O intelectual, de modo geral, é um estudioso de ideias alheias. Um homem capaz de compor um painel do que foi dito sobre determinados temas, capaz de oferecer uma síntese, mais ou menos reflexiva, daquilo que o Pensamento representa em relação a esta ou aquela área do conhecimento. Ele parte de alguns pressupostos, que chamaram sua atenção dentro do amontoado de documentos a que teve acesso, e relaciona argumentos e análises de outros. Assim, procura estabelecer que isso passa a ser aquilo, noves fora zero.
Mas há intelectuais que são artistas, e essa é, no mínimo, uma combinação explosiva. Aí está a estrutura da moral e da ética, da política e do modo de despir-se e segurar os talheres: a renovação do Pensamento. O que distingue o bom do especial. Exemplo: Rodrigo Petronio. Ele busca, acima de tudo, uma linguagem inocente.
Mas há intelectuais que são artistas, e essa é, no mínimo, uma combinação explosiva. Aí está a estrutura da moral e da ética, da política e do modo de despir-se e segurar os talheres: a renovação do Pensamento. O que distingue o bom do especial. Exemplo: Rodrigo Petronio. Ele busca, acima de tudo, uma linguagem inocente.
Rodrigo Petronio: Com certeza essa é uma questão central para tudo o que escrevo e para tudo o que tem me ocupado também teoricamente nos últimos tempos. Você foi direto ao ponto. Agradeço a sua pergunta. Aproveito, então, para deixar um pouco de lado meu trabalho poético e trazer algumas reflexões que tenho feito sobre a poesia em sentido geral. Independentemente da sua perspectiva histórica ou do gênero no qual ela se manifeste, a despeito mesmo de seus aspectos formais e subjetivos, tenho a sensação de que toda poesia é a encenação de uma realidade primeira. A definição desse estatuto da realidade é cheia de matizes e um tanto complexa. Vou dar a minha análise.
Chamo essa realidade primeira de perspectiva edênica ou de inocência radical, no sentido etimológico, de raiz. Esses termos, para mim, não são uma teoria. Sequer são uma formulação abstrata. São algo inerente à estrutura empírica da vida humana e, pode-se dizer, de toda a vida. Trata-se do reconhecimento de uma zona anterior à cisão ontológica promovida pela consciência, anterior às representações. Nesse sentido, é um pressuposto inquestionável, uma verdade, caso queira definir assim, à medida que não pode ser relativizada. Ela seria, a um só tempo, a fonte e a soma de todas as perspectivas, algo próximo ao que Ortega y Gasset define como realidade radical, porém com algumas diferenças essenciais.
Entretanto, nossa vida ordinária está o tempo todo nos apartando dessa matriz. Não seria possível ser diferente, e tampouco a vida seria possível se vivêssemos em constante estado edênico. Mas ele existe, se oferece a nós e vem inscrito em todos os nossos gestos, todos os nosso pensamentos, todas as nossas crenças, todos os nossos valores. Ao nascermos, somos todos marcados pelo selo dessa existência, recebemos a sua chancela. A perda, e o sentido da perda; a impossibilidade de uma redenção, de uma suspensão da queda, e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de não falar sobre ela. Justamente por isso, a vida humana possui uma estrutura dinâmica. Ela é busca de sentido, e ausência de sentido; experiência da falta, e supressão da falta; vazio, ausência e morte, e o próprio ato de abraçar o vazio, a ausência e a morte como única forma de sermos e sobrevivermos.
Todos nós lidamos com essa verdade objetiva, incontornável. Ela não está subordinada à relatividade cultural. Tampouco é um patrimônio de poetas, intelectuais ou artistas. Ocorre que a poesia, ao propor-se como encenação do mundo na linguagem, ao instaura-se como uma arquilinguagem, torna esse dilema mais sensível para si mesma. Acaba transformando-se, dessa maneira, em um modo privilegiado de manifestação de nossa estrutura ontológica. A essência da poesia seria, dessa maneira, uma impossibilidade. Mais que isso: a consciência de que essa impossibilidade nos habita e é consubstancial à nossa própria vida, é o que a dignifica, que lhe sopra a sua transformação vital.
A princípio, antes mesmo de nascermos, o paraíso já nos fora confiscado; sequer ele existe de fato; não há uma origem pura preservada fora do tempo. Porém, há o seu fantasma, a sua impossibilidade que, justamente por causa de sua condição, instiga o homem a se lançar como projeto, a ultrapassar todo dado, todo acabado, toda matéria inerte, tudo o que se apresenta como experiência imediata. Essa remissão a algo que nos transcende, que existe miticamente e se oferece a nós, mas é, paradoxalmente, inacessível, é a base sobre a qual a poesia se sustenta. Base frágil, complexa, volátil, que assume mil rostos na história e outros tantos corpos em cada realização individual. Entretanto, há uma região de autenticidade. Há uma zona de claridade mais intensa. É ela que proporciona a emoção poética, independente das idiossincrasias individuais, estéticas, ideológicas e das contingências temporais e linguísticas.
Nesses termos, acredito que há poetas e poéticas que apresentam uma maior proximidade dessa perspectiva edênica, outros, uma menor proximidade. Isso não é uma questão de valor, mas de estrutura. Aqueles buscam programaticamente uma maior aproximação desse esse eixo virtual inacessível; estes, partem de um progressivo distanciamento do mesmo. Por meio de uma maior aproximação, mesmo sendo este eixo inacessível, o que se quer é demonstrar a sua existência, que se manifestaria em uma fusão absoluta do eu e do mundo; irrealizável, esta fusão, entretanto, é tangível; a poesia é a própria tangência. Tento aderir ao mundo, suspender a cisão ontológica entre a linguagem e as coisas, entre o real e o imaginário. Contudo, a fusão absoluta só existe em Deus – ou na morte.
