornece a força passional para que os personagens ajam e vivam, mas, ao mesmo tempo, o resultado deceptivo é proporcional à força idealizadora daquele e daquilo que se arruína à sua custa. Desse modo, o ceticismo e até o cinismo que encontramos em algumas de suas páginas, que vão do humor e da graça de circunstância à ironia quase histriônica em alguns casos, não é afirmativo, como se enfim o conhecimento do mundo e das paixões tivesse sido acessado e domado. Traz em si, ao contrário, a marca de uma melancolia.
Ela nos sinaliza que o objetivo foi frustrado. Obstruiu-se o percurso cujo intuito era o de conhecer e dominar o outro e o mundo, seja por meio da vida mundana, seja por meio do amor. Em ambos os casos, a exteriorização do eu e sua tentativa de assimilar e ser assimilado à realidade que o cerca é sempre insuficiente em relação ao ideal que conduz esse mesmo eu a essa excentricidade. Do ir-e-vir desses pólos de solidão e de mundanidade nascem os dramas da obra de Proust. Em sua sinfonia, sempre o tom menor predomina, como ruína inexorável de nosso destino, imersos que estamos na relatividade absoluta dos afetos, dos valores e das percepções. Dessa condição, não é possível redimirmo-nos. Aliás, a única forma parcial de redenção seria o salto fora do tempo, quando temos acesso à estrutura primeira da memória e do tempo, fora de suas representações, fato que só se consumaria na arte e que, em linhas gerais, constitui o tema do último volume (TR).
Como recorda Edmund Wilson em seu estudo magistral, o projeto inicial da Busca era o de ser uma sinfonia em três partes. Cada uma delas levaria títulos que se refeririam a um dos andamentos: Idade dos Nomes, Idade das Palavras, Idade das Coisas. A primeira etapa seria dominada pela perspectiva da infância e da adolescência, ou seja, da possibilidade da inocência, e corresponde a dois espaços principais: a província de Combray e os balneários de Rivebelle e Balbec. A segunda trata da vida adulta e tem como espaço romanesco Paris. É a descoberta do amor, uma experiência prévia à entrada na realidade efetiva das coisas, que culmina com o ponto mais agudo da crise deceptiva. A entrada neste contexto existencial está intimamente ligada não só às relações sociais, mas sobretudo às reações amorosas. Ou seja, a terceira etapa corresponde ao próprio inferno, ao exílio na falsidade e na inautenticidade, dado que o movimento de ruína do ideal atinge seu ápice a partir de Sodoma e Gomorra, mas perdura em A prisioneira e A fugitiva. Esse aspecto é interessante, pois nos leva a pensar a obra sob o ponto de vista dos andamentos, e mesmo assim é possível vermos esse leitmotiv que mencionei em todos os volumes e nos três ciclos que se desenvolvem.
Sabe-se que o primeiro volume começa pelo ambiente de Combray, província da avó do narrador Marcel e onde se desdobra o famoso episódio da madeleine. A localização é importante, pois divide em duas a topografia social do romance. De um lado, o caminho de Guermantes, que conduz à alta nobreza. De outro, o de Villeparisis, que leva à vida burguesa e às classes intermediárias. Nesse cenário, a abertura da obra dá-se com a famosa cena da hesitação de Marcel, ainda criança, na cama, esperando o beijo de boa noite da mãe, enquanto seus pais se entretêm com a visita de Swan, um dos personagens centrais. Logo na primeira cena, portanto, estamos diante da obliteração de uma assimilação da espera, e é instaurada a tônica da vigília, o que também de saída sinaliza o estilo anfíbio de Proust em toda a sua obra, esse misto belíssimo de devaneio consciente e de controle inconsciente da escrita.
A centralidade de Swan é importante nessa fase inicial por diversos fatores. Tendo-se casado com Odette de Crécy, uma cocotte de cabaré, e descido socialmente, representa a figura mundana por excelência, aquela que atravessa os estratos sociais, o nobre que é aos poucos assimilados pela burguesia, movimento que é histórico, não apenas ficcional. Mas Swan também se move no campo da idealização, e acaba apaixonando-se por Odette porque esta, embora vulgar aos olhos de todos os outros, satisfaz-lhe os desejos estéticos que, por sua vez, também pertencem apenas à construção pessoal do próprio Swan (CS). Do mesmo modo, Legrandin deseja se aproximar dos nobres Guermantes, Bergotte, o escritor, imagina-se célebre e possuidor de um talento que não tem, ao passo que o músico Vinteuil, autor da célebre sonata tocada na casa dos Verdurin, um dos temas do amor de Swan, por ter sido nesta casa que com conhecera Odette, padece da mágoa do desamor de sua filha (CS). Os Verdurin, por seu turno, também têm a sua contrapartida por alimentarem idéias de nobreza incapazes de se cumprir: vivem em uma espécie de isolamento despeitado, como se quisessem assim neutralizar de antemão o eventual desprezo que viessem a sofrer (CS). No caso deles, a idealização age de modo atípico: motivando o espírito a buscar os valores da nobreza decadente, estes são supervalorizados e temidos, e a frustração surge natimorta, como recalque.
E é logo no começo da obra que começam a cair as primeiras máscaras. Uma delas, explorada na longa digressão final (CS) e retomada no volume seguinte é a que concerne ao amor de Marcel por Gilberte, filha de Swan (CS/SRF). Esse amor, não tendo se realizado plenamente, não só não apresenta uma significação satisfatória do seu fim, como deixa no personagem uma dúvida em relação à essência mesma do amor. O atrito interrogativo será arrastado ao longo do romance, até se concretizar como o inferno da completa inviabilidade, cujo corolário é a sua paixão por Albertine, verdadeiro hieróglifo humano, cujas motivações últimas chegam ao final da obra sem uma definição a contento (AD/P/TR). Assim, vemos o princípio de idealização ruir pouco a pouco, até chegarmos a saber que a princesa de Guermantes é Mme Verdurin, desposada por questões financeiras pelo príncipe após a derrota da Alemanha (CG). A partir dessas rupturas, saímos da primeira instância da obra e adentramos a sua dimensão mais mundana (CG/SG). Porém, essa primeira queda, digamos assim, ou seja, a descoberta do falso prestígio dos Guermantes, sofre ainda uma segunda investida, quando o jovem narrador, de volta a Paris, descobre que Mme de Villeparisis não era tão brilhante quanto acreditava. Revê-a, depois de algum tempo, desclassificada, fazendo-se passar por uma espécie de escritora medíocre, eivada de problemas circunstanciais e de mesquinharias (SG).
Quando pensamos que a teia das relações se estabilizou, mais uma homeostase intervém para retirar mais uma camada da realidade e mostrar de modo ainda mais cru a sua essência. Por intermédio de Charlus, Marcel descobre que o senhor de Villeparisis era uma pessoa desqualificada socialmente, e que havia criado com artifícios o título de Villeparisis apenas para que ele fosse agregado à sua esposa. A mesma Mme de Villeparisis, um pouco mais à frente, reaparecerá, idosa e arruinada, como uma forma de mostrar a impotência patética daquela que havia gozado de tanto poder e exercido tanto a sua impiedade (SG). Essas relações de simulacros que vão cedendo estão por todas as partes; mas ganham mais vivacidade a partir do momento em que entram em cena os jogos amorosos.
