MEDITAÇÃO DO MEIO-DIA
Um rosto é uma sombra tragada pela intensa luz do meio-dia. Narciso se desengana. Seu rosto é mero reflexo no lago. Não é no espelho, mas na janela, que Narciso, amparado pelo Abandono, enxerga o Aberto. O sol, o relógio de sol, o rosto que vê e se vê o mundo, mais a sombra, invisível, mas existente, no sol, no relógio e no rosto.
Nem reflexo nem reflexão; nem sujeito nem objeto, o ser, que, em sua totalidade, está sempre aí, na contingência de uma manifestação finita, que não evoca uma substância, mas uma presença, presença que precede e sucede aquilo que se dá, sendo uma dádiva para além do dado.
Se a substância é uma hipóstase, subsistem, todavia, as singularidades: a singularidade de cada eu; a singularidade de Deus.
Onipotência, onisciência, onipresença, atributos do ente supremo. O que ainda vigora no reinado da penúria do ser ao invés da opulência do ente é a onipresença: a onipresença do ausente – “Deus como falha”, como lacuna. Não aspirar à alma imortal, mas esgotar o “campo do possível”. Só o mortal – o poeta – pode esgotar o campo do possível, pois não aspirar à imortalidade estática das estátuas que hipostasiam os grandes feitos. O poeta – lírico da lira pendurada nos chorões do exílio – jaz nas entrelinhas da imortalidade épica e no hamletiano silêncio que resta das tragédias.
A alma não é um narcíseo ídolo, assim como Deus, não tem imagem nem as margens da moldura de um espelho ou de um espetáculo.
Por que há algo em lugar do nada?, indaga a filosofia. O nada se coloca, às avessas, como o avesso daquilo que é. Mas o nada se colocando, de algum modo, é – existe. A existência, para além de sua causalidade e efetividade, imbuí-se de “casualidade”, eventualidade: “Graça de Deus”, que as indulgências e os cálculos não compram.
“Salvação”, palavra inevitável: salvação do corpo e da alma, mediante “um nada além do nada”. Se Deus me ama, ele possui a riqueza e a pobreza do Amor: “Sou o que falta a Deus”. Mas não pelas “obras”. “A salvação só acolhe os desregrados”. Com a morte, participamos da penúria de Deus.
O sol intenso do meio-dia é negro, até que Ela, a desejada Indesejada das gentes, traga a iluminação do deus que comigo morre e comigo nasce.
Um rosto é uma sombra tragada pela intensa luz do meio-dia. Narciso se desengana. Seu rosto é mero reflexo no lago. Não é no espelho, mas na janela, que Narciso, amparado pelo Abandono, enxerga o Aberto. O sol, o relógio de sol, o rosto que vê e se vê o mundo, mais a sombra, invisível, mas existente, no sol, no relógio e no rosto.
Nem reflexo nem reflexão; nem sujeito nem objeto, o ser, que, em sua totalidade, está sempre aí, na contingência de uma manifestação finita, que não evoca uma substância, mas uma presença, presença que precede e sucede aquilo que se dá, sendo uma dádiva para além do dado.
Se a substância é uma hipóstase, subsistem, todavia, as singularidades: a singularidade de cada eu; a singularidade de Deus.
Onipotência, onisciência, onipresença, atributos do ente supremo. O que ainda vigora no reinado da penúria do ser ao invés da opulência do ente é a onipresença: a onipresença do ausente – “Deus como falha”, como lacuna. Não aspirar à alma imortal, mas esgotar o “campo do possível”. Só o mortal – o poeta – pode esgotar o campo do possível, pois não aspirar à imortalidade estática das estátuas que hipostasiam os grandes feitos. O poeta – lírico da lira pendurada nos chorões do exílio – jaz nas entrelinhas da imortalidade épica e no hamletiano silêncio que resta das tragédias.
A alma não é um narcíseo ídolo, assim como Deus, não tem imagem nem as margens da moldura de um espelho ou de um espetáculo.