Essa visão demarca um mergulho na poesia como aderência, como atualização de uma realidade edênica eternamente virtual, porque inexequível.
MG: Você poderia falar mais a respeito do que seria a manifestação da perspectiva edênica (ou inocência radical)?
RP: Sim. Esses conceitos até servem de suporte a uma teoria geral da literatura que tenho desenvolvido. Bom, a princípio, se constatamos que essa dimensão fundamental é o horizonte a partir do qual eu modelo minha visão, quer eu esteja mais ou menos próximo de seu centro gravitacional, podemos também depreender disso uma organização ampla dos modos de representação. Além disso, constatada essa realidade e a sua precedência em relação à nossa vida prosaica, uma eventual recusa dessa base primeira seria, portanto, subsidiária, adventícia, subordinada à pressuposição da existência dessa mesma base. Ela é a origem para onde todos os seres acenam, seja em seus gestos mais ordinários, seja na indagação de seu próprio ser e de sua própria existência. Habita-nos como um pequeno deus que nos acompanhasse ao longo da vida. E temos duas maneiras afirmativas de lidar com ela, posto que ela não seja suscetível de negação: uma afirmação positiva e uma afirmação negativa.
A primeira sustenta a possibilidade de acessar a inocência; produz, assim, o paradoxo de sua inacessibilidade, mas nos dá a convicção de que tal inocência existe. É o caso, grosso modo, de quase toda grade poesia lírica; a fonte da emoção lírica baseia-se sempre na hipótese de uma dissolução amorosa do sujeito, seja no outro, nos outros, no mundo ou no Outro. Assim, temos o resgate (fictício) de uma inocência (real). Da lírica grega arcaica à poesia mística amorosa, de Dante à poesia renascentista, de Hölderlin a Walt Whitman, a gama de matizes é grande, bem como os modos de resgate dessa inocência. Já a segunda maneira pretende enfatizar a inacessibilidade da origem; promove, assim, um questionamento parcial, pode-se dizer negativo, de sua existência. O produto desse questionamento, ao fim e ao cabo, se oferece a nós como fantasma, pois consiste na negação de um dado positivo impassível de ser negado. Em outras palavras, a negação de uma verdade transcendente acaba sendo assimilada àquilo que nega.
A poesia que oferece maior distanciamento dessa verdade edênica não é de maneira alguma uma poesia menor. Mais uma vez, a distinção não é valorativa, mas ontológica. A única questão é que, aqui, o distanciamento funciona em termos formais. Recorre àquilo que lhe dá substância e sentido. Ou seja, em uma palavra, ele deve ser trágico. Toda a tragédia se baseia em uma inacessibilidade da verdade; entretanto, essa alienação humana da fonte de sua existência não é pacífica, mas conflituosa, agônica. Caso contrário, o que se produz é uma negação fraca de uma verdade transcendente forte, ou seja, uma negação da matriz de toda a vida que, como negação, é pálida em relação ao valor dessa mesma vida e, portanto, em relação à sua consequente perda. Não vou citar a quantidade de autores magníficos que encarnam essa visão. O trágico, nesse sentido, vem desde os gregos, desde Antígone, passa por Shakespeare, se metamorfoseia e se torna complexo no Dom Quixote e desemboca em Dostoiévski, que o restaura em todo o seu frescor, e em Kafka, que o leva a regiões ainda não sondadas. Em todos esses autores e obras, uma impossibilidade trágica de acessar a verdade.
Em outras palavras, a recusa dessa inocência radical, da qual proviemos e cujo germe permanece nostalgicamente em nós, sempre a traz e sempre a trará pressuposta, inscrita em si. Na condição de recusa, porém, ela sempre será parcial, e só pode retirar sua força da constatação de sua fraqueza, ou seja, da aceitação de sua vinculação necessária, essencial, à sua matriz geradora, a inocência. A lira pode atingir distâncias relativamente maiores ou menores, mas todas elas têm o arco como horizonte e fonte gravitacional. Atados entre duas impossibilidades, uma positiva e uma negativa, a poesia se desdobra como um arco tencionado entre dois absolutos inacessíveis: a inocência radical, inacessível porque aquém das delimitações estruturantes da linguagem, e a completa perda de qualquer sentido de procedência, o que também é inacessível, pois implicaria a destruição da base psíquica e da própria vida. Absolutos, porém tangíveis; imagináveis, porém inacessíveis; perceptíveis, porém vedados a nosso coração. Eis o estatuto dramático da linguagem e da consciência, e, por conseguinte, da própria existência.
Não há vida fora de um horizonte de sentido. Por mais primários ou por mais questionáveis que sejam os valores nos quais a consciência se aninha, ainda assim eles são preferíveis ao não-valor, pois fora deles o que há é matéria inerte, anomia, indiferença. O não-sentido tende a ser sempre assimilado pelo sentido, o não-ser só se consuma em seu último suspiro, quando vem a ser. O afastamento da origem só é possível de forma trágica, nunca afirmativa, porque só assim o vazio é redimido e somos resgatados do absurdo ao qual necessariamente resistimos. A tragédia confere espessura ao não-ser, faz dele não um menos em relação à origem, mas um mais em relação à totalidade dos seres.