É nesse momento que adentramos o reino dos simulacros, cujos representantes mais importantes são Albertine e Charlus, naturezas híbridas e conflituosas, em constante oscilação entre o masculino e o feminino (SG). A perversidade, o egoísmo e a falsidade nos conduzem a um ponto cego do romance, onde o movimento centrífugo gerado pelo princípio de idealização inicial parece ter-se destruído por completo. O pano de fundo ideal que proporcionava a tensão na iminência de sua ruína começa a enfraquecer, posto que o grotesco toma a cena e embaralha os personagens. Os melhores representantes desse mundo do instinto e do egoísmo parecem ser Morel e Charlus. Como romper esse círculo? Possivelmente por um acesso legítimo não á verdade, mas sim à realidade, em sua constituição mais primária e, mesmo assim, indevassável. Porém, a viabilidade dessa instância última, não destruída pelas séries de máscaras e perspectivas que se neutralizam umas à outras, surge apenas no final do romance (TR). Não se trata de uma redenção, mas sim de uma possibilidade de captar a matéria mesma da realidade, em sua espessura mais viscosa, além do tempo e de suas implicações. Para isso a arte, em seu sentido verdadeiro, seria uma das poucas vias de acesso, segundo Proust, a essa verdade que estaria no cerne mesmo de todas as manifestações da vida (TR).
Dentro desse panorama, e mesmo o projeto da divisão ternária da Busca tendo sido abandonado, o segundo volume, À sombra das raparigas em flor, traz como uma de suas duas partes o belo título “Nomes de terras: a terra”, espécie de reminiscência desse estrutura embrionária. Este volume é um devaneio adolescente sobre o amor e sobre todas as questões que marcam a obra de Proust. Depois do fracasso de seu romance com Gilberte, filha do judeu Swan, narrado longamente em forma de epílogo (CS), a meditação sobre essa frustração amorosa prossegue, de maneira bastante significativa, fornecendo elementos para a dúvida cáustica do amor e das relações sociais que vão sendo cada vez mais e com maior intensidade destruídas (SRF). A idealização amorosa, portanto, prossegue nesta parte da obra e, pode-se dizer, expande-se para diversas instâncias.
Um dos temas mais idealizados ao longo do primeiro volume da Busca é justamente a nobreza dos Guermantes, o marcado fascínio que a oposição entre os caminhos de Guermantes e Villeparisis ativa no imaginário do menino Marcel, fato que será aprofundado mais adiante (CG). Porém, antecipando o desdobramento ulterior, em À sombra das raparigas em flor essa idealização já merece algumas pinceladas magistrais. Por seu lado, o teor deceptivo que a duquesa de Guermantes viria imprimir no espírito de Marcel não está isolado; compartilha de outro movimento centrífugo, composto em espiral, e que consiste na edificação de um mito de pureza e a sua conseqüente destruição. Trata-se da atriz Berma (SRF). Essas duas figuras congregam em si boa parte do movimento pendular da Busca, e são pintadas magnificamente.
Ora, antes mesmo do personagem-narrador conseguir, graças à intervenção e aos favores do senhor de Norpois, um ingresso para assistir à interpretação que a atriz faz da Fedra de Racine, já havia reservado páginas e páginas para compor o caráter dessa espécie de heroína dos palcos. O tom algo efusivo e um tanto histriônico que a obra de Proust revela no que diz respeito aos valores e à honra é algo que o coloca como um dos grandes moralistas de todos os tempos. É esse motivo também que o leva a não assumir de saída um ceticismo filosófico ou a meramente aceitar a verdade irredutível das aparências. Não. A questão da verdade em Proust é mais delicada, mais complexa. E um dos aspectos que o atestam é esse atrito entre a glorificação da face alheia, no que ela tem de mais genuíno, e a miséria dos confins mais sórdidos de nossas almas. Tal diapasão, tal captação dos fenômenos mais amplos da vida, tendo um sentido moral como fundamento, produz-nos a sensação de que terá também, como essência, um conteúdo trágico. Não é isso o que ocorre, mas sim o seu reverso. Eis que Proust nos apresenta à contrapartida do drama moral: o cômico. E esse é um dos aspectos mais interessantes da Busca, que vai da ironia aos limites do histriônico e do grotesco, pontuado em diversos momentos da obra, infelizmente impossível de ser aprofundado aqui.
Cabe ressaltar apenas que esse movimento vai agregando a si os personagens, os caracteres, os valores, sempre com o intuito de negar a sua estabilidade e a substância verdadeira de seus atos. Mesmo quando há intencionalidade, há frustração ocasionada pelo destino, como no caso, enunciado pelo narrador, dos verdadeiros motivos que teriam levado Swan a se casar com a vulgar Odette. Na realidade, diz-nos, sua motivação profunda era a de conseguir estabelecer um contato inusitado, possibilitando a Odette a glória da intimidade com a duquesa de Guermantes (SRF). Esse intuito não se cumpre pelas vias de Swan, que morre. Mas sim pelas próprias circunstâncias da vida, pois, após sua morte, de fato a duquesa espontaneamente trava amizade com Odette. Seu sonho mundano, cujo maior satisfação era produzir relações sociais transversais, a um só tempo se quebra e se realiza; há energia deceptiva suficiente para saber que Swan fracassou em seus intentos e, mais que isso, foi varrido pela doença antes mesmo de realizar o seu intuito. Mas essas aspirações, ao se realizarem, ou seja, ao cumprirem seu papel real, objetivo, que já lhes parecia estar destinado, não fazem mais do que lançar a última pá de terra sobre o ideal algo bufo e algo heróico que animava Swan.
Em meio a essas espirais de altivez e desolação, entre esses píncaros de miséria e gratuidade, entre essa comédia altissonante cujas protagonistas são a ilusão perfeita e a realidade insuficiente, começa o outro movimento dessa sinfonia, um dos mais importantes para compreender a obra de Proust. É aquilo que, como o definiu Deleuze, podemos chamar de ritornello, usando um termo da música que é, aliás, mencionado pelo próprio Proust (CS). Quando um tema e uma frase musicais retornam em outro ponto de uma mesma obra, adquirem um novo sentido. Sabemos que é a mesma modulação, uma variedade diferente da mesma frase poética executada há pouco. Mas o que se passou até que houvesse a repetição altera o sentido dessa frase e, justamente por meio da repetição, confere-lhe nova espessura. Esse aspecto é de suma importância, e em À sombra das raparigas em flor tal recurso começa a emergir com toda a sua força. Um dos leitmotiven do primeiro volume, sobretudo da primeira parte, “Em torno da sra. Swan”, como o título diz, é Gilberte. Esta é explicada, referida, reiterado e trançado ao longo de todo este volume, bem como a reflexão dos possíveis motivos que levaram a fenecer o amor entre ela e Marcel, como uma espécie de baixo contínuo ou de neurose obsessiva (CS/SRF). Outro tema que ficou famosa na Busca, além do mais que glosado episódio da madeleine, é a Sonata de Vinteuil. Sabe-se que ela começou como uma música especial das reuniões na casa dos Verdurin. Entretanto, a maneira como ela passa a repercutir no espírito do narrador começa também a produzir uma cascata de sensações, no centro das quais emerge, como regra, a inautenticidade, a impossibilidade de possuirmos o cerne de nossas vidas, dada a impossibilidade de retermos uma mínima frase musical intacta no espírito. Nesse sentido, o narrador, ao tratar de sua sensação íntima em relação à sonata, diz-nos que nunca chegou a “possuí-la inteiramente”, e, justamente por isso, ela “assemelhava-se à sua vida” (SRF).
