Primeiro filho de Adão e Eva, e, por conseguinte, primeiro homem nascido naturalmente sobre a Terra, pesa sobre Caim a cifra de um enigma e de um destino, ora individual ora coletivo. Embora o seu nome signifique lança e denote a sua origem agricultora, pode ser entendido também, de modo perifrástico, como obter para si, ou seja, ganhar algo para si. Isso que o primogênito tem para si, como depois sabemos, é a inveja. A necessidade de ter, por parte de Deus, a dignidade que ele julga que lhe compete, fato que não ocorre. Por isso o fato último do assassinato. “E porei inimizade entre a tua semente e a sua semente” (Gênesis 3:15), diz Deus, referindo-se à serpente e a Eva. Ora, quer dizer que o mal que nasceu do pecado entre Eva e a serpente se estenderia à semente de Eva (Caim) e a toda a descendência deste (a humanidade).
Porém, alguns comentadores eruditos sugerem que um dos sentidos simbólicos desse personagem seria o de redentor. Ele teria vindo ao mundo, após o pecado, para matar a serpente e restituir a integridade da vida. Por isso a sua urgência de obter reconhecimento (e aqui a ambiguidade semântica da palavra é oportuna) por parte de Deus. De acordo com essa leitura heterodoxa, haveria um sentido subliminar na figura de Caim. Ele seria o descendente (a semente) que teria vindo ao mundo para aniquilar o mal. Teria sido o primeiro ungido.
Obviamente, na doutrina cristã, a ideia de regeneração da humanidade pela remissão do mal é atributo divino, e só se deu com Jesus. E trata-se de restauração total, não de mera extinção das suas causas mundanas (a serpente). Por isso, Jesus foi aquele “segundo Adão”, de acordo com as palavras do apóstolo Paulo, ou seja, aquele que restaurou integralmente o mundo e o ser por meio de sua encarnação e de sua palavra. Entretanto, não deixam de ser curiosas algumas outras associações simbólicas daquele personagem bíblico. Sabemos que Caim não apresenta arrependimento, mas padece de remorso. Esse fato vem inscrito na famosa “marca de Caim”, que foi estabelecida por Deus, mas cuja execução e natureza não vêm expressas.
Paradoxalmente, essa marca é registro de proteção e de estigma. Denota ao mesmo tempo a eleição divina e a chaga de uma ação ocorrida no passado. É aquilo que distingue Caim como descendente adâmico, marcando um limite de proteção para que ele não seja morto, e o que assinala o seu crime. Essa dupla natureza, protegida e espúria, preservada e infame, tem o intuito de fazer de Caim um dos protagonistas da neutralização do mal do mundo. Afinal, há que se suspender de vez a cadeia das mortes, interromper as quedas que se inauguram com a Queda, das quais Caim representa uma das mais profundas, logo depois da perda do Paraíso, pois em si mesmo mostra a todos a mácula de sua escolha.
Os desdobramentos do enredo, do mythos, muitos de nós sabemos: o exílio, a Terra da Fuga (Nod), a edificação de cidades, uma das quais leva o nome de seu filho Enoc, os primeiros trabalhos com a metalurgia, o crescimento da poligamia e da violência, a suspeita referência ao assassino de Caim, Lemec, que será vingado setenta vezes aquelas que Caim seria vingado, ou seja, setenta vezes sete. Ora, descendem de Caim, passando por Noé, Cam e Nemrod, o fundador de potências como Babilônia e Nínive, além de outras grandes cidades. A descendência de Caim, por outro lado, não é só o dos que constroem e manejam a metalurgia, mas também a dos que tocam cítara e flauta. Além de autores de muralhas feitas à custa de sangue e ferro, são também patronos da cultura e seu refinamento. Em palavras polidas, teria início então a “civilização”, que nada mais é do que a luta dos homens uns contra os outros? A edificação das cidades e, portanto, a ruptura com a relação com a natureza começou pelas mãos do primeiro fratricida? Não cabe discutir aqui os limites tênues entre essas esferas.
A despeito do que o leitor possa estar pensando, essa introdução um tanto idiossincrática se justifica, pois acredito que ela se relacione diretamente à experiência de leitura da poesia de Alfredo Fressia. Poesia rigorosamente edênica, ela não o é no sentido de propor a restauração de uma unidade primeira entre linguagem e mundo, de uma Ursprache poética, como tantos grandes poetas o fizeram e o fazem. Não é também poesia “profana”, no sentido de apagar as marcas da origem que tanto a linguagem quanto a vida trazem em si, no movimento centrífugo da Criação. A cena que se sustenta como pano de fundo de todos os poemas de Fressia é uma cena de intervalo.
Baseia-se na consciência de que a poesia, no seu sentido inicial e dir-se-ia até iniciático, nasce de uma origem pura, porém perdida para sempre, e toma para si a responsabilidade de edificar o mundo, mas apenas depois de estabelecer o seu compromisso com o mal. O poeta é aquela “rosa condenada” (“Mas a rosa”) ao eterno exílio, sempre no limiar, para sempre no umbral. Essa condição intervalar, de radical indecidibilidade, para usar o conceito de Blanchot, faz da via poética uma impossibilidade sustentada. Mais do que um confesso deslocado social, essa situação estrangeira é ontológica. Diz-nos que a poesia, por ser linguagem, está fora do Paraíso, mas, por ser poesia, tampouco compartilha da completa ausência de sentido.