Enfim, tenho refletido sobre essas questões. Estou formulando algo que chamo de teoria quadrangular da poesia e da literatura. É uma tentativa de dividir os gêneros, formas, modos e matérias literárias a partir dessa questão mais abrangente, da proximidade e do distanciamento dessa origem virtual. Em certo sentido, o trágico, o épico, o cômico, mesmo a mistura de gêneros ou a dissolução do conceito de gênero, bem como as afinidades poéticas entre autores de uma mesma linhagem, podem ser entendidas a partir desses critérios. É algo ainda em andamento, mas que acredito ser válido teoricamente, e também para se compreender melhor alguns autores e obras. O ponto central dessa teoria seria a ideia da aderência, que também está presente de maneira difusa em tudo o que escrevo, e consiste em um movimento decisivo da poesia em sua eterna necessidade de dar voz a essa perspectiva radical.
MG: Você disse anteriormente que a fusão com essa inocência radical é inexequível. Se ela pudesse ser realizada, suponho que seria algo como o retorno àquilo que Georges Bataille chama de indistinção, continuidade. Implícita no jogo erótico e na morte. Diante da morte, sentimos ecoar a inocência primeira, a verdade, portanto. Pressupor uma verdade última tem, como uma de suas consequências, o desejo por aquele estado capaz de recuperá-la. Em outras palavras, o sentimento religioso. Você poderia falar um pouco de sua reflexão sobre a perspectiva religiosa? Não seria a forma mais radical de aderência?
RP: A sua pergunta é ótima, mas para respondê-la precisaria praticamente escrever um livro. Concentro-me aqui em alguns pontos que considero centrais. Com certeza escaparão outros, também importantes. Mas vamos lá. Em primeiro lugar, a religião é uma das formas mais autênticas de conhecimento. Isso não sou eu quem diz. Basta você analisar a história da humanidade, desde os hominídeos até William de Ockham ou, mais precisamente, até Descartes. Nessa análise, por mais heterogêneas, diversificadas e até conflitantes que sejam as culturas e modos de organização do real operados pelo espírito, temos um denominador comum bastante claro: é impossível encontrar, nas manifestações da vida humana, qualquer vestígio totalmente profano.
Haja vista o fato de que o primeiro corte que nos destacou dos animais, no Paleolítico, processado a partir de dois milhões de anos atrás, não foi de ordem biológica (o córtex) ou antropológica (o domínio do fogo), mas decorreu de algo aparentemente simples: quando os hominídeos começaram a enterrar os seus mortos. Os primeiros rituais funerários demonstram a ruptura ontológica entre o mundo dos processos e o das representações. Temos resquícios de ossos encaixotados, o que demonstra algum tipo de cuidado com o cadáver. A própria representação dos animais, que é bem posterior a essa época, ou seja, a primeira “arte” humana, pode ser entendida como uma formalização da experiência da morte. O contato com a morte, como você realçou bem, e mais que isso, a própria percepção que se tem dela como um dado que “exorbita” a esfera “natural” é a primeira “reflexão” exercida pelo homem. Nesse sentido, a experiência do sagrado, ou seja, essa primeira “reflexão” humana, foi avassaladoramente mais importante para o processo civilizatório do que a criação da filosofia, que, a meu ver, é uma espécie de exceção, diria até uma excrescência dentro do conjunto comum das práticas rituais, míticas, simbólicas, técnicas, bem como das demais simbolizações e atividades que, estas sim, definem o homem em seu ser. É óbvio, tomo aqui essas instâncias em sua maior abrangência, sob o aspecto antropológico, pensando nas matrizes que estruturam a vida da totalidade dos seres humanos. Esta deve ser recortada sob pano de fundo de um horizonte amplo de significação e de importância, não apenas pautada no paradigma ou no legado de alguns gênios e de suas criações excepcionais. Por isso e por outros motivos, dizer que somos homo religiosus é incorrer em uma redundância, pois é impossível pensar em uma vida humana profana.
Entretanto, voltemos à nossa questão e ao presente. A despeito desses fatos, curiosamente, nos últimos séculos tornou-se quase impossível falar de religião ou de manifestações do sagrado. Como já me acostumei a navegar na contracorrente, tenho estudado os motivos dessa guinada histórica. Eles oscilam, em geral, entre motivações de natureza vária, desde algumas legítimas ou justificáveis até outras tantas verdadeiras aberrações mentais. Trata-se de um processo longo, complexo, difuso, multidirecional, cujas implicações estão entre as mais graves da história. Isso não impede que tal revolução se baseie em princípios, sejam axiológicos ou meramente práticos. O primeiro ponto que podemos ressaltar nesse processo de esvaziamento religioso é que, diferente dos milênios de história que eu mencionei acima, a experiência intelectual se divorciou da experiência do homem comum. Esse fato, que parece inofensivo, é algo de consequências desastrosas. É a partir dele que vem sendo produzida em proporções industriais uma classe intelectual divorciada das questões candentes das demais esferas, e, mais que isso, alheia ao núcleo duro das questões humanas mais profundas. Isso oblitera tanto produtores quanto produtos do conhecimento e, em última análise, os valores e a própria vida, que passam a não ser mais compartilhados porque simplesmente não são mais compartilháveis. A ruína de um ideal de cultura não é nada mais do que isso.