É fato que alguns personagens servem de âncora ao furor idealizante de Marcel. E parecem sinalizar algumas ordens de realidades, quase como se o narrador nos dissesse de maneira onisciente que havia forças tentando salvaguardá-lo de si mesmo. Esse processo de desmistificação está em episódios simples e até bastante rápidos, como aquele no qual o seu amigo Bloch adverte o narrador de que as mulheres de Méséglise só se interessam pelo amor, querendo dizer com isso, em termos mais prosaicos, que para elas há tudo, menos amor (SRF). Porém, estes estendem-se e se interpenetram em outros, de modo que vão gerando situações mais densas. Outros pequenos sinais compõem o cenário mais amplo da segunda parte de À sombra das raparigas em flor, “Nomes de terras: a terra”. Esta transcorre quase em sua totalidade no balneário de Balbec, onde o narrador passa férias com os amigos Robert, o próprio Bloch e, principalmente, Saint-Loup, com quem trava os diálogos mais densos e chega mesmo a trocar confissões.
A estadia em Balbec é notável sob diversos pontos de vista, dos mais filosóficos aos mais plásticos e estritamente literários. A começar pelo relato da viagem de trem, na qual o narrador, criatura nervosa e asmática, mostra-se tenso diante de uma decisão aparentemente desprezível (coisa recorrente em Proust): tomar ou não café. Decide enfim tomar, o que afeta o seu sistema nervoso e fá-lo desenvolver, em estado de torpor, uma descrição sutilíssima das tramas do veludo azul das cortinas (SRF). Mas a apostasia estética não pára aqui, e, nas descrições praianas, mais uma vez a paleta do pintor Proust mostra toda a sua variedade colorística, seja mostrando um grupo de meninas belas que, saltitando pela areia, mais parecem um borrão composto contra o horizonte, seja descrevendo um jantar no restaurante do Grande Hotel, no qual as figuras aparecem à janela de vidro como se estivessem em um aquário, com requintes de zoologia e de botânica. A comicidade produz nesses casos uma espécie de resgate do ser perdido na inautenticidade. Quando estamos fora da vida que, em seu torvelinho, vai nos expulsando paulatinamente de seu centro de gravidade, resta-nos ou o sofrimento pela condição inexorável dessa primeira idade do mundo e da vida que se perde, ou uma maneira de neutralizar sua ação moral. E, nesse caso, o riso funciona como forma libertadora do luto implícito em todos os atos de reconhecimento do mundo.
As espirais dão suas idas e vindas até estabelecerem um novo centro provisório de imantação. Esse movimento é às vezes semelhante à embriaguez, em outras, à mais refinada mescla de vigília e racionalidade. Em outros momentos, temos um devaneio regrado. Por isso, mesmo tendo o próprio Proust se referido à sua obra como uma catedral e alguns críticos mencionarem a metáfora do tecido, creio que o mais preciso seja a de um novelo. O seu método não é compositivo, mas decompositivo: parte de uma sensação, de um fato, de uma fisionomia, de uma conversa, e se incumbe de trazer à tona as suas virtualidades subjacentes, que são em última instância infinitas. Essa sensação de infinito que respiramos na Busca é o que lhe confere um estatuto quase religioso, mesmo sendo sua radicação tão terrena e secular. Talvez seja a mesma sorte de qualidades do espírito que experimentamos nas grandes obras de arte, mas também nos momentos de vida legítima, que, na lógica de Proust, paradoxalmente, são muito poucos. Quase inexistentes, dir-se-ia.
Ou seja, as digressões vão destecendo o novelo do pensamento mesmo depois que todas as margens já foram ocupadas, pois nada melhor do que esta obra para colocar-nos em contato com as margens da linguagem. Quando uma dobra é desfeita, é sempre possível encontrar novas sutilezas a esmiuçar e a desdobrar. Como eu disse, esse movimento vem marcado por um rigoroso senso de perda da inocência, de irreversibilidade. Entretanto, há sim, agora e e sempre, o retorno, o eterno retorno das coisas, quase como querendo demonstrar a nossa insuficiência diante da efetividade do mundo alheio ao nosso destino e à nossa vontade. Nesse sentido que a obra de Proust cumpre quase esquematicamente as leis alquímicas da diluição e da coagulação, solve et coagula, de uma das formas mais conscientes vistas em arte. Enfim, a mise-en-scène proustiana de À sombra das raparigas em flor chega a seu término, que não é a verdade, mas sim um dos tantos nós de tensão no qual o espírito se reconhece diante de sua decifração impossível. Esse ponto é o episódio e o personagem do pintor Elstir.
O papel de Elstir, definido como um célebre pintor, amigo de Swan, que vive em Rivebelle, região contígua a Balbec, é central. Marcel, despertando a sua admiração por aquele personagem, começa a freqüentar o seu ateliê e a ensaiar uma amizade. Em uma dessas visitas, o narrador fica surpreso diante de um dos quadros. A longa descrição, misto de sensação e forma objetiva, desperta a sua curiosidade sobre aquele rosto indefinido que ao fim de indagações, sugere-lhe um travesti. É quando por fim descobre que se trata de um retrato de Odette de Crécy, pintado por Elstir em sua juventude (SRF). Não por acaso, é a partir desse momento que o narrador insere o tema de Albertine, personagem que é um dos leitmotiven da Busca e que ocupará lugar de destaque nos volumes seguinte. Mais que isso, será a sua namorada, em uma vida a dois que pode ser traduzida como um pesadelo de ciúme e auto-anulação (SG/P/AD).
Pode-se pensar que Elstir é um ponto de viragem entre o ideal e o real. Mas de uma viragem, como era de se supor, sem retorno. Nele o conflito entre o princípio de idealização, cujo mais alto núcleo irradiador é a arte, entra em colapso. Diferente de Berma, que se revela uma atriz mesquinha, totalmente aquém da potência idealizada por Marcel, Elstir não o decepciona. Pelo contrário, fornece outra forma de negação da vida: o simulacro. Marcel tardou a reconhecer o rosto de Odette naquele ser andrógino. Pois bem: esse equívoco é o que compõe a própria realidade e a essência mesma da vida, diria Proust. Pois não há limite entre a representação e a falsidade, assim como não o há entre a falsidade e a minha condição intransponível em relação aos outros. Se não posso conhecer o outro, se o outro é e sempre será opaco, oculto, uma parcela indecifrável de mim mesmo e entretanto imerso na região mais profunda de meu ser, tampouco a representação artística esgota a potência de simulacros de que a vida é repleta. E, nesse caso, tanto o conhecimento quanto o autoconhecimento são uma farsa. De certa forma, com Elstir a arte se fratura, rompe-se como núcleo de gravitação ideal. E não é por acaso que, a partir do volume seguinte, que a descida ao inferno da inautenticidade vai ganhando cada vez mais espessura e realidade (CG).