Tanto nos conjuntos de poemas O futuro e Veloz eternidade, quanto no magistral Eclipse e nesta antologia Canto desalojado, recolhida, traduzida e organizada cuidadosamente por Fábio Aristimunho Vargas, a cena caimita não é acessória, tampouco referencial. Ao contrário, pode-se dizer que ela é a estrutura mítica sobre a qual se ergue a poesia de Fressia, é a sua matéria-prima e a sua bússola. Eleito e maldito, assim é a descendência do poeta e assim é a descensão sugerida pela instauração poética. Em termos arquetípicos, tais modulações da Queda são flagrantes até na passagem de um poema a outro.
De saída, já se vê esse movimento nos dois primeiros poemas do livro. Apresentando-se como um “mal-entendido como a alma” e como um “traidor”, desde o poema de abertura, não por acaso intitulado “A última ceia”, o percurso poético é sempre o da reminiscência, com a nostalgia do abandono (a derelicção, como diz Heidegger), e a certeza da redenção impossível. Inútil “como a poesia” é a própria existência do poeta, o mais exilado dos exilados, e, entretanto, marcado com a chancela divina. Da ceia se passa ao diálogo com o pai, em “O medo, pai”, no qual o filho espanta-se ao se reconhecer “preso no corpo”, e define os homens como “filhos obedientes da espécie”, mesma expressão que reaparece no belo e forte fechamento do poema “Obediência”.
Essa cena edênica não se preserva no nível das formas e dos arquétipos. Toma corpo na própria vida, enraizada no cotidiano. Seja ao dizer, de modo babélico, que “todos os idiomas são incompreensíveis” na vasta tristeza noturna, seja mostrando os amantes como “títeres do tempo”, em quartos iluminados de néon (“Noturno na Avenida São João”). Esta paisagem desolada de perda e carência pode se dar na ausência de rosto, que fôra por “sete dias postergado”, no “segredo dos ossos”, no xadrez das vértebras jogadas pela morte (“Domingo à tarde”), na sinfonia da carne, na ruína dos corpos durante o amor e no regresso de cada um desses até “a sua ausência”. Esses corpos não são inodoros ou distantes, não são paisagem, tampouco estáveis permutações de um amor ameno. Eles se dilaceram e se dissipam, deixam marcas, cheiros, pegadas, passos, sêmen, odores, cortes, suor, sangue. Amam-se como peixes, amam-se e se odeia, atravessam-se e se esfolam aos olhares sorridentes da morte. Depois, se por acaso o se o próprio corpo toma ciência de si, o mesmo dobra-se e se contrai na posição de feto, em seu retorno primevo ao ventre da Criação, como lemos no impecável “Liturgia”.
Esse barro original de onde Fressia modela os seus corpos, além de manchado e impuro, traz algo também de singular. Se observarmos, por exemplo, a temática homoerótica de sua poesia, sinto que podemos desentranhar dela algumas variantes, não só do homoerotismo, mas também da androginia. O enigma da sexualidade, um dos enigmas da vida, é posto de maneira emblemática, entre outros, no poema “Final”. Ao dizer que “encerra todo o ciclo” e que em si “se acaba” e, logo em seguida, “Tirésias contempla o travesti em silêncio”, Fressia passa de uma dimensão literária, de fechamento dos poemas, a uma sexual e existencial, do voltar-se sobre si mesmo, ou seja, do amor ao próprio sexo e do amor a si, como fundo autotélico do desejo que não quer se perder no outro. Ora, o adivinho Tirésias, tal como se diz de Empédocles, havia experimentado em outras vidas a forma de mulher. Esse feminino que vem inscrito na interioridade do personagem, aliado à cegueira que o veda ao mundo das formas exteriores, é o que promove o visionarismo. O mesmo visionarismo que terá Édipo em Colono, depois de cegado e depois de, na tragédia de Tebas, ter selado seu pacto com a mãe, que é Jocasta e o eterno feminino. Tem início então o segundo movimento da sinfonia trágica, o conhecimento que se exerce depois da peripécia do reconhecimento.
A função edipiana é subvertida aqui de maneira quase bufa. O cego Tirésias contempla o travesti em silêncio. Quer dizer: as próprias estruturas interiores e exteriores foram embaralhadas, posto não haver aqui mais ambivalência produtiva. Em outras palavras, não há assimilação dos opostos, anima e animus, mas um profeta cego que “contempla” um travesti (o poeta), cujo feminino interior já foi totalmente exteriorizado, posto em potência. Nesse sentido, não há tragédia, pois a tensão dos opostos se resolveu por dissolução. O mesmo modo bifronte de união dos corpos se dá no poema “Belo amor”, no espelhamento de sexos idênticos. Dessas descrições chegamos por fim às de poemas como “Obediência”, verdadeira cidade da carne, onde o corpo e o sexo são pensados em termos puramente negativos, em uma noite que desmorona junto com as coisas.
Belo porque estéril, esse amor que se descreve é propriamente uma tentativa de não procriar a vida fora dos limites do Éden, de deixar-se ali até que a salvação venha cumprir seu destino. Ou não venha nunca. Se a tradição cristã mais ortodoxa viu na sodomia um ato contra naturam é por ela não gerara filhos que possam trabalhar o linho da vida até a redenção da espécie. Em outras palavras, até a completa purificação da marca de Caim que nós herdamos. A boa poesia é sempre violenta, e no caso de Fressia o é, na medida em que propõe um retorno à cena do crime, não para corrigi-lo, mas para revivê-lo e mostrar-nos um espelho, no qual todos nós nos reconheçamos.