Hoje em dia, por exemplo, quando o interesse por assuntos religiosos só cresce, seja no melhor ou no pior sentido do termo, percebemos um proporcional desprezo dos intelectuais por esse tema e um verdadeiro “culto” ao isolacionismo “crítico” que essa postura lhes proporciona, uma “mística” da razão cínica. Ora, esse fenômeno não encontra paralelos em outras épocas ou culturas. Embora todas as sociedades tenham sido desde sempre organizadas de acordo com núcleos esotéricos e exotéricos, esses saberes visavam à sua aplicação na economia, na política, na moral, na produção material, nas técnicas, na organização militar, entre outros. Porém, diferente do Médio e do Extremo Oriente, e mesmo das sociedades cristãs orientais, onde a dimensão esotérica e exotérica sempre estiveram atreladas a fundamentos de ordem revelada, o Ocidente entrou na história de modo anfíbio. Essa ambiguidade se tornou expressa na eterna tentativa de convergência entre o cristianismo e o corpo de um Estado pagão, herdado da Antiguidade, em outras palavras, trouxe em seus fundamentos uma disjunção entre os níveis da crença e da política. Todos os pensadores e artistas lúcidos perceberam que a partir do século XVIII esse divórcio tomou dimensões assustadoras; que a assunção de modelos de vida baseados em ideais totalmente materialistas tenderiam a arruinar qualquer ordem e qualquer liberdade. Afinal, não é preciso ser um gênio para compreender que uma sociedade absolutamente secularizada será forçosamente uma sociedade totalmente tirânica, independente da liberalização evidente de suas instâncias repressoras ou da correção política de seus soldados. O discurso do Grande Inquisidor de Dostoiévski, aliás, toda a obra de Dostoiévski aponta para esse impasse estrutural entre política e religião, impasse que funda o que chamamos imprecisamente de Ocidente, e que se acelerou espantosamente nos últimos três séculos.
Graças aos filósofos medievais, especialmente aos escolásticos, essa infindável aporia entre fé e razão, conhecimento demonstrável e conhecimento revelado, natureza e graça, que se engendrou na passagem do mundo antigo para a mundo cristão, tinha sido superada a duras penas. Embora na ciência e na filosofia, herdadas dos gregos, sempre tenha havido parcelas de uma saber meramente especulativo da natureza, a oscilação entre natureza e graça é a tônica que pode ser depreendida de todos os episódios importantes da história da filosofia. Pode-se dizer que os modos de vida que exercemos não são o resultado de um tipo de conhecimento que poucos podem acessar, pela natureza mesma do conhecimento e de seus meios de iniciação, mas tão somente a situação paradoxal de uma ilha de ateísmo totalmente alienada das demais dimensões do espírito. A falta de crença, ao produzir a ruptura com a experiência comum coletiva, produz também a contradição interna de sua própria natureza. É por esse motivo que chega a ser chocante o descompasso, o despreparo e as tolices sem fim que observamos nos meios intelectuais quando o assunto é religião. Isso demonstra que os últimos séculos transformaram as pessoas ilustradas em analfabetos religiosos. “Seus órgãos da fé estão atrofiados”, diz o personagem de Tarkóvski no filme Stalker.
Em certo sentido, essa atrofia dos órgãos da fé é fruto da sistemática destruição intelectual do sagrado operada por teorias diversas a partir do século XVII, e que se intensificou nos séculos subsequentes. Racionalismo, marxismo, positivismo, criticismo, teoria crítica, idealismo, projecionismo, nietzschismo, psicanálise, evolucionismo, pragmatismo, empirismo, algumas correntes existencialistas, e por aí a fora. A lista é grande, não pára por aqui. E veja bem: não estou, de maneira nenhuma, desqualificando esses conhecimentos. Apenas estou nomeando as camadas de discurso que se interpuseram entre as pessoas razoavelmente cultas e a experiência do sagrado. Ou seja, o paradoxo de nosso tempo é que, hoje, precisamos nos desintoxicar de muita coisa ou as assimilarmos com distanciamento para voltarmos a compreender melhor algo que era uma obviedade para qualquer indivíduo, intelectualizado ou não, desde a origem do homem até o Renascimento. Como diria o Nelson Rodrigues, “só os profetas enxergam o óbvio”. Para começarmos a perceber o véu blasé de lugares-comuns e frases-feitas intelectuais com que a modernidade camuflou a nossa experiência cotidiana, é preciso voltarmos a ser profetas. Metamorfose nada simples.
Outro ponto importante da religião seria sua dimensão “filosófica”. A princípio, para esse domínio, ela nos coloca poucas questões. Porém, todas fundamentais: a morte e a imoralidade, a alma, a existência, os valores, o ser, a origem, a fatalidade, o bem e o mal, entre outras. Propõe-nas, é verdade, em termos práticos, segundo a doutrina ou os dogmas de cada religião. Entretanto, e vale ressaltar um aspecto que foi praticamente soterrado pela modernidade, seja sob a forma de ascese individual seja como uma perspectiva do mundo, ela nos lança no domínio do imponderável, que é o começo e o fim de toda a discussão filosófica digna desse nome. Nesse sentido, repito, há uma prioridade lógica, não cronológica, da religião em relação à atividade reflexiva. Uma serve de suporte à outra. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que aquela determina os limites desta, também arruína suas falsas questões e obriga-a a transcender todos os seus postulados, por mais válidos que sejam em suas zonas específicas.
Indo mais longe, eu diria que a religião está intimamente implicada em todos os ramos do conhecimento. Porque não é possível definir a consciência, fundamento de qualquer conhecimento verdadeiro, sem perspectivá-la a partir do mundo, ou seja, sem lhe dar a excentricidade necessária à sua própria constituição, posto que esta é sempre virtual, à medida que o pensamento não está nem no objeto nem em mim, mas num campo de desvelamento que abrange essa dicotomia superficial e a supera.