Essa guinada do fim de À sombra das raparigas em flor representa o poder da arte de sutilizar a aparência até destruí-la. E parece assim querer demonstrar-nos que, para Proust, essa seria a vingança possível da vida contra a vida. Seria o golpe de mestre que poria de pernas para o ar a interrogação maliciosa que as formas nos lançam, sem contudo fornecer-nos sequer uma saída provisória, à medida que a ilusão se calcifica e a dimensão ideal só existe na memória, como passado. Aliás, sequer assim. Pois o passado também retorna e, ao retornar, paradoxalmente, deixa de ser eterno, negando parcialmente o seu estatuto. Nesse sentido, alterando a premissa de Oscar Wilde, para Proust a arte não existe para nos salvar da verdade. Ela é a verdade que nos confere existência. Mas esta conclusão é o ponto de partida e o de chegada de Em busca do tempo perdido. No meio, o inferno da inautenticidade, da mentira, da falsidade, do relativismo moral, em suma, de todas as formas possíveis de não habitar o cerne do real, sempre inapreensível. É esse o espaço privilegiado ocupado pela arte, verdade metamórfica, incompleta, sempre mostrando seu misto de sonho e silêncio, de miséria e esplendor, mas ainda assim mais fiável do que os conceitos ou a pura experiência, em seu estado bruto.
Desde o Dom Quixote a literatura tem sido o palco privilegiado da encenação de um drama que é humano, mas também cósmico. Épica da negatividade, a essência da literatura tem-se mostrado na sua aptidão de mostrar de maneira consumada a excentricidade do eu em relação à verdade, que é proporcional à consciência que esse mesmo eu é capaz de ter do outro e de si mesmo. O resultado desse conflito, no qual o grande tema é a incapacidade do espírito reassimilar em si a substância do mundo e, consequentemente, tornar a ser assimilado por ela a contento, é o movimento pendular da linguagem que acaba por encontrar a sua edificação ideal sobre a perfeição de sua própria ruína.
Essa ascendência do negativo, essa exaustão do espírito que, quanto mais segue em busca de sua superação e de sua completude, mais se aprofunda nas regiões abissais do vazio, da morte, do exílio e do desespero, podem ser vistas como uma espécie de coração da arte moderna. Nesses termos, a obra de Proust não é a inauguração de uma nova literatura, mas o canto agônico de um mundo que não mais existe e a mais integral recapitulação de um dos fundamentos da ficção: o tempo. Sua grandeza depende de um ideal, e mesmo as formas de aviltamento e de impotência que ela nos sugere usam como parâmetro essa idealidade pressuposta. A ruína da ruína, ou a ruína dos valores, como conseqüência nefasta do próprio projeto da modernidade, transformou a obra de Proust e suas preocupações em uma espécie de questão clandestina, para não dizer anacrônica. E se é para recorrer a paradoxos, a realização empírica dos ideais da modernidade, ou seja, o esvaziamento do real, que foi pulverizado em uma série de infinitos pontos de vista que não se completam, que nunca correspondem ao ideal que impulsiona o próprio sentido concreto da existência e da vida, promoveu a inviabilidade e a iminente destruição destas mesmas existência e vida. A eventual crítica que podemos fazer à obra de Proust, portanto, diz respeito mais à sua vigência do que à sua efetividade artística. Dentre as diversas metáforas de que dispomos no oceano de metáforas que é Em busca do tempo perdido, podemos utilizar a mais trivial, pois não é apena da originalidade que deriva seu verdadeiro encanto. Sendo o mais belo crepúsculo da literatura, ela nasceu da dignidade de sua auto-anulação. Porém, com seu veneno, não gerou o seu antídoto. E quanto mais deslocada de nosso tempo ela for, tanto mais essencial ela será.
Quando lembramos que Nerval saía pelas ruas de Paris e passeava pelo Palais Royal com sua lagosta de estimação presa em uma coleira ou quando viemos a saber, com a morte de Satie e a abertura de sua casa repleta de teias de aranha, que o seu piano tinha teclas quebradas, esses dados não nos soam como meras maneiras de transformar o artista em uma boutade. São consubstanciais às suas criações. Enquanto Baudelaire renova a função heróica e, de certa maneira, trágica do gênio, justamente ao levar a um impasse a sustentação dos valores da nobreza dentro da nova condição decaída do artista que se define a partir do século XVIII, Walt Whitman muda toda a poesia ocidental a partir de uma atitude rigorosamente oposta: cria uma nova cosmogonia baseada justamente nos valores da democracia e em uma equivalência ontológica de todos os seres, que se consuma na amplificação e dissolução do eu. Entre esses dois fundadores da “modernidade” corre um abismo incomensurável. E em ambos temos a oportunidade de experimentar o nonsense que este conceito traz em si, bem como os critérios equivocados que ele produziu.
A partir de Em busca do tempo perdido, temos na literatura um duplo movimento, ou seja, um corte transversal que se dá a um só tempo na subjetividade do autor e na história da literatura. Não há evolução em arte, só há evolução do artista − diz-nos esse pintor das flutuações do espírito, das atualidades e das virtualidades do mundo. É isso que produz o efeito de estranhamento desse monumento sui generis, cuja situação ambígua parece nos dizer que Proust conseguiu uma façanha. A de ser, simultaneamente, um dos maiores e um dos menos modernos artistas de seu tempo, contradizendo todos os pressupostos dos “ídolos de fogo” deste século, como observou Valéry.
Em conflito com a frase acima, talvez seja verdade que “o arcaísmo é feito de muitas insinceridades”, como nos diz Proust em sua nota sobre a pintura de Moréas, e isso se dá porque em geral retemos dos antigos “os traços exteriores”, na medida em que os antigos nunca se viram como antigos em relação a si mesmos, porque o antigo “não se voltava para o que era antigo nele”. Essa fidelidade profunda consigo mesmo marca quase todos os grandes artistas. Porém, por mais admirável que seja a questão estética implicada, há aqui um equívoco crítico e uma ponderação ingênua.
O equívoco consiste em ignorar que, muitas vezes, talvez em sua maioria, os antigos se faziam sobre o que era antigo em relação a eles mesmos. Isso é o que nos impede de saber, por exemplo, a exata extensão das crenças dos povos nômades da Eurásia sobre Pitágoras, deste sobre Sócrates, deste sobre Platão e deste último sobre toda filosofia cristã. A ingenuidade consiste em transformar algumas crenças da modernidade em valores absolutos. Fazendo isso, os seus paladinos não se percebem vítimas de si mesmos, na medida em que, ao pronunciar essa sentença, Proust ignora que o seu mundo é perfeitamente arcaico em relação ao de seu contemporâneo Marinetti. Paradoxalmente, à luz de seus silogismos, um dos dois deve ser eliminado, para que nenhum dos dois atinja a posteridade. Se esses jogos estão entre os fundamentos da própria modernidade e gozam de prestígio, isso não nos impede de compreender facilmente como e por que eles também foram a corda com a qual essa mesma modernidade se enforcou.
Mesmo advogando que “o talento é o critério da originalidade” e que esta seria o “critério da sinceridade”, sendo o prazer o critério tanto do talento quanto da originalidade, a obra de Proust, mais do que um marco zero do que virá a ser, é uma espécie de crivo de diversas tendências anteriores e contemporâneas. E isso é importante notar, para situar melhor a espiral que ela representa para a história da literatura. Algumas delas podem ser colhidas diretamente em suas anotações críticas reunidas em Contre Sainte-Beuve e em sua correspondência. Outras são intuídas ou estão dispersas citações diretas e indiretas ao longo da Busca.