Por que há algo em lugar do nada?, indaga a filosofia. O nada se coloca, às avessas, como o avesso daquilo que é. Mas o nada se colocando, de algum modo, é – existe. A existência, para além de sua causalidade e efetividade, imbuí-se de “casualidade”, eventualidade: “Graça de Deus”, que as indulgências e os cálculos não compram.
“Salvação”, palavra inevitável: salvação do corpo e da alma, mediante “um nada além do nada”. Se Deus me ama, ele possui a riqueza e a pobreza do Amor: “Sou o que falta a Deus”. Mas não pelas “obras”. “A salvação só acolhe os desregrados”. Com a morte, participamos da penúria de Deus.
O sol intenso do meio-dia é negro, até que Ela, a desejada Indesejada das gentes, traga a iluminação do deus que comigo morre e comigo nasce.
O ESPELHO ESCURO DA ESTRELA
O além e aquém do brilho é a parte velada da Verdade. O que vem à luz pressupõe o que jaz à sombra. Sombras, trevas, podem ser signo do Mal ou do que simplesmente não se manifesta, sendo inefável, inenarrável, fora de qualquer preceito, conceito ou constatação.
Blake viu o mundo num grão de areia, em “Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto”, Rodrigo Petronio vê num punhado de açúcar – açúcar negro, mascavo – galáxias pulverizadas, deterioradas, imergindo na infinita noite de uma xícara de café. Essa noite, avesso da luz, nos acompanha, assim como o silêncio acompanha e pontua o som.
Na medida em que, num lapso-de-tempo, está o Tempo, um cotidiano hábito, como tomar um cafezinho, evoca a dissolução do cosmos. A doçura do açúcar é imolada no pavilhão de uma xícara, assim como uma estrela é engolida pelo buraco negro. A vida é nutrição, o que implica destruição. Viver é matar ou morrer; matar e morrer.
Com efeito, viver seria um crime, só uma existência nirvanizada, acima dos ciclos de vida e morte, seria sã, santa – sagrada. Os rituais civilizados sempre encobrem o caráter criminoso, assassino, da vida em sua essência. O conteúdo das normas erra como música amorfa regida por uma letal batuta, que transfigura o monstro em maestro.
Não há como fugir do sentido eucarístico. Há sempre uma hóstia – o sentido original do termo designava a vítima expiatória oferecida ao deus – que agrega em seu ser a hostilidade do mundo. Todos somos hóstias expostas à voracidade do mundo. Mas Deus – eis a verdade cristã – fez-se hóstia e foi devorado pelos nossos pecados.
O poeta assume ter devorado Deus, confessa o crime que imbui o ritual civilizado, pois a Lei, em sua dinâmica contraditória, nasce da violência, violência que transborda e, violando a violação primeva, cria a Ordem, o que resplandece e ofusca o Caos. Sem as cores do escuro Caos não há Poema; sem o preto no branco não há a clara, concisa e precisa Lei. No princípio, era o Poema, verve metaforizante que semeava no Campo do Possível, no qual nascem plantas dadas, gêneros, espécies, sins, nãos, senões a serem evitados – Lei, à revelia do Poema.
Se luz é sinônimo de ser, do que aparece, vem a ser, as trevas são a ausência de ser, de procriação. A “menstruação da luz” evocada no poema opõe-se ao “estro da luz”, ao “cio da luz”. Na menstruação, não há fertilidade, a semente não vinga: é o lado leteu da Verdade.
O mito de Narciso também pode lançar luz sobre o texto. Digamos que, em “Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto”, há um Narciso às avessas, possuidor de um rosto divino, celeste, de rocio vindo do céu, dando-se como oferenda à Terra. É um rosto sem feições que se perde no negror da xícara de café, a qual é um espelho devorador, desdobrado na boca de quem toma o café, noite na qual estrelas, como grãos de açúcar, estão dissolvidas. De forma que o ensimesmamento deste rosto, que é – creio – o rosto de Deus, não é o mesmo ensimesmamento de Narciso. Enamorado da própria imagem, Narciso se afoga no lago que a refletia. Um rosto de orvalho não tem imagem. Deus, não sendo um ídolo, não idolatra nem a si mesmo. Seu destino é eternamente sair de si, encarnar-se na matéria – encarnar-se na nossa miséria, que, assim, se eleva ao Absoluto.