Haveria então três termos. Primeiro: o pensamento é maior do que o eu, maior do que o círculo fosco de minha meditação racional, que o capta, mas não o gera. Segundo: o mundo é maior do que o pensamento, pois há uma objetividade irredutível que fornece a base, a matéria (hylé), para que as formas nela se depositem e sejam, assim, reconhecidas como potências pela atividade pensante. Terceiro: há e é necessário haver algo maior que estes três termos e que os abrange, pois é preciso que haja essa espécie de terceira dimensão para que se cumpra a excentricidade necessária à atividade noética, ou seja, algo que solapa a hipotética autossuficiência ontológica do pensamento, sem a qual o mesmo nem existiria. A conclusão que podemos tirar desses silogismos simples, ao contrário do que dizem todas as vertentes materialistas e do que reza a vulgaridade de nosso tempo, é que essa substância é positiva, mas exerce função crítica, pois estabelece uma crise no próprio processo noético. Nesse sentido, não é meramente intelectiva, imanente ou reflexiva, mas sim substância divina.
Note que estou falando apenas sob o ponto de vista da filosofia do espírito, ou seja, de uma fenomenologia da consciência e da relação que esta estabelece com o sagrado e com a religião. Se no núcleo duro do próprio processo cognitivo consciente já temos praticamente o atestado de uma transcendência que o anima, o que se dirá se entrarmos na dimensão mítica, arquetípica, inconsciente, simbólica, volitiva, imaginativa do homem? Na medida em que a perspectiva religiosa visa transcender todo o dado, toda a matéria e todo o limite do conhecível, ela acaba por nos revelar justamente esta substância última do pensamento. O alvo dessa atividade é reconduzir este mesmo pensamento ao coração do mistério, do imponderável, onde o conceito e a ciência silenciam. Da mesma maneira, sob um ponto de vista individual, é impossível haver conhecimento de si sem um abismar-se no outro, nos outros e no absolutamente Outro, na alteridade radical, em um Tu que me é distinto e ao mesmo tempo imanente. É esse movimento que me revela o substratum, para usar o termo escolástico, de minha consciência, ou seja, a sua condição prévia e, nesse caso, não mais misteriosa ou miraculosa, mas processual. Mais ou menos o que Viktor Frankl define como “inconsciente noético transcendente”, que seria o “Deus ignorado em nós” ou a “fé inconsciente”, para ser mais preciso.
MG: Esse trabalho de reflexão a respeito das relações fundamentais entre religião e pensamento é refinado e cabe a poucos perceber sua importância. Quero retomá-lo, em outro momento. Agora, voltemos à literatura. O tempo surge em sua escrita de maneira peculiar. Parece haver um encontro entre o devir e conteúdos muito arcaicos, a história aparece como fluxo, e as marcas do tempo são registros literários, mitos e ritmos da natureza. Você poderia falar um pouco a respeito disso?
RP: Outra pergunta aguda. Seria preciso desenvolvê-la muito e mesmo assim ficariam faltando coisas essenciais. Em linhas gerais, sinto que esse tema do tempo é fundamental para o que escrevo. Vejo uma linha que vem de História Natural, passa pelo livro de ensaios Transversal do Tempo e chega a Pedra de Luz. Tanto nos ensaios quanto na poesia, o que sempre tento reter é a duração qualitativa do tempo. Ao contrário do que se imagina, ela nos abre para uma compreensão composta, não uma, do mesmo. Do mesmo modo, o tempo nos implica em uma das questões mais complexas e fascinantes da filosofia e mesmo da teologia: a matéria.
Bom, não falarei sobre a linha de divisão entre tempo e matéria. Ultimamente, muitos filósofos e físicos têm defendido a inexistência do tempo, entendido como um devir da matéria, questão espinhosa, irresolúvel. Isso é um universo todo de discussão. Em relação a esse tema, no entanto, e do ponto de vista da criação poética, muitas vezes tenho a sensação de que os mortos nunca se foram; que há modos de preservação da matéria e da vida; embora a dimensão natural, imanente e mundana seja insuficiente para explicar tudo o que existe, intuo que essa continuidade indestrutível não pertence apenas a outro plano, mas se dá na transcendência, na excentricidade desse próprio mundo em que estamos. Tudo o que já houve está inscrito em mim. Quando nos abrimos para uma sensação que envolve a emoção poética, seja para de fato escrever um poema, seja para nos deixarmos envolver por ela, sempre há uma intervenção da experiência do tempo, em seus aspectos múltiplos.
O que estava tentando desenvolver na poesia até então é o que chamo de lirismo épico, que está intimamente ligado a dimensão temporal. Em resumo, ele consiste numa percepção do próprio presente e dos dados imediatos à luz de uma perspectiva, paradoxalmente, arqueológica e eterna. Isso confere aos fatos cotidianos, à minha e à sua vida, à vida de todos nós, uma espessura épica. Não é a forma literária, mas a base sobre a qual a experiência poética vem inscrita; não são os gêneros em seu sentido convencional, mas o recorte que se empreende no real por meio da linguagem. Para mim, a emoção e a beleza, em qualquer arte, é uma síntese entre a captação de uma substância eterna que se infiltra e participa do mundo e a consciência, diria mesmo a convicção, de que cada instante, cada ser, cada rosto, cada gesto é irrepetível. Isso não está ligado à grandiosidade da obra ou do artista, nem à perenidade de ambos, mas sim a uma maneira de captar o real e de se abrir a determinadas fontes da poesia.