Dentre as leituras e assimilações de Proust encontram-se os próprios Nerval e Baudelaire, além de Balzac, Rolland, Stendhal e Flaubert. Nesse ponto, sabe-se da importância desempenhada por Baudelaire e pela teoria das correspondências para o princípio de analogia que estrutura toda a Busca. Não só por ele, mas também pelos simbolistas. A despeito da ausência de um sentido místico, a obra de Proust não é indiferente às traduções estéticas dessas idéias, a partir da sua assimilação pelo cenáculo simbolista. Seja por meio dos princípios arcanos de Swedenborg, que passaram por Blake e pelos românticos até que Baudelaire lhes desse uma das formas artísticas finais, seja pela circulação, entre os artistas e os iniciados na arte do símbolo, de autores como Eliphas Levi (ocultista da devoção de Mallarmé), Julius Évola, Sar Péladan, Stanislas de Gaita, Papus ou das idéias de Fulcanelli e de alguns herméticos.
Nesse contexto finissecular, além de proporcionar gnose autêntica, como fato social as vias de iniciação tornaram-se um expediente para preservar as marcas de distinção social que eram paulatinamente removidas pelas sucessivas revoluções que atravessaram os séculos XIX e XX, bem como pelo materialismo crescente. Contrapartida da famosa cultura da reprodutibilidade, então emergente, conferiam traços de “nobreza” e de singularidade aos seus iniciados, além de servir de mote a esnobes e dândis, à revelia de seus talentos.
Não é outro o alimento estético dos decadentistas, nos quais essas marcas sociais em extinção ganham a versão mais caseira de uma mística da arte, inspirada em Ruskin e Pater, em Rémy de Gourmont e na écriture artiste dos irmãos Goncourt. Por isso o tênue hiato que separa figuras como Wilde e Huysmans de personagens como Axel, Des Esseintes e, no caso de Proust, do barão de Charlus (SG).
Essas torres de silêncio e contemplação, ancoradas em uma renúncia à vida, são centrais para compreender todo o período artístico que vai de 1870 a 1930, conforme o magistral estudo de Edmund Wilson estipula. A obra de Proust não é alheia a essa atmosfera. Ao contrário, representa uma de suas maiores expressões. O que importa é a possibilidade estética de traduzir os ritmos do mundo em uma interiorização sensória; esta é, a um só tempo, descritiva e volitiva, tem a função de reter o objeto apresentado pelos sentidos e, ao mesmo tempo, desmembrá-lo pelo recurso híbrido da memória, por meio do qual aquele objeto apresenta a suas virtualidades, ou seja, os demais objetos e sensações e vivências que estão latentes nele. E frise-se também o fundamento plástico e musical que estrutura a Busca, além de seu fundo filosófico, baseado sobretudo no criacionismo de Bergson, com o qual Proust teve contato muito cedo, por meio de conferências, como George Painter ressalta em sua bela biografia. Mas esses artistas são tão importantes na sua obra quanto o são Francis Jammes e Marterlinck, Montaigne e Mme de Sévigne, Wagner e Van Dyck, Veermer e Tolouse-Laututrec, Mme de Cardaillec e Mantegna, Anatole France e Henri de Rágnier. Porém, foquemos a obra.
Talvez não seja exagerado dizer que há um princípio que se manifesta da primeira à última das mais de duas mil páginas de Em busca do tempo perdido. Ele consiste, em linhas gerais, em uma perspectiva idealizada de todos os fenômenos, sejam eles personagens ou objetos, e na sua conseqüente transformação, decomposição e ruína. O ideal, assim, cumpre o papel dramático, de centro irradiador de sentido. É ele que fornece a força passional para que os personagens ajam e vivam, mas, ao mesmo tempo, o resultado deceptivo é proporcional à força idealizadora daquele e daquilo que se arruína à sua custa. Desse modo, o ceticismo e até o cinismo que encontramos em algumas de suas páginas, que vão do humor e da graça de circunstância à ironia quase histriônica em alguns casos, não é afirmativo, como se enfim o conhecimento do mundo e das paixões tivesse sido acessado e domado. Traz em si, ao contrário, a marca de uma melancolia.
Ela nos sinaliza que o objetivo foi frustrado. Obstruiu-se o percurso cujo intuito era o de conhecer e dominar o outro e o mundo, seja por meio da vida mundana, seja por meio do amor. Em ambos os casos, a exteriorização do eu e sua tentativa de assimilar e ser assimilado à realidade que o cerca é sempre insuficiente em relação ao ideal que conduz esse mesmo eu a essa excentricidade. Do ir-e-vir desses pólos de solidão e de mundanidade nascem os dramas da obra de Proust. Em sua sinfonia, sempre o tom menor predomina, como ruína inexorável de nosso destino, imersos que estamos na relatividade absoluta dos afetos, dos valores e das percepções. Dessa condição, não é possível redimirmo-nos. Aliás, a única forma parcial de redenção seria o salto fora do tempo, quando temos acesso à estrutura primeira da memória e do tempo, fora de suas representações, fato que só se consumaria na arte e que, em linhas gerais, constitui o tema do último volume (TR).
Como recorda Edmund Wilson em seu estudo magistral, o projeto inicial da Busca era o de ser uma sinfonia em três partes. Cada uma delas levaria títulos que se refeririam a um dos andamentos: Idade dos Nomes, Idade das Palavras, Idade das Coisas. A primeira etapa seria dominada pela perspectiva da infância e da adolescência, ou seja, da possibilidade da inocência, e corresponde a dois espaços principais: a província de Combray e os balneários de Rivebelle e Balbec. A segunda trata da vida adulta e tem como espaço romanesco Paris. É a descoberta do amor, uma experiência prévia à entrada na realidade efetiva das coisas, que culmina com o ponto mais agudo da crise deceptiva. A entrada neste contexto existencial está intimamente ligada não só às relações sociais, mas sobretudo às reações amorosas. Ou seja, a terceira etapa corresponde ao próprio inferno, ao exílio na falsidade e na inautenticidade, dado que o movimento de ruína do ideal atinge seu ápice a partir de Sodoma e Gomorra, mas perdura em A prisioneira e A fugitiva. Esse aspecto é interessante, pois nos leva a pensar a obra sob o ponto de vista dos andamentos, e mesmo assim é possível vermos esse leitmotiv que mencionei em todos os volumes e nos três ciclos que se desenvolvem.
Sabe-se que o primeiro volume começa pelo ambiente de Combray, província da avó do narrador Marcel e onde se desdobra o famoso episódio da madeleine. A localização é importante, pois divide em duas a topografia social do romance. De um lado, o caminho de Guermantes, que conduz à alta nobreza. De outro, o de Villeparisis, que leva à vida burguesa e às classes intermediárias. Nesse cenário, a abertura da obra dá-se com a famosa cena da hesitação de Marcel, ainda criança, na cama, esperando o beijo de boa noite da mãe, enquanto seus pais se entretêm com a visita de Swan, um dos personagens centrais. Logo na primeira cena, portanto, estamos diante da obliteração de uma assimilação da espera, e é instaurada a tônica da vigília, o que também de saída sinaliza o estilo anfíbio de Proust em toda a sua obra, esse misto belíssimo de devaneio consciente e de controle inconsciente da escrita.