“Sei que Deus sem mim não vive um só momento./ Ele expiraria com meu passamento”, disse Angelus Silesius. Esse mim, todavia, não vem de um eu narcisista; é expressão daquilo que Heidegger denominou Dasein, o ser – aí, no mundo, para a morte. Mas essa morte morre neste instante: o Tempo é eterno.
O além e aquém do brilho é a parte velada da Verdade. O que vem à luz pressupõe o que jaz à sombra. Sombras, trevas, podem ser signo do Mal ou do que simplesmente não se manifesta, sendo inefável, inenarrável, fora de qualquer preceito, conceito ou constatação.
Blake viu o mundo num grão de areia, em “Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto”, Rodrigo Petronio vê num punhado de açúcar – açúcar negro, mascavo – galáxias pulverizadas, deterioradas, imergindo na infinita noite de uma xícara de café. Essa noite, avesso da luz, nos acompanha, assim como o silêncio acompanha e pontua o som.
Na medida em que, num lapso-de-tempo, está o Tempo, um cotidiano hábito, como tomar um cafezinho, evoca a dissolução do cosmos. A doçura do açúcar é imolada no pavilhão de uma xícara, assim como uma estrela é engolida pelo buraco negro. A vida é nutrição, o que implica destruição. Viver é matar ou morrer; matar e morrer.
Com efeito, viver seria um crime, só uma existência nirvanizada, acima dos ciclos de vida e morte, seria sã, santa – sagrada. Os rituais civilizados sempre encobrem o caráter criminoso, assassino, da vida em sua essência. O conteúdo das normas erra como música amorfa regida por uma letal batuta, que transfigura o monstro em maestro.
Não há como fugir do sentido eucarístico. Há sempre uma hóstia – o sentido original do termo designava a vítima expiatória oferecida ao deus – que agrega em seu ser a hostilidade do mundo. Todos somos hóstias expostas à voracidade do mundo. Mas Deus – eis a verdade cristã – fez-se hóstia e foi devorado pelos nossos pecados.
O poeta assume ter devorado Deus, confessa o crime que imbui o ritual civilizado, pois a Lei, em sua dinâmica contraditória, nasce da violência, violência que transborda e, violando a violação primeva, cria a Ordem, o que resplandece e ofusca o Caos. Sem as cores do escuro Caos não há Poema; sem o preto no branco não há a clara, concisa e precisa Lei. No princípio, era o Poema, verve metaforizante que semeava no Campo do Possível, no qual nascem plantas dadas, gêneros, espécies, sins, nãos, senões a serem evitados – Lei, à revelia do Poema.
Se luz é sinônimo de ser, do que aparece, vem a ser, as trevas são a ausência de ser, de procriação. A “menstruação da luz” evocada no poema opõe-se ao “estro da luz”, ao “cio da luz”. Na menstruação, não há fertilidade, a semente não vinga: é o lado leteu da Verdade.
O mito de Narciso também pode lançar luz sobre o texto. Digamos que, em “Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto”, há um Narciso às avessas, possuidor de um rosto divino, celeste, de rocio vindo do céu, dando-se como oferenda à Terra. É um rosto sem feições que se perde no negror da xícara de café, a qual é um espelho devorador, desdobrado na boca de quem toma o café, noite na qual estrelas, como grãos de açúcar, estão dissolvidas. De forma que o ensimesmamento deste rosto, que é – creio – o rosto de Deus, não é o mesmo ensimesmamento de Narciso. Enamorado da própria imagem, Narciso se afoga no lago que a refletia. Um rosto de orvalho não tem imagem. Deus, não sendo um ídolo, não idolatra nem a si mesmo. Seu destino é eternamente sair de si, encarnar-se na matéria – encarnar-se na nossa miséria, que, assim, se eleva ao Absoluto.
“Sei que Deus sem mim não vive um só momento./ Ele expiraria com meu passamento”, disse Angelus Silesius. Esse mim, todavia, não vem de um eu narcisista; é expressão daquilo que Heidegger denominou Dasein, o ser – aí, no mundo, para a morte. Mas essa morte morre neste instante: o Tempo é eterno.