MG: Em Pedra de Luz há inúmeras referências, algumas sutis e outras bem marcadas, a diversos autores. No entanto, Venho de um País Selvagem, seu livro que acaba de ser publicado, é mais direto, mesmo os aspectos filosóficos estão diluídos em imagem e musicalidade. Fale um pouco dessa transformação.
RP: Você percebeu muito bem a mudança que ocorreu de um livro a outro. Ela é substancial. Em Pedra de Luz tentei colocar a poesia em uma chave de diálogo com a história e, por conseguinte, com outros poetas e com a própria prosa do mundo. A premissa é a de uma dimensão mítica, na qual não haveria distinção entre real e imaginário, entre o histórico e o poético. Com isso, a escrita desse livro é muito ligada à ideia dos palimpsestos: camadas de textos que se sobrepõem a outras, um relato que remete a outro, um fato que se desdobra em imagens e conceitos, fundindo-se em uma totalidade maior, que seria o grau mais sutil e o mais denso da matéria: luz e pedra. No arco dos extremos, o mysterium coniunctionis, matéria-prima da poesia.
Em Venho de um País Selvagem, a mudança é sensível. Comecei a perseguir uma espécie de despojamento da linguagem, uma retidão, que em nenhum momento é concisão, minimalismo ou mutismo. O silêncio é fundamental na poesia quando entendido como intervalo expressivo. Com exceção da poesia mística, nenhuma poesia de interesse se faz tomando o silêncio como ponto de partida ou chegada. Se tomado como paradigma, ele se transforma em recalque ou afasia. Pelo contrário, o que passou a me interessar nessa fase é uma espécie de nudez. O canto que se ergue de sua própria precariedade, sem remissões externas, sem nada além dele mesmo como substância e finalidade. Queria retirar a poesia da literatura, dos diálogos textuais, da escrita em papiro, da biblioteca, chegar a uma inocência da linguagem.
Certa vez escrevi que a poesia é o grau mais terrível da inocência. Continuo acreditando nisso. A poesia é a voz do Estrangeiro, por isso sua semelhança com a loucura. Seu reino não é deste mundo, e é isso que faz dela o elemento ígneo para a erupção da Verdade. A emoção poética nasce de estarmos, no poema, a um só tempo dentro e fora do mundo. Essa condição ilustra o que mencionei em uma pergunta anterior. Em Venho de um país selvagem, quis tocar o ponto onde ela se pronuncia a partir de si mesma e onde o poeta usa como recurso unicamente a sua voz, a sua existência aberta para as coisas que o cercam em forma de linguagem. Obviamente que as leituras continuam, não há como escapar; moramos em nossas construções e somos habitados por elas. Usamos a linguagem, e ela nos atravessa. Tal como o tempo, ela é simultaneamente o que nos consome e o que nos possibilita ser. Nesse livro eu quis fugir o máximo possível das referências, sejam elas quais forem. O selvagem não é o oposto da ordem e das formalizações. É sim aquilo que as transborda e não consegue ser instituído.
MG: O lugar da poesia sempre foi marginal. Existe, no entanto, uma grande busca por espaço: os poetas protestam e desejam ocupar seus devidos lugares nas grandes livrarias e feiras literárias nacionais e internacionais. O que você pensa a esse respeito?
RP: Penso que há um mercado literário, e que é muito saudável que isso exista em todos os sentidos. Essa crítica a livros que vendem porque vendem e o elogio daqueles que não vendem, porque não vendem por serem bons, é uma coisa de países intelectualmente frouxos e de capitalismo fraco, como o Brasil. Em todos os lugares, o mercado literário é visto positivamente, pois ele faz circular a matéria bruta da literatura, o livro, e isso, mais cedo ou mais tarde, em maior ou menor grau, acaba sempre revertendo em ganhos qualitativos em termos de publicações.
A poesia tem um caráter um tanto periférico mesmo dentro dessa economia. Penso que seria positivo se isso mudasse, mas, para tanto, é preciso não apenas disposição editorial e sim uma mudança da própria postura dos poetas diante desses temas. Não adianta querer ocupar os espaços, se o que tivermos a oferecer é vacuidade intelectual. Essa ideia de que o que vende é necessariamente ruim e o que não vende, não vende porque tem um conteúdo crítico e, por isso, não agrada às massas, é uma crença tola que precisa ser superada. Crença, aliás, bastante arrogante. Sinto que nunca se publicaram tantas obras pseudointelectuais quanto agora, com áurea e verniz de obras do espírito. A essas, é bem preferível outras, que cumpram o seu destino de mercado e agradem aos leitores.
MG: Você participa ativamente da vida literária, sobretudo através do diálogo com outros autores. Qual é a importância dessa atividade para a sua literatura?
RP: Gosto muito do diálogo com escritores e fico feliz de encontrar escritores com preocupações semelhantes e de discordar de escritores com visões diferentes. Dialogar, aprofundar o debate e até mesmo polemizar. Tudo isso é bom. Às vezes me ressinto de não conseguir fazer isso com mais frequência, por causa de trabalho e compromissos cotidianos. Mas também gosto muito de dialogar com autores do passado. Isso pra mim é vital. Não me imagino lendo apenas literatura contemporânea. É a minha forma de isolamento, mas também de tentar tocar algo que se assemelhe a uma plenitude da linguagem. É quase impossível escrever sem conhecer a literatura de algumas línguas que não a nossa e de alguns séculos que não o que vivemos. Não me lembro agora quem disse que a forma de se livrar da tirania da literatura de um país é conhecer a literatura de todos. Isso não se aplica só à geografia, mas também à história. A única forma de superar as superstições do nosso tempo é habitar todos os tempos.