A centralidade de Swan é importante nessa fase inicial por diversos fatores. Tendo-se casado com Odette de Crécy, uma cocotte de cabaré, e descido socialmente, representa a figura mundana por excelência, aquela que atravessa os estratos sociais, o nobre que é aos poucos assimilados pela burguesia, movimento que é histórico, não apenas ficcional. Mas Swan também se move no campo da idealização, e acaba apaixonando-se por Odette porque esta, embora vulgar aos olhos de todos os outros, satisfaz-lhe os desejos estéticos que, por sua vez, também pertencem apenas à construção pessoal do próprio Swan (CS). Do mesmo modo, Legrandin deseja se aproximar dos nobres Guermantes, Bergotte, o escritor, imagina-se célebre e possuidor de um talento que não tem, ao passo que o músico Vinteuil, autor da célebre sonata tocada na casa dos Verdurin, um dos temas do amor de Swan, por ter sido nesta casa que com conhecera Odette, padece da mágoa do desamor de sua filha (CS). Os Verdurin, por seu turno, também têm a sua contrapartida por alimentarem idéias de nobreza incapazes de se cumprir: vivem em uma espécie de isolamento despeitado, como se quisessem assim neutralizar de antemão o eventual desprezo que viessem a sofrer (CS). No caso deles, a idealização age de modo atípico: motivando o espírito a buscar os valores da nobreza decadente, estes são supervalorizados e temidos, e a frustração surge natimorta, como recalque.
E é logo no começo da obra que começam a cair as primeiras máscaras. Uma delas, explorada na longa digressão final (CS) e retomada no volume seguinte é a que concerne ao amor de Marcel por Gilberte, filha de Swan (CS/SRF). Esse amor, não tendo se realizado plenamente, não só não apresenta uma significação satisfatória do seu fim, como deixa no personagem uma dúvida em relação à essência mesma do amor. O atrito interrogativo será arrastado ao longo do romance, até se concretizar como o inferno da completa inviabilidade, cujo corolário é a sua paixão por Albertine, verdadeiro hieróglifo humano, cujas motivações últimas chegam ao final da obra sem uma definição a contento (AD/P/TR). Assim, vemos o princípio de idealização ruir pouco a pouco, até chegarmos a saber que a princesa de Guermantes é Mme Verdurin, desposada por questões financeiras pelo príncipe após a derrota da Alemanha (CG). A partir dessas rupturas, saímos da primeira instância da obra e adentramos a sua dimensão mais mundana (CG/SG). Porém, essa primeira queda, digamos assim, ou seja, a descoberta do falso prestígio dos Guermantes, sofre ainda uma segunda investida, quando o jovem narrador, de volta a Paris, descobre que Mme de Villeparisis não era tão brilhante quanto acreditava. Revê-a, depois de algum tempo, desclassificada, fazendo-se passar por uma espécie de escritora medíocre, eivada de problemas circunstanciais e de mesquinharias (SG).
Quando pensamos que a teia das relações se estabilizou, mais uma homeostase intervém para retirar mais uma camada da realidade e mostrar de modo ainda mais cru a sua essência. Por intermédio de Charlus, Marcel descobre que o senhor de Villeparisis era uma pessoa desqualificada socialmente, e que havia criado com artifícios o título de Villeparisis apenas para que ele fosse agregado à sua esposa. A mesma Mme de Villeparisis, um pouco mais à frente, reaparecerá, idosa e arruinada, como uma forma de mostrar a impotência patética daquela que havia gozado de tanto poder e exercido tanto a sua impiedade (SG). Essas relações de simulacros que vão cedendo estão por todas as partes; mas ganham mais vivacidade a partir do momento em que entram em cena os jogos amorosos.
É nesse momento que adentramos o reino dos simulacros, cujos representantes mais importantes são Albertine e Charlus, naturezas híbridas e conflituosas, em constante oscilação entre o masculino e o feminino (SG). A perversidade, o egoísmo e a falsidade nos conduzem a um ponto cego do romance, onde o movimento centrífugo gerado pelo princípio de idealização inicial parece ter-se destruído por completo. O pano de fundo ideal que proporcionava a tensão na iminência de sua ruína começa a enfraquecer, posto que o grotesco toma a cena e embaralha os personagens. Os melhores representantes desse mundo do instinto e do egoísmo parecem ser Morel e Charlus. Como romper esse círculo? Possivelmente por um acesso legítimo não á verdade, mas sim à realidade, em sua constituição mais primária e, mesmo assim, indevassável. Porém, a viabilidade dessa instância última, não destruída pelas séries de máscaras e perspectivas que se neutralizam umas à outras, surge apenas no final do romance (TR). Não se trata de uma redenção, mas sim de uma possibilidade de captar a matéria mesma da realidade, em sua espessura mais viscosa, além do tempo e de suas implicações. Para isso a arte, em seu sentido verdadeiro, seria uma das poucas vias de acesso, segundo Proust, a essa verdade que estaria no cerne mesmo de todas as manifestações da vida (TR).
Dentro desse panorama, e mesmo o projeto da divisão ternária da Busca tendo sido abandonado, o segundo volume, À sombra das raparigas em flor, traz como uma de suas duas partes o belo título “Nomes de terras: a terra”, espécie de reminiscência desse estrutura embrionária. Este volume é um devaneio adolescente sobre o amor e sobre todas as questões que marcam a obra de Proust. Depois do fracasso de seu romance com Gilberte, filha do judeu Swan, narrado longamente em forma de epílogo (CS), a meditação sobre essa frustração amorosa prossegue, de maneira bastante significativa, fornecendo elementos para a dúvida cáustica do amor e das relações sociais que vão sendo cada vez mais e com maior intensidade destruídas (SRF). A idealização amorosa, portanto, prossegue nesta parte da obra e, pode-se dizer, expande-se para diversas instâncias.
Um dos temas mais idealizados ao longo do primeiro volume da Busca é justamente a nobreza dos Guermantes, o marcado fascínio que a oposição entre os caminhos de Guermantes e Villeparisis ativa no imaginário do menino Marcel, fato que será aprofundado mais adiante (CG). Porém, antecipando o desdobramento ulterior, em À sombra das raparigas em flor essa idealização já merece algumas pinceladas magistrais. Por seu lado, o teor deceptivo que a duquesa de Guermantes viria imprimir no espírito de Marcel não está isolado; compartilha de outro movimento centrífugo, composto em espiral, e que consiste na edificação de um mito de pureza e a sua conseqüente destruição. Trata-se da atriz Berma (SRF). Essas duas figuras congregam em si boa parte do movimento pendular da Busca, e são pintadas magnificamente.