Esses corpos não estão presentes apenas em um de seus livros. O que dizer deles, senão que são corpos edênicos, moldados no barro original e no pecado irresoluto que nos funda? Não há aqui intervenção do puro espírito ou o corpo sutil dos místicos. Não há sublimidade, altitude espiritual, pois se não há salvação, tampouco há tragédia. A sua encarnação simbólica em poesia se dá como experiência-limite da própria materialidade, da falta de transcendência que irriga todos os poros deste mundo que ainda não foi salvo. E provavelmente nunca será. E nestes advérbios temporais parece residir todo mistério. Ou melhor, reside um dos enigmas que nunca foram resolvidos: o futuro. No futuro do pretérito de sua poesia, o mundo ainda está para ser salvo. O “futuro era o de antes” era o do “tempo dos meus quinze anos”. Pessimismo cujo tom é um dos mais interessantes, com matizes judaizantes, pode-se dizer, a poesia de Fressia é tão exilada dos lugares nos quais se radica que vê a própria utopia sob a luz do luto.
De fato, em seu livro intitulado justamente O futuro, em especial no engraçado “Teorema”, mais do que uma projeção utópica frustrada, uma distopia ou uma falta de enquadramento social, o que se lê é uma atopia. Não aquela enfadonha, insossa e insone, dos aeroportos (“Aeroportos”), que estão mais para aqueles não-lugares de que nos fala o sociólogo Marc Augé, e são tratadas comicamente. Trata-se, por outro lado, de uma condição estruturalmente incondicional, do poeta e da poesia. Sob essa ótima, que é a de um exílio ontológico, não mais uruguaio ou brasileiro, os lugares e os projetos estão sempre ainda por se realizar. Não existem, e, portanto, nunca existirão. Serão sempre diversos de si mesmo, sendo o centro luminoso de irradiação de sua verdade eternamente inacessível para nós. Por isso, não podemos dizer que algo será salvo por algo ou alguém que ainda não existe nem por aquilo que ainda não há. Se a perspectiva edênica marca seu vínculo com o tempo de antes da salvação, essa salvação que se mostra sempre por vir é eterna. Sendo assim, é também infinita. Não se consuma nunca. É, portanto, inexequível e assim carece de essência. Essa é sua parcialidade. Em outras palavras, pode-se dizer que a vida humana está e sempre estará sob o signos dessa parcialidade. Por isso, o centro de toda a poesia de Fressia chega enfim a um termo: o eclipse.
O eclipse como fenômeno natural é simples. Consiste na sobreposição de um dos astros, que oculta a parte luminosa de outro astro, seja o sol ou a lua. Mas se eu me surpreendo “ferido pelos astros”, eles impregnam minha carne, se misturam ao meu sangue. Em uma palavra, são o meu corpo astral, a circulação de meu sangue e de minha linfa, a matéria estelar de que sou feito, como diz a teoria platônica. No poema “Eclipse”, um dos melhores poemas da poesia contemporânea, essa dimensão vem muito marcada:
Não nos atenhamos a detalhes, isso
era o futuro, já o sabias refugiado no ventre do bisão:
eras homem e mulher, e o céu foi um deserto
onde ardeu meia hora a fogueira fria dos teus ossos,
e estava escrito que não tivera margens nem destino
nem esperança de morrer cercado de teus filhos, o
semicírculo acossado
desde antes de nascer.
A marca da origem é anterior à cena mundana, é anterior à próprio proveniência da espécie. Vem inscrita no ocultamento dos próprios astros, que sempre produzem a sua marca profética e são mais fortes do que a nossa vontade ou do que a triste sociologia das revoltas sociais ou de nossas ocupações. Trata-se de uma marca mais profunda: o Estrangeiro dos gnósticos, que nunca pertence a este mundo. Ele vem marcado desde a origem edênica, nos mitos primordiais que fornecem a miséria e a liberdade necessária ao exercício de nossa finitude. Mais que isso, de nossa fatalidade. O poeta, e aqui não falo em termos literários, mas falo sim de Alfredo Fressia, de carne e osso, já fora “acossado desde antes de nascer”. O futuro “era o de antes”, era o que ainda não existiu e não existirá nunca, pois não tem essência.
Homem e mulher, conjunção de sol e lua, de masculino e feminino, de gregos e persas, queimado em meio a um gélido deserto, sem esperança de deixar descendência que não a poesia e o signo de Caim que traz consigo e não se limpa, seja no eclipse de Tebas, no da batalha de Salamina ou no de Montevidéu. O retorno à cena primordial ganha ainda mais espessura, pois agora retroage ao fundamento metafísico e cósmico dos astros, em sua conjunção maléfica. Como diz Fernando pessoa em um dos sonetos ingleses, o seu eu é anterior ao mundo e anterior até mesmo a Deus. Por isso, vive a desolação de saber-se sempre alheio a tudo que o cerca. O intuito do poeta é refazer essa peregrinação inversa, essa reminiscência às origens obscuras de onde provém a sua verdade.
Tal recuperação não é vivida como miséria, como desespero ou como autoglorificação; não estamos diante de um dândi que se apostasia anacronicamente na transgressão, nem de uma mistificação inócua do lado oposto da vida. O resultado último do percurso levado a cabo por Fressia é uma espécie de desilusão essencial. O remorso prossegue, porque não há redenção; mas, por maior que seja o peso do nefasto eclipse que nos condena, não há sequer tragédia, porque o destino quis que nós nos desviássemos e nos transviássemos para virmos a conhecer a vida e edificar o mundo, com suas torpezas e maravilhas.
O rito final dessa mise-en-scène prossegue nos belíssimos poemas inéditos: “Nugatória”, “Inveja” e “Rua Rondeau”. Estes, somados a poemas como “Liturgia” e “Obediência”, bem como a quase todos os poemas selecionados de Eclipse, estão entre os melhores poemas escritos nas últimas décadas, no Brasil e quiçá em castelhano. No magistral “Penitência”, lemos:
Quero voltar ao ventre
e velo imóvel sobre a teia de aranhas venenosas. Conto-as
uma por uma, até que sucumbam famintas como pensamentos.
Rezo. A goteira não cede na cozinha. Recostado
sou branco e gigante como o arrependimento. Vivo para pedir.
Perdão pela memória porosa da areia, perdão
se afundo meu ouvido no travesseiro de plumas
e me ouço flutuar atrás da muralha, Amém.
Nesta série, o tema bíblico, praticamente apenas sugerido nos primeiros poemas e aprofundado nos demais, toma corpo e vem à luz com todas as letras em “Nugatória”, com a “quebra da inocência”, porque “é polpa amarga o coração do fruto” e chegamos “tarde à colheita dos filhos de Eva”. E, mais adiante, em “Poeta no Éden”, lemos a bela abertura:
Não, Senhor,
nunca fugirei do Paraíso, tenho em mim
o leite eterno dos pais e dos filhos,
e escrevo poemas para a saudade.
Em seguida, o poeta nos fala do “menino imenso” que docilmente escreve “no barro do Éden”, passando logo em seguida a um colóquio entre ele mesmo e o invejoso, “estendidos sobre a grama” e “fingindo certa glória”. A visão caimita ora é a do outro ora a do próprio poeta, mas nunca sai de cena. Caim aparece, seja como o próprio poeta, seja em forma dialogal, neste poema intitulado justamente “Inveja”. Essa glória é um artifício, uma tentativa de isenção e soberania que não há. Pois depois do Paraíso confiscado, resta-nos apenas o modelo histriônico e postiço, desenhado em “serpentes de néon”: Next Paradise.
Resta-nos simplesmente o futuro, que não se sabe utópico e exequível ou uma mera boutade para aliviar um remorso sem cura. Em seguida, o desejo de voltar às “nêsperas da infância” (“Rua Rondeau”). Mas o retorno não consente um acesso à veracidade das coisas, pois o tempo passado também é um mundo. Este, por sua vez, é um pião de mentiras, girando na “vista noturna do tempo da minha infância” (“Cartão postal”). O poeta em estado natural está no Éden e ao mesmo tempo caminha pelas ruas e é corrupto. A linguagem é seu Paraíso, mas a sua natureza é modelada no barro impuro da Criação.
Para finalizar o livro, nada melhor do que “Rua Rondeau”. O caminhar leve pela rua, levando “os filhos que não tivera sob o casaco”, faz Fressia sentir todas as virtualidades, o que não houve, mas persiste, entrelaçado eternamente à sua vida. O mito, nesse sentido, também é um misto de virtual e atual, de presença pura e de origem para sempre perdida em um passado irrecuperável. A consciência do poeta é a de que não há reconciliação possível. Mas há a tentativa de ao menos dignificar a sua condição neste mundo manchado:
Ou desde as abóbadas da cidadela,
onde agora me refugio, embalo
os meus filhos não nascidos
e abraço os joelhos
de todas as estátuas na estação central
para que não me expulsem, nem impregnem minha terra com sal estéril
nem maldigam outra vez minha estirpe
para as sete gerações
que vigiam meu poema
e torne a cumprir minha cerimônia.
O tom elegíaco e passional é proporcional ao tema, corolário do livro e de uma poética. E aqui é introduzido um novo leitmotiv: o tema igualmente bíblico da mulher de Loth. Pois senão, de onde surgiram essas referências ao sal como elemento estéril e punitivo? Ao ser convocada a deixar Sodoma, cidade da devassidão, sem olhar para trás, ainda assim a mulher de Loth não pôde se conter e foi transformada em uma estátua de sal. O mesmo mitema de Orfeu é chancelado aqui para o poeta, mas em outra chave. Impelido a sair do Paraíso como a mulher o fora de abandonar Sodoma, o poeta (Caim) se recusa, deliberadamente, a fazê-lo. Ao contrário, afronta o destino que se lhe pesa. Quer a sua cidade, a sua estirpe, a sua vida de volta. Quer livrar-se da culpa eterna, na qual ele, tal como Caim, se vira marcado por “sete gerações”. Os deuses que vigiam o seu poema tornarão a cumprir a cerimônia. Esta é a cerimônia do exílio. E este, a essência da radicação última do poeta e da poesia no mundo.
Abraçado às estátuas e à cidadela, ou seja, às edificações que a maldição o levou a executar. E depois, a amar. Os ingênuos chamam enfaticamente esses signos de “cultura”. Para o poeta, eles são o seu destino, o seu alimento e a sua fatalidade. Sabe que estabeleceu um compromisso com o mal para escrever cada um de seus versos e para erguer cada um dos tijolos de sua cidade. Mas depois, aprendeu a amá-los, como ama a poesia, que é a inscrição de sua expulsão e de seu irremediável destino. Em seu fracasso, sabe-se no mais íntimo de si mesmo. Pois a poesia é pharmakon, remédio e veneno, mysterium tremendum e mysterium fascinans, como reza toda a rigorosa aproximação com o sagrado, que une em si o fasto e o nefasto, a experiência do puro e do impuro, em proporções iguais.
Nesse umbral, vejo Alfredo Fressia, bifronte: Janus. Diz-nos que o passado é irremediável e o futuro não existe. Ao fim e ao cabo, decifro a Esfinge. O que você nos pede, não é o alívio do arrependimento, nem a suspensão da miséria original que nos constitui, a mim, a todos nós e a você, Fressia. Pois ela é o barro fundamental do que somos. O que você pede é que a sua cerimônia nunca deixe de se cumprir. E que sempre saibamos que nossa vida não começou no dia de nosso nascimento, mas muito antes, em uma caminhada a leste do Éden, no primeiro eclipse ou no lado escuro das estrelas. E pode acreditar que assim será, em sua poesia, indefinidamente.
Porém, alguns comentadores eruditos sugerem que um dos sentidos simbólicos desse personagem seria o de redentor. Ele teria vindo ao mundo, após o pecado, para matar a serpente e restituir a integridade da vida. Por isso a sua urgência de obter reconhecimento (e aqui a ambiguidade semântica da palavra é oportuna) por parte de Deus. De acordo com essa leitura heterodoxa, haveria um sentido subliminar na figura de Caim. Ele seria o descendente (a semente) que teria vindo ao mundo para aniquilar o mal. Teria sido o primeiro ungido.
Obviamente, na doutrina cristã, a ideia de regeneração da humanidade pela remissão do mal é atributo divino, e só se deu com Jesus. E trata-se de restauração total, não de mera extinção das suas causas mundanas (a serpente). Por isso, Jesus foi aquele “segundo Adão”, de acordo com as palavras do apóstolo Paulo, ou seja, aquele que restaurou integralmente o mundo e o ser por meio de sua encarnação e de sua palavra. Entretanto, não deixam de ser curiosas algumas outras associações simbólicas daquele personagem bíblico. Sabemos que Caim não apresenta arrependimento, mas padece de remorso. Esse fato vem inscrito na famosa “marca de Caim”, que foi estabelecida por Deus, mas cuja execução e natureza não vêm expressas.
Paradoxalmente, essa marca é registro de proteção e de estigma. Denota ao mesmo tempo a eleição divina e a chaga de uma ação ocorrida no passado. É aquilo que distingue Caim como descendente adâmico, marcando um limite de proteção para que ele não seja morto, e o que assinala o seu crime. Essa dupla natureza, protegida e espúria, preservada e infame, tem o intuito de fazer de Caim um dos protagonistas da neutralização do mal do mundo. Afinal, há que se suspender de vez a cadeia das mortes, interromper as quedas que se inauguram com a Queda, das quais Caim representa uma das mais profundas, logo depois da perda do Paraíso, pois em si mesmo mostra a todos a mácula de sua escolha.
Os desdobramentos do enredo, do mythos, muitos de nós sabemos: o exílio, a Terra da Fuga (Nod), a edificação de cidades, uma das quais leva o nome de seu filho Enoc, os primeiros trabalhos com a metalurgia, o crescimento da poligamia e da violência, a suspeita referência ao assassino de Caim, Lemec, que será vingado setenta vezes aquelas que Caim seria vingado, ou seja, setenta vezes sete. Ora, descendem de Caim, passando por Noé, Cam e Nemrod, o fundador de potências como Babilônia e Nínive, além de outras grandes cidades. A descendência de Caim, por outro lado, não é só o dos que constroem e manejam a metalurgia, mas também a dos que tocam cítara e flauta. Além de autores de muralhas feitas à custa de sangue e ferro, são também patronos da cultura e seu refinamento. Em palavras polidas, teria início então a “civilização”, que nada mais é do que a luta dos homens uns contra os outros? A edificação das cidades e, portanto, a ruptura com a relação com a natureza começou pelas mãos do primeiro fratricida? Não cabe discutir aqui os limites tênues entre essas esferas.
A despeito do que o leitor possa estar pensando, essa introdução um tanto idiossincrática se justifica, pois acredito que ela se relacione diretamente à experiência de leitura da poesia de Alfredo Fressia. Poesia rigorosamente edênica, ela não o é no sentido de propor a restauração de uma unidade primeira entre linguagem e mundo, de uma Ursprache poética, como tantos grandes poetas o fizeram e o fazem. Não é também poesia “profana”, no sentido de apagar as marcas da origem que tanto a linguagem quanto a vida trazem em si, no movimento centrífugo da Criação. A cena que se sustenta como pano de fundo de todos os poemas de Fressia é uma cena de intervalo.
Baseia-se na consciência de que a poesia, no seu sentido inicial e dir-se-ia até iniciático, nasce de uma origem pura, porém perdida para sempre, e toma para si a responsabilidade de edificar o mundo, mas apenas depois de estabelecer o seu compromisso com o mal. O poeta é aquela “rosa condenada” (“Mas a rosa”) ao eterno exílio, sempre no limiar, para sempre no umbral. Essa condição intervalar, de radical indecidibilidade, para usar o conceito de Blanchot, faz da via poética uma impossibilidade sustentada. Mais do que um confesso deslocado social, essa situação estrangeira é ontológica. Diz-nos que a poesia, por ser linguagem, está fora do Paraíso, mas, por ser poesia, tampouco compartilha da completa ausência de sentido.
Tanto nos conjuntos de poemas O futuro e Veloz eternidade, quanto no magistral Eclipse e nesta antologia Canto desalojado, recolhida, traduzida e organizada cuidadosamente por Fábio Aristimunho Vargas, a cena caimita não é acessória, tampouco referencial. Ao contrário, pode-se dizer que ela é a estrutura mítica sobre a qual se ergue a poesia de Fressia, é a sua matéria-prima e a sua bússola. Eleito e maldito, assim é a descendência do poeta e assim é a descensão sugerida pela instauração poética. Em termos arquetípicos, tais modulações da Queda são flagrantes até na passagem de um poema a outro.
De saída, já se vê esse movimento nos dois primeiros poemas do livro. Apresentando-se como um “mal-entendido como a alma” e como um “traidor”, desde o poema de abertura, não por acaso intitulado “A última ceia”, o percurso poético é sempre o da reminiscência, com a nostalgia do abandono (a derelicção, como diz Heidegger), e a certeza da redenção impossível. Inútil “como a poesia” é a própria existência do poeta, o mais exilado dos exilados, e, entretanto, marcado com a chancela divina. Da ceia se passa ao diálogo com o pai, em “O medo, pai”, no qual o filho espanta-se ao se reconhecer “preso no corpo”, e define os homens como “filhos obedientes da espécie”, mesma expressão que reaparece no belo e forte fechamento do poema “Obediência”.
Essa cena edênica não se preserva no nível das formas e dos arquétipos. Toma corpo na própria vida, enraizada no cotidiano. Seja ao dizer, de modo babélico, que “todos os idiomas são incompreensíveis” na vasta tristeza noturna, seja mostrando os amantes como “títeres do tempo”, em quartos iluminados de néon (“Noturno na Avenida São João”). Esta paisagem desolada de perda e carência pode se dar na ausência de rosto, que fôra por “sete dias postergado”, no “segredo dos ossos”, no xadrez das vértebras jogadas pela morte (“Domingo à tarde”), na sinfonia da carne, na ruína dos corpos durante o amor e no regresso de cada um desses até “a sua ausência”. Esses corpos não são inodoros ou distantes, não são paisagem, tampouco estáveis permutações de um amor ameno. Eles se dilaceram e se dissipam, deixam marcas, cheiros, pegadas, passos, sêmen, odores, cortes, suor, sangue. Amam-se como peixes, amam-se e se odeia, atravessam-se e se esfolam aos olhares sorridentes da morte. Depois, se por acaso o se o próprio corpo toma ciência de si, o mesmo dobra-se e se contrai na posição de feto, em seu retorno primevo ao ventre da Criação, como lemos no impecável “Liturgia”.
Esse barro original de onde Fressia modela os seus corpos, além de manchado e impuro, traz algo também de singular. Se observarmos, por exemplo, a temática homoerótica de sua poesia, sinto que podemos desentranhar dela algumas variantes, não só do homoerotismo, mas também da androginia. O enigma da sexualidade, um dos enigmas da vida, é posto de maneira emblemática, entre outros, no poema “Final”. Ao dizer que “encerra todo o ciclo” e que em si “se acaba” e, logo em seguida, “Tirésias contempla o travesti em silêncio”, Fressia passa de uma dimensão literária, de fechamento dos poemas, a uma sexual e existencial, do voltar-se sobre si mesmo, ou seja, do amor ao próprio sexo e do amor a si, como fundo autotélico do desejo que não quer se perder no outro. Ora, o adivinho Tirésias, tal como se diz de Empédocles, havia experimentado em outras vidas a forma de mulher. Esse feminino que vem inscrito na interioridade do personagem, aliado à cegueira que o veda ao mundo das formas exteriores, é o que promove o visionarismo. O mesmo visionarismo que terá Édipo em Colono, depois de cegado e depois de, na tragédia de Tebas, ter selado seu pacto com a mãe, que é Jocasta e o eterno feminino. Tem início então o segundo movimento da sinfonia trágica, o conhecimento que se exerce depois da peripécia do reconhecimento.
A função edipiana é subvertida aqui de maneira quase bufa. O cego Tirésias contempla o travesti em silêncio. Quer dizer: as próprias estruturas interiores e exteriores foram embaralhadas, posto não haver aqui mais ambivalência produtiva. Em outras palavras, não há assimilação dos opostos, anima e animus, mas um profeta cego que “contempla” um travesti (o poeta), cujo feminino interior já foi totalmente exteriorizado, posto em potência. Nesse sentido, não há tragédia, pois a tensão dos opostos se resolveu por dissolução. O mesmo modo bifronte de união dos corpos se dá no poema “Belo amor”, no espelhamento de sexos idênticos. Dessas descrições chegamos por fim às de poemas como “Obediência”, verdadeira cidade da carne, onde o corpo e o sexo são pensados em termos puramente negativos, em uma noite que desmorona junto com as coisas.
Belo porque estéril, esse amor que se descreve é propriamente uma tentativa de não procriar a vida fora dos limites do Éden, de deixar-se ali até que a salvação venha cumprir seu destino. Ou não venha nunca. Se a tradição cristã mais ortodoxa viu na sodomia um ato contra naturam é por ela não gerara filhos que possam trabalhar o linho da vida até a redenção da espécie. Em outras palavras, até a completa purificação da marca de Caim que nós herdamos. A boa poesia é sempre violenta, e no caso de Fressia o é, na medida em que propõe um retorno à cena do crime, não para corrigi-lo, mas para revivê-lo e mostrar-nos um espelho, no qual todos nós nos reconheçamos.
Esses corpos não estão presentes apenas em um de seus livros. O que dizer deles, senão que são corpos edênicos, moldados no barro original e no pecado irresoluto que nos funda? Não há aqui intervenção do puro espírito ou o corpo sutil dos místicos. Não há sublimidade, altitude espiritual, pois se não há salvação, tampouco há tragédia. A sua encarnação simbólica em poesia se dá como experiência-limite da própria materialidade, da falta de transcendência que irriga todos os poros deste mundo que ainda não foi salvo. E provavelmente nunca será. E nestes advérbios temporais parece residir todo mistério. Ou melhor, reside um dos enigmas que nunca foram resolvidos: o futuro. No futuro do pretérito de sua poesia, o mundo ainda está para ser salvo. O “futuro era o de antes” era o do “tempo dos meus quinze anos”. Pessimismo cujo tom é um dos mais interessantes, com matizes judaizantes, pode-se dizer, a poesia de Fressia é tão exilada dos lugares nos quais se radica que vê a própria utopia sob a luz do luto.
De fato, em seu livro intitulado justamente O futuro, em especial no engraçado “Teorema”, mais do que uma projeção utópica frustrada, uma distopia ou uma falta de enquadramento social, o que se lê é uma atopia. Não aquela enfadonha, insossa e insone, dos aeroportos (“Aeroportos”), que estão mais para aqueles não-lugares de que nos fala o sociólogo Marc Augé, e são tratadas comicamente. Trata-se, por outro lado, de uma condição estruturalmente incondicional, do poeta e da poesia. Sob essa ótima, que é a de um exílio ontológico, não mais uruguaio ou brasileiro, os lugares e os projetos estão sempre ainda por se realizar. Não existem, e, portanto, nunca existirão. Serão sempre diversos de si mesmo, sendo o centro luminoso de irradiação de sua verdade eternamente inacessível para nós. Por isso, não podemos dizer que algo será salvo por algo ou alguém que ainda não existe nem por aquilo que ainda não há. Se a perspectiva edênica marca seu vínculo com o tempo de antes da salvação, essa salvação que se mostra sempre por vir é eterna. Sendo assim, é também infinita. Não se consuma nunca. É, portanto, inexequível e assim carece de essência. Essa é sua parcialidade. Em outras palavras, pode-se dizer que a vida humana está e sempre estará sob o signos dessa parcialidade. Por isso, o centro de toda a poesia de Fressia chega enfim a um termo: o eclipse.
O eclipse como fenômeno natural é simples. Consiste na sobreposição de um dos astros, que oculta a parte luminosa de outro astro, seja o sol ou a lua. Mas se eu me surpreendo “ferido pelos astros”, eles impregnam minha carne, se misturam ao meu sangue. Em uma palavra, são o meu corpo astral, a circulação de meu sangue e de minha linfa, a matéria estelar de que sou feito, como diz a teoria platônica. No poema “Eclipse”, um dos melhores poemas da poesia contemporânea, essa dimensão vem muito marcada:
Não nos atenhamos a detalhes, isso
era o futuro, já o sabias refugiado no ventre do bisão:
eras homem e mulher, e o céu foi um deserto
onde ardeu meia hora a fogueira fria dos teus ossos,
e estava escrito que não tivera margens nem destino
nem esperança de morrer cercado de teus filhos, o
semicírculo acossado
desde antes de nascer.
A marca da origem é anterior à cena mundana, é anterior à próprio proveniência da espécie. Vem inscrita no ocultamento dos próprios astros, que sempre produzem a sua marca profética e são mais fortes do que a nossa vontade ou do que a triste sociologia das revoltas sociais ou de nossas ocupações. Trata-se de uma marca mais profunda: o Estrangeiro dos gnósticos, que nunca pertence a este mundo. Ele vem marcado desde a origem edênica, nos mitos primordiais que fornecem a miséria e a liberdade necessária ao exercício de nossa finitude. Mais que isso, de nossa fatalidade. O poeta, e aqui não falo em termos literários, mas falo sim de Alfredo Fressia, de carne e osso, já fora “acossado desde antes de nascer”. O futuro “era o de antes”, era o que ainda não existiu e não existirá nunca, pois não tem essência.
Homem e mulher, conjunção de sol e lua, de masculino e feminino, de gregos e persas, queimado em meio a um gélido deserto, sem esperança de deixar descendência que não a poesia e o signo de Caim que traz consigo e não se limpa, seja no eclipse de Tebas, no da batalha de Salamina ou no de Montevidéu. O retorno à cena primordial ganha ainda mais espessura, pois agora retroage ao fundamento metafísico e cósmico dos astros, em sua conjunção maléfica. Como diz Fernando pessoa em um dos sonetos ingleses, o seu eu é anterior ao mundo e anterior até mesmo a Deus. Por isso, vive a desolação de saber-se sempre alheio a tudo que o cerca. O intuito do poeta é refazer essa peregrinação inversa, essa reminiscência às origens obscuras de onde provém a sua verdade.
Tal recuperação não é vivida como miséria, como desespero ou como autoglorificação; não estamos diante de um dândi que se apostasia anacronicamente na transgressão, nem de uma mistificação inócua do lado oposto da vida. O resultado último do percurso levado a cabo por Fressia é uma espécie de desilusão essencial. O remorso prossegue, porque não há redenção; mas, por maior que seja o peso do nefasto eclipse que nos condena, não há sequer tragédia, porque o destino quis que nós nos desviássemos e nos transviássemos para virmos a conhecer a vida e edificar o mundo, com suas torpezas e maravilhas.
O rito final dessa mise-en-scène prossegue nos belíssimos poemas inéditos: “Nugatória”, “Inveja” e “Rua Rondeau”. Estes, somados a poemas como “Liturgia” e “Obediência”, bem como a quase todos os poemas selecionados de Eclipse, estão entre os melhores poemas escritos nas últimas décadas, no Brasil e quiçá em castelhano. No magistral “Penitência”, lemos:
Quero voltar ao ventre
e velo imóvel sobre a teia de aranhas venenosas. Conto-as
uma por uma, até que sucumbam famintas como pensamentos.
Rezo. A goteira não cede na cozinha. Recostado
sou branco e gigante como o arrependimento. Vivo para pedir.
Perdão pela memória porosa da areia, perdão
se afundo meu ouvido no travesseiro de plumas
e me ouço flutuar atrás da muralha, Amém.
Nesta série, o tema bíblico, praticamente apenas sugerido nos primeiros poemas e aprofundado nos demais, toma corpo e vem à luz com todas as letras em “Nugatória”, com a “quebra da inocência”, porque “é polpa amarga o coração do fruto” e chegamos “tarde à colheita dos filhos de Eva”. E, mais adiante, em “Poeta no Éden”, lemos a bela abertura:
Não, Senhor,
nunca fugirei do Paraíso, tenho em mim
o leite eterno dos pais e dos filhos,
e escrevo poemas para a saudade.
Em seguida, o poeta nos fala do “menino imenso” que docilmente escreve “no barro do Éden”, passando logo em seguida a um colóquio entre ele mesmo e o invejoso, “estendidos sobre a grama” e “fingindo certa glória”. A visão caimita ora é a do outro ora a do próprio poeta, mas nunca sai de cena. Caim aparece, seja como o próprio poeta, seja em forma dialogal, neste poema intitulado justamente “Inveja”. Essa glória é um artifício, uma tentativa de isenção e soberania que não há. Pois depois do Paraíso confiscado, resta-nos apenas o modelo histriônico e postiço, desenhado em “serpentes de néon”: Next Paradise.
Resta-nos simplesmente o futuro, que não se sabe utópico e exequível ou uma mera boutade para aliviar um remorso sem cura. Em seguida, o desejo de voltar às “nêsperas da infância” (“Rua Rondeau”). Mas o retorno não consente um acesso à veracidade das coisas, pois o tempo passado também é um mundo. Este, por sua vez, é um pião de mentiras, girando na “vista noturna do tempo da minha infância” (“Cartão postal”). O poeta em estado natural está no Éden e ao mesmo tempo caminha pelas ruas e é corrupto. A linguagem é seu Paraíso, mas a sua natureza é modelada no barro impuro da Criação.
Para finalizar o livro, nada melhor do que “Rua Rondeau”. O caminhar leve pela rua, levando “os filhos que não tivera sob o casaco”, faz Fressia sentir todas as virtualidades, o que não houve, mas persiste, entrelaçado eternamente à sua vida. O mito, nesse sentido, também é um misto de virtual e atual, de presença pura e de origem para sempre perdida em um passado irrecuperável. A consciência do poeta é a de que não há reconciliação possível. Mas há a tentativa de ao menos dignificar a sua condição neste mundo manchado:
Ou desde as abóbadas da cidadela,
onde agora me refugio, embalo
os meus filhos não nascidos
e abraço os joelhos
de todas as estátuas na estação central
para que não me expulsem, nem impregnem minha terra com sal estéril
nem maldigam outra vez minha estirpe
para as sete gerações
que vigiam meu poema
e torne a cumprir minha cerimônia.
O tom elegíaco e passional é proporcional ao tema, corolário do livro e de uma poética. E aqui é introduzido um novo leitmotiv: o tema igualmente bíblico da mulher de Loth. Pois senão, de onde surgiram essas referências ao sal como elemento estéril e punitivo? Ao ser convocada a deixar Sodoma, cidade da devassidão, sem olhar para trás, ainda assim a mulher de Loth não pôde se conter e foi transformada em uma estátua de sal. O mesmo mitema de Orfeu é chancelado aqui para o poeta, mas em outra chave. Impelido a sair do Paraíso como a mulher o fora de abandonar Sodoma, o poeta (Caim) se recusa, deliberadamente, a fazê-lo. Ao contrário, afronta o destino que se lhe pesa. Quer a sua cidade, a sua estirpe, a sua vida de volta. Quer livrar-se da culpa eterna, na qual ele, tal como Caim, se vira marcado por “sete gerações”. Os deuses que vigiam o seu poema tornarão a cumprir a cerimônia. Esta é a cerimônia do exílio. E este, a essência da radicação última do poeta e da poesia no mundo.
Abraçado às estátuas e à cidadela, ou seja, às edificações que a maldição o levou a executar. E depois, a amar. Os ingênuos chamam enfaticamente esses signos de “cultura”. Para o poeta, eles são o seu destino, o seu alimento e a sua fatalidade. Sabe que estabeleceu um compromisso com o mal para escrever cada um de seus versos e para erguer cada um dos tijolos de sua cidade. Mas depois, aprendeu a amá-los, como ama a poesia, que é a inscrição de sua expulsão e de seu irremediável destino. Em seu fracasso, sabe-se no mais íntimo de si mesmo. Pois a poesia é pharmakon, remédio e veneno, mysterium tremendum e mysterium fascinans, como reza toda a rigorosa aproximação com o sagrado, que une em si o fasto e o nefasto, a experiência do puro e do impuro, em proporções iguais.
Nesse umbral, vejo Alfredo Fressia, bifronte: Janus. Diz-nos que o passado é irremediável e o futuro não existe. Ao fim e ao cabo, decifro a Esfinge. O que você nos pede, não é o alívio do arrependimento, nem a suspensão da miséria original que nos constitui, a mim, a todos nós e a você, Fressia. Pois ela é o barro fundamental do que somos. O que você pede é que a sua cerimônia nunca deixe de se cumprir. E que sempre saibamos que nossa vida não começou no dia de nosso nascimento, mas muito antes, em uma caminhada a leste do Éden, no primeiro eclipse ou no lado escuro das estrelas. E pode acreditar que assim será, em sua poesia, indefinidamente.