MG: Entre os inúmeros filósofos que fazem parte de suas leituras, quais foram aqueles que influenciaram mais fortemente sua poesia? Por quê?
RP: É um pouco difícil responder a essa pergunta. Sempre que entramos na seara dos nomes, sinto que esquecemos mais do que lembramos, sempre algo de essencial escapa. Prefiro falar então de temas que têm me perseguido. Gosto muito da filosofia na sua dimensão metafísica, pois esta tem conexões com outras áreas que me atraem, como a antropologia, religiões, mito, sagrado e mesmo a história. Leio mais ensaios filosóficos e históricos do que ficção. Esse tipo de leitura é mais importante para o que pretendo em literatura do que muitas obras literárias. É um trabalho enorme, pois são temas monumentais, com uma produção grande e muitas abordagens possíveis. Mas vou me arriscando neles, com prazer. Eles têm a ver com interesses vitais e com coisas que amo, e que venho estudando nos últimos quinze anos.
Neste momento, ando concentrado na philosophia perennis, sobretudo nos estudos de arte de Titus Burckhardt. É um autor polêmico, discordo de alguns pontos, como de René Guénon. Mas é de um brilhantismo ímpar. Poucos ensaístas compreenderam a arte sagrada como ele. O que mais tem me interessado nessa vertente é a busca das matrizes eidéticas do real, de estruturas elementares do mundo, selos da inteligência divina. Nisso essa filosofia se une aos escolásticos e aos medievais de modo geral, e com o pensamento arcaico, que têm sido também a minha paixão intelectual de anos pra cá. Em linhas gerais, tenho me interessado por todos os pensadores e estudiosos que perseguem uma ciência arcana, uma tentativa de formular a estrutura de um real absoluto, decalque do céu na terra e no coração.
Para mim, esse real se confunde com a essência da poesia. O filósofo diz a verdade, o poeta desvela o ser, diria Heidegger. Esse desvelamento não é necessariamente sobrenatural ou natural, mas ocorre sim quando tocamos a substância última do mundo. Estou fascinado com essa possibilidade de um real absoluto, objetivo, simultaneamente espiritual e material, antissubjetivo, manifestado pela poesia, pelos símbolos, pelas estruturas sagradas. Tudo o que existe e nos precede. Realidade penúltima, vestíbulo antes de Deus.
MG: Além de poeta, você procura ser uma voz relevante na área ensaística e teórica. Nessa busca, há autores com os quais você manifesta grande afinidade, entre eles Vilém Flusser e Vicente Ferreira da Silva. Você poderia falar um pouco sobre essa afinidade?
RP: Como disse anteriormente, minhas maiores leituras são na área de filosofia, poesia e história (religiões, mito, sagrado). Gosto muito de ficção, tenho alguns prosadores que me acompanham desde a adolescência. Mas é preciso fazer algumas escolhas, é impossível reter tudo o que queremos. Tenho desenvolvido um trabalho ensaístico, não sei ainda qual o seu valor. Sei apenas que ele tem tomado um lugar central na minha produção nos últimos tempos. São muitos os filósofos que admiro. Você mencionou dois importantíssimos. No caso, um pensador brasileiro e um tcheco naturalizado. Vejo-os como partícipes da verdadeira tradição filosófica luso-brasileira: Matias Aires, Farias Brito, Cunha Seixas, Sampaio Bruno, Eudoro de Sousa, Agostinho da Silva, Miguel Reale, Mário Ferreira dos Santos, entre outros.
Flusser é um pensador originalíssimo. Suas reflexões sobre fotografia tiveram repercussão internacional. A tese de Língua e Realidade é válida e de grande abrangência para se entender as relações entre linguagem e mundo, embora ele chegue a um tipo de concepção cética da qual discordo. O mesmo se dá em A Dúvida, cuja premissa me agrada, mas o desenvolvimento deixa a desejar. Porém, trata-se de um intelectual altíssimo, um dos maiores pensadores brasileiros. Com Vicente, tenho uma ligação quase de identificação, e mesmo indiretamente pessoal, por ter sido muito próximo de sua viúva Dora Ferreira da Silva, amiga querida e eterna. Admiro quase irrestritamente a forma que Vicente encontrou de superar as aporias e falácias do idealismo e do empirismo, conferindo ao mito valor epistemológico. Mais que isso, arqueológico, à medida que este passa a ocupar o centro de uma teoria das formas, espécie de causa primeira. Ao fazer isso, ele subordina a inteligibilidade mesma do mundo ao mito. A própria doação de ser, sentido e existência só ocorre porque há uma abertura, uma instauração projetante, que é de ordem mítica. Além de tudo, é um grande ensaísta e escritor. O silêncio que se criou em torno da obra de Vicente é algo de tal modo desprezível que me eximo de comentar aqui.
MG: A poesia hispânica e portuguesa também são influências marcantes em sua obra poética. Comente.
RP: Tenho uma relação não só com as tradições lusófona e hispânica, mas com o iberismo de modo geral. Sinto-me vinculado a essas culturas. Além disso, suas literaturas são muito boas, principalmente a poesia portuguesa do século XX e o século XVII espanhol. Recorro a outras fontes e admiro outras tradições, mas essas são decisivas para muito do que escrevo. Também na filosofia, a matriz espanhola produziu autores interessantíssimos, propositivos, de grande envergadura conceitual.