Ora, antes mesmo do personagem-narrador conseguir, graças à intervenção e aos favores do senhor de Norpois, um ingresso para assistir à interpretação que a atriz faz da Fedra de Racine, já havia reservado páginas e páginas para compor o caráter dessa espécie de heroína dos palcos. O tom algo efusivo e um tanto histriônico que a obra de Proust revela no que diz respeito aos valores e à honra é algo que o coloca como um dos grandes moralistas de todos os tempos. É esse motivo também que o leva a não assumir de saída um ceticismo filosófico ou a meramente aceitar a verdade irredutível das aparências. Não. A questão da verdade em Proust é mais delicada, mais complexa. E um dos aspectos que o atestam é esse atrito entre a glorificação da face alheia, no que ela tem de mais genuíno, e a miséria dos confins mais sórdidos de nossas almas. Tal diapasão, tal captação dos fenômenos mais amplos da vida, tendo um sentido moral como fundamento, produz-nos a sensação de que terá também, como essência, um conteúdo trágico. Não é isso o que ocorre, mas sim o seu reverso. Eis que Proust nos apresenta à contrapartida do drama moral: o cômico. E esse é um dos aspectos mais interessantes da Busca, que vai da ironia aos limites do histriônico e do grotesco, pontuado em diversos momentos da obra, infelizmente impossível de ser aprofundado aqui.
Cabe ressaltar apenas que esse movimento vai agregando a si os personagens, os caracteres, os valores, sempre com o intuito de negar a sua estabilidade e a substância verdadeira de seus atos. Mesmo quando há intencionalidade, há frustração ocasionada pelo destino, como no caso, enunciado pelo narrador, dos verdadeiros motivos que teriam levado Swan a se casar com a vulgar Odette. Na realidade, diz-nos, sua motivação profunda era a de conseguir estabelecer um contato inusitado, possibilitando a Odette a glória da intimidade com a duquesa de Guermantes (SRF). Esse intuito não se cumpre pelas vias de Swan, que morre. Mas sim pelas próprias circunstâncias da vida, pois, após sua morte, de fato a duquesa espontaneamente trava amizade com Odette. Seu sonho mundano, cujo maior satisfação era produzir relações sociais transversais, a um só tempo se quebra e se realiza; há energia deceptiva suficiente para saber que Swan fracassou em seus intentos e, mais que isso, foi varrido pela doença antes mesmo de realizar o seu intuito. Mas essas aspirações, ao se realizarem, ou seja, ao cumprirem seu papel real, objetivo, que já lhes parecia estar destinado, não fazem mais do que lançar a última pá de terra sobre o ideal algo bufo e algo heróico que animava Swan.
Em meio a essas espirais de altivez e desolação, entre esses píncaros de miséria e gratuidade, entre essa comédia altissonante cujas protagonistas são a ilusão perfeita e a realidade insuficiente, começa o outro movimento dessa sinfonia, um dos mais importantes para compreender a obra de Proust. É aquilo que, como o definiu Deleuze, podemos chamar de ritornello, usando um termo da música que é, aliás, mencionado pelo próprio Proust (CS). Quando um tema e uma frase musicais retornam em outro ponto de uma mesma obra, adquirem um novo sentido. Sabemos que é a mesma modulação, uma variedade diferente da mesma frase poética executada há pouco. Mas o que se passou até que houvesse a repetição altera o sentido dessa frase e, justamente por meio da repetição, confere-lhe nova espessura. Esse aspecto é de suma importância, e em À sombra das raparigas em flor tal recurso começa a emergir com toda a sua força. Um dos leitmotiven do primeiro volume, sobretudo da primeira parte, “Em torno da sra. Swan”, como o título diz, é Gilberte. Esta é explicada, referida, reiterado e trançado ao longo de todo este volume, bem como a reflexão dos possíveis motivos que levaram a fenecer o amor entre ela e Marcel, como uma espécie de baixo contínuo ou de neurose obsessiva (CS/SRF). Outro tema que ficou famosa na Busca, além do mais que glosado episódio da madeleine, é a Sonata de Vinteuil. Sabe-se que ela começou como uma música especial das reuniões na casa dos Verdurin. Entretanto, a maneira como ela passa a repercutir no espírito do narrador começa também a produzir uma cascata de sensações, no centro das quais emerge, como regra, a inautenticidade, a impossibilidade de possuirmos o cerne de nossas vidas, dada a impossibilidade de retermos uma mínima frase musical intacta no espírito. Nesse sentido, o narrador, ao tratar de sua sensação íntima em relação à sonata, diz-nos que nunca chegou a “possuí-la inteiramente”, e, justamente por isso, ela “assemelhava-se à sua vida” (SRF).
É fato que alguns personagens servem de âncora ao furor idealizante de Marcel. E parecem sinalizar algumas ordens de realidades, quase como se o narrador nos dissesse de maneira onisciente que havia forças tentando salvaguardá-lo de si mesmo. Esse processo de desmistificação está em episódios simples e até bastante rápidos, como aquele no qual o seu amigo Bloch adverte o narrador de que as mulheres de Méséglise só se interessam pelo amor, querendo dizer com isso, em termos mais prosaicos, que para elas há tudo, menos amor (SRF). Porém, estes estendem-se e se interpenetram em outros, de modo que vão gerando situações mais densas. Outros pequenos sinais compõem o cenário mais amplo da segunda parte de À sombra das raparigas em flor, “Nomes de terras: a terra”. Esta transcorre quase em sua totalidade no balneário de Balbec, onde o narrador passa férias com os amigos Robert, o próprio Bloch e, principalmente, Saint-Loup, com quem trava os diálogos mais densos e chega mesmo a trocar confissões.
A estadia em Balbec é notável sob diversos pontos de vista, dos mais filosóficos aos mais plásticos e estritamente literários. A começar pelo relato da viagem de trem, na qual o narrador, criatura nervosa e asmática, mostra-se tenso diante de uma decisão aparentemente desprezível (coisa recorrente em Proust): tomar ou não café. Decide enfim tomar, o que afeta o seu sistema nervoso e fá-lo desenvolver, em estado de torpor, uma descrição sutilíssima das tramas do veludo azul das cortinas (SRF). Mas a apostasia estética não pára aqui, e, nas descrições praianas, mais uma vez a paleta do pintor Proust mostra toda a sua variedade colorística, seja mostrando um grupo de meninas belas que, saltitando pela areia, mais parecem um borrão composto contra o horizonte, seja descrevendo um jantar no restaurante do Grande Hotel, no qual as figuras aparecem à janela de vidro como se estivessem em um aquário, com requintes de zoologia e de botânica. A comicidade produz nesses casos uma espécie de resgate do ser perdido na inautenticidade. Quando estamos fora da vida que, em seu torvelinho, vai nos expulsando paulatinamente de seu centro de gravidade, resta-nos ou o sofrimento pela condição inexorável dessa primeira idade do mundo e da vida que se perde, ou uma maneira de neutralizar sua ação moral. E, nesse caso, o riso funciona como forma libertadora do luto implícito em todos os atos de reconhecimento do mundo.
As espirais dão suas idas e vindas até estabelecerem um novo centro provisório de imantação. Esse movimento é às vezes semelhante à embriaguez, em outras, à mais refinada mescla de vigília e racionalidade. Em outros momentos, temos um devaneio regrado. Por isso, mesmo tendo o próprio Proust se referido à sua obra como uma catedral e alguns críticos mencionarem a metáfora do tecido, creio que o mais preciso seja a de um novelo. O seu método não é compositivo, mas decompositivo: parte de uma sensação, de um fato, de uma fisionomia, de uma conversa, e se incumbe de trazer à tona as suas virtualidades subjacentes, que são em última instância infinitas. Essa sensação de infinito que respiramos na Busca é o que lhe confere um estatuto quase religioso, mesmo sendo sua radicação tão terrena e secular. Talvez seja a mesma sorte de qualidades do espírito que experimentamos nas grandes obras de arte, mas também nos momentos de vida legítima, que, na lógica de Proust, paradoxalmente, são muito poucos. Quase inexistentes, dir-se-ia.
