As Idéias
Assinatura do Sol é uma série de poemas assinada por Rodrigo Petronio. Na medida em que os poemas são assinados por alguém, permito-me parodiar o múltiplo poema e dizer que, na verdade, “é uma assinatura do sou”. Mas esse “sou” não é uma expressão subjetivista ou solipsista, mas, o “Eu sou o que sou”, o bíblico Iahweh, indicado pela epígrafe de Edmond Jabès, poeta vinculado à tradição judaica, a qual é uma crítica radical à deificação da natureza e dos homens.
O eu do poeta, seja ele Rodrigo Petronio, Mário Dirienzo, Dora Ferreira da Silva ou Hölderlin é como Jacó naquela sua luta com o Anjo de Iahweh, narrada pelo Gênesis. O eu, nada diante do infinito, mas tudo em face do nada, trava, no campo do mito, sua luta contra o divino, pelo divino. Com efeito, poema é polêmica. O poema é uma visceral expressão da vida, a qual se define pelo conflito, se um deles é luta do eu com Deus, outro é a “teomaquia”, a luta entre deuses. Daí, ao lado do invisível, irrepresentável, inimaginável Deus bíblico, aparecerem nos poemas divindades afro-brasileiras, as quais vinculam-se de forma imediata a forças da natureza. O Deus sem rosto evocado por Jabès é sobrenatural, transcendente, paira acima da imanência e naturalidade dos deuses pagãos.
O pensador italiano Vicenzo Vittielo coloca o poeta Edmond Jabès como um excelente exemplo da experiência hebraica do divino como ausência, experiência que se contrapõe à greco-romana, na qual a Natureza estava cheia de deuses. O hábitat “natural” do Deus judaico é o deserto, o exílio de Seu povo, à espera de um Messias – sempre futuro, nunca presente. Versos de Jabès, citados por Vittielo, ilustram essa visão da invisibilidade de Deus, que toma como “idolatria” toda assimilação de Deus a qualquer criatura. “Ninguém viu Deus, mas as etapas de Sua morte são, para cada um de nós, visíveis.” “O Criador é rejeitado pela criação. Esplendor do universo./O homem se destrói criando.”
Por outro lado, no Ocidente, o Deus do monoteísmo foi assimilado ao Primeiro Motor aristotélico. Essa assimilação passou a designar Deus como a causa das coisas. A famigerada lei de causa e efeito teria, ao longo dos séculos, retirado a vivacidade da vida, transformando os entes encantados em dados objetivos, cuja causa emigrou da onipotência de Deus, radicando-se na prepotência humana.
Contra essa monomania e monotonia (pós-)monoteísta Assinatura do Sol, com a “delicadeza de um deus que morre”, vocifera. Personifica essa peleja o bíblico Can, cuja pele escura traz a assinatura do sol. Can é o filho de Noé que foi por este amaldiçoado, pois viu Noé nu e embriagado. De Can vem os camitas, etíopes, egípcios, os africanos: a raça dos homens escuros e seu culto politeísta. De Can viria tudo o que é negro, os orixás, a noite, a “noite dos tempos”, “do universo origem e suporte”.
O rosto escuro pode ser o rosto de alguém da raça negra, alvo de repulsa e/ou atração. Nós brasileiros temos sempre um rosto negro no nosso rosto, por mais brancos que sejamos, por mais que consideremos o rosto negro uma alteridade, pois essa alteridade é parte de nossas raízes.
Aprofundando a idéia da alteridade como raiz, encontramos Deus como o rosto negro, que se furta aos rosto de todos os matizes, pois o negro é a negação da cor. Por outro lado, o rosto divino contém todos os rostos, assim, o seu rosto é branco, soma de todas as cores. Sendo tanto branco quanto negro, o rosto de Deus é um paradoxo, que não devemos decifrar, mas viver.
Neste diapasão, a polêmica entre monoteísmo e politeísmo perde o sentido: tudo é uno e múltiplo, simultaneamente. Há deuses e/ou os deuses são as faces de Deus. A própria Bíblia, o livro do monoteísmo, diz num salmo de Davi, também citado por Jesus, que os homens são deuses, são deuses porque julgam e são filhos do Altíssimo. E o conceito cristão de Trindade implica uma tripartição de