MG: Os critérios para definir o que é bom e ruim na literatura estão cada vez mais confusos. Quais são, segundo Rodrigo Petronio, os elementos fundamentais de uma obra relevante?
RP: Os critérios estão cada vez mais confusos. Assino em baixo a sua afirmação. Os motivos são diversificados, complexos. Impossível enumerá-los aqui. É difícil definir em algumas palavras o que apenas em uma reflexão crítica exaustiva poderia ser sinalizado. Em linhas gerais, acredito que as obras do espírito compartilham sempre uma espécie de presente virtual e eterno. Para o espírito, todos os tempos são presentes, diria Hugo von Hofmannsthal. Elas estão sempre tangenciando nossas vidas, independente de terem sido escritas há seis mil anos ou hoje. É um mistério o que mantém a integridade de determinadas obras, aquilo que as leva a compartilhar a maior pluralidade de tempos e estar vivas para a maior variedade de leitores.
Traduzindo essa qualidade sutil de maneira precária, eu diria que a obra relevante é aquela que consegue conciliar o máximo de historicidade com o máximo de transcendência. Pode parecer um paradoxo, mas não é. E talvez essa constatação possa ser usada como critério de aferição de valor para a arte e a literatura, quiçá para as próprias obras do pensamento. Nossa diferença em relação a Gilgamesh, ao Mahabharata ou a Homero, é que nós estamos mais saturados de história do que eles. Portanto, a linha mais imatura de um escritor iniciante de hoje carrega consigo, em sua concretude, mais efetivações históricas do que a de um poeta medieval ou antigo. Isso torna a nossa condição delicada, porque, também paradoxalmente, a obra nasce de uma profunda consciência histórica e de sua simultânea neutralização, para que o passado vire leveza e a leveza, poesia. Só assim damos um salto substantivo sobre a fatalidade do tempo, apropriamo-nos dele a nosso favor e a favor da arte. Caso contrário, a ingenuidade de hoje estará em muito maior defasagem do que a ingenuidade de Homero, o que produzirá uma obra na maioria das vezes fraca, não em relação a Homero, mas em relação às linhas de força gerais da poesia do tempo de Homero. Aqui também entra o conceito de inocência radical que tenho desenvolvido, no que diz respeito às espirais e às quadraturas, ou seja, aos ciclos históricos da literatura.
As obras do passado também tinham o seu passado, que é difícil conhecer com exatidão sem uma árdua tarefa arqueológica. Porém, mesmo essa tarefa é dispensável. Pois embora tenha surgido de uma tradição, toda obra, ao ser escrita, é lançada como projeto. Destinada a uma dimensão de incerteza, nasce à margem do pensamento e é colocada entre parêntesis, em estado de suspensão, arremessada às franjas e periferias do real, para depois ser resgatada sucessivas vezes, sabe Deus por quem, como e por quê. O componente de sua perenidade decorre tanto de sua apropriação do que existia até aquele momento quanto da sua capacidade de transcender todo instituído, de apreender a latência do futuro, de atender às expectativas de algo que ainda não existe e, mais que isso, de tudo o que é, à altura de sua escrita, indevassável. Esse parece ser o mistério da criação, da crítica e da própria história. Se refletirmos com seriedade sobre ele, não chegaremos a desvendá-lo, mas provavelmente poderemos compreendê-lo um pouco melhor. Consequentemente, talvez vejamos com outros olhos o relativismo que tem determinado o trabalho intelectual nas últimas décadas, nos últimos séculos ou até mesmo no último milênio. Afinal, o relativismo não é nada mais do que a superstição por excelência da modernidade.
Rodrigo Petronio nasceu em 1975, em São Paulo. É editor, escritor e professor. Formado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP. Professor do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema (AIC), professor-coordenador do Centro de Estudos Cavalo Azul, fundado pela poeta Dora Ferreira da Silva, e coordenador de grupos de leitura do Instituto Fernand Braudel. Trabalha no mercado editorial há mais de dez anos e colabora para diversos veículos da imprensa. Recebeu prêmios nacionais e internacionais nas categorias poesia, prosa de ficção e ensaio. Tem poemas, contos e ensaios publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Participou de encontros de escritores em instituições brasileiras e em Portugal. É autor dos livros História Natural (poemas, 2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e Assinatura do Sol (poemas, 2005), este último publicado em Portugal, e organizou com a poeta Rosa Alice Branco o livro Animal Olhar (Escrituras, 2005), primeira antologia do poeta português António Ramos Rosa publicada no Brasil. É membro do conselho editorial da revista de filosofia, cultura e literatura Nova Águia (Lisboa). Lançou, pela editora A Girafa, o livro de poemas Pedra de Luz, finalista do Prêmio Jabuti 2006. Foi congratulado com o Prêmio Nacional ALB/Braskem de 2007, com a obra Venho de um País Selvagem, publicada em abril de 2009. Contato: rodrigopetronio@gmail.com
Maiara Gouveia nasceu em 1983, em São Paulo. É poeta e estudiosa de literatura, com trabalho desenvolvido na Universidade de São Paulo sobre a obra de Cesário Verde. Seus poemas e artigos sobre cinema e literatura estão em diversos sites, revistas e jornais. Em 2006, foi finalista do Prêmio Nascente − USP, com o livro de poemas O Silêncio Encantado. A obra inaugural sofreu alterações e hoje se chama Pleno Deserto e encontra-se no prelo. Mantém o blog A Certeza de Fazer o Mal (http://maiaragouveia.blogspot.com). Contato: maiaragouveia@gmail.com