Ou seja, as digressões vão destecendo o novelo do pensamento mesmo depois que todas as margens já foram ocupadas, pois nada melhor do que esta obra para colocar-nos em contato com as margens da linguagem. Quando uma dobra é desfeita, é sempre possível encontrar novas sutilezas a esmiuçar e a desdobrar. Como eu disse, esse movimento vem marcado por um rigoroso senso de perda da inocência, de irreversibilidade. Entretanto, há sim, agora e e sempre, o retorno, o eterno retorno das coisas, quase como querendo demonstrar a nossa insuficiência diante da efetividade do mundo alheio ao nosso destino e à nossa vontade. Nesse sentido que a obra de Proust cumpre quase esquematicamente as leis alquímicas da diluição e da coagulação, solve et coagula, de uma das formas mais conscientes vistas em arte. Enfim, a mise-en-scène proustiana de À sombra das raparigas em flor chega a seu término, que não é a verdade, mas sim um dos tantos nós de tensão no qual o espírito se reconhece diante de sua decifração impossível. Esse ponto é o episódio e o personagem do pintor Elstir.
O papel de Elstir, definido como um célebre pintor, amigo de Swan, que vive em Rivebelle, região contígua a Balbec, é central. Marcel, despertando a sua admiração por aquele personagem, começa a freqüentar o seu ateliê e a ensaiar uma amizade. Em uma dessas visitas, o narrador fica surpreso diante de um dos quadros. A longa descrição, misto de sensação e forma objetiva, desperta a sua curiosidade sobre aquele rosto indefinido que ao fim de indagações, sugere-lhe um travesti. É quando por fim descobre que se trata de um retrato de Odette de Crécy, pintado por Elstir em sua juventude (SRF). Não por acaso, é a partir desse momento que o narrador insere o tema de Albertine, personagem que é um dos leitmotiven da Busca e que ocupará lugar de destaque nos volumes seguinte. Mais que isso, será a sua namorada, em uma vida a dois que pode ser traduzida como um pesadelo de ciúme e auto-anulação (SG/P/AD).
Pode-se pensar que Elstir é um ponto de viragem entre o ideal e o real. Mas de uma viragem, como era de se supor, sem retorno. Nele o conflito entre o princípio de idealização, cujo mais alto núcleo irradiador é a arte, entra em colapso. Diferente de Berma, que se revela uma atriz mesquinha, totalmente aquém da potência idealizada por Marcel, Elstir não o decepciona. Pelo contrário, fornece outra forma de negação da vida: o simulacro. Marcel tardou a reconhecer o rosto de Odette naquele ser andrógino. Pois bem: esse equívoco é o que compõe a própria realidade e a essência mesma da vida, diria Proust. Pois não há limite entre a representação e a falsidade, assim como não o há entre a falsidade e a minha condição intransponível em relação aos outros. Se não posso conhecer o outro, se o outro é e sempre será opaco, oculto, uma parcela indecifrável de mim mesmo e entretanto imerso na região mais profunda de meu ser, tampouco a representação artística esgota a potência de simulacros de que a vida é repleta. E, nesse caso, tanto o conhecimento quanto o autoconhecimento são uma farsa. De certa forma, com Elstir a arte se fratura, rompe-se como núcleo de gravitação ideal. E não é por acaso que, a partir do volume seguinte, que a descida ao inferno da inautenticidade vai ganhando cada vez mais espessura e realidade (CG).
Essa guinada do fim de À sombra das raparigas em flor representa o poder da arte de sutilizar a aparência até destruí-la. E parece assim querer demonstrar-nos que, para Proust, essa seria a vingança possível da vida contra a vida. Seria o golpe de mestre que poria de pernas para o ar a interrogação maliciosa que as formas nos lançam, sem contudo fornecer-nos sequer uma saída provisória, à medida que a ilusão se calcifica e a dimensão ideal só existe na memória, como passado. Aliás, sequer assim. Pois o passado também retorna e, ao retornar, paradoxalmente, deixa de ser eterno, negando parcialmente o seu estatuto. Nesse sentido, alterando a premissa de Oscar Wilde, para Proust a arte não existe para nos salvar da verdade. Ela é a verdade que nos confere existência. Mas esta conclusão é o ponto de partida e o de chegada de Em busca do tempo perdido. No meio, o inferno da inautenticidade, da mentira, da falsidade, do relativismo moral, em suma, de todas as formas possíveis de não habitar o cerne do real, sempre inapreensível. É esse o espaço privilegiado ocupado pela arte, verdade metamórfica, incompleta, sempre mostrando seu misto de sonho e silêncio, de miséria e esplendor, mas ainda assim mais fiável do que os conceitos ou a pura experiência, em seu estado bruto.
Desde o Dom Quixote a literatura tem sido o palco privilegiado da encenação de um drama que é humano, mas também cósmico. Épica da negatividade, a essência da literatura tem-se mostrado na sua aptidão de mostrar de maneira consumada a excentricidade do eu em relação à verdade, que é proporcional à consciência que esse mesmo eu é capaz de ter do outro e de si mesmo. O resultado desse conflito, no qual o grande tema é a incapacidade do espírito reassimilar em si a substância do mundo e, consequentemente, tornar a ser assimilado por ela a contento, é o movimento pendular da linguagem que acaba por encontrar a sua edificação ideal sobre a perfeição de sua própria ruína.
Essa ascendência do negativo, essa exaustão do espírito que, quanto mais segue em busca de sua superação e de sua completude, mais se aprofunda nas regiões abissais do vazio, da morte, do exílio e do desespero, podem ser vistas como uma espécie de coração da arte moderna. Nesses termos, a obra de Proust não é a inauguração de uma nova literatura, mas o canto agônico de um mundo que não mais existe e a mais integral recapitulação de um dos fundamentos da ficção: o tempo. Sua grandeza depende de um ideal, e mesmo as formas de aviltamento e de impotência que ela nos sugere usam como parâmetro essa idealidade pressuposta. A ruína da ruína, ou a ruína dos valores, como conseqüência nefasta do próprio projeto da modernidade, transformou a obra de Proust e suas preocupações em uma espécie de questão clandestina, para não dizer anacrônica. E se é para recorrer a paradoxos, a realização empírica dos ideais da modernidade, ou seja, o esvaziamento do real, que foi pulverizado em uma série de infinitos pontos de vista que não se completam, que nunca correspondem ao ideal que impulsiona o próprio sentido concreto da existência e da vida, promoveu a inviabilidade e a iminente destruição destas mesmas existência e vida. A eventual crítica que podemos fazer à obra de Proust, portanto, diz respeito mais à sua vigência do que à sua efetividade artística. Dentre as diversas metáforas de que dispomos no oceano de metáforas que é Em busca do tempo perdido, podemos utilizar a mais trivial, pois não é apena da originalidade que deriva seu verdadeiro encanto. Sendo o mais belo crepúsculo da literatura, ela nasceu da dignidade de sua auto-anulação. Porém, com seu veneno, não gerou o seu antídoto. E quanto mais deslocada de nosso tempo ela for, tanto mais essencial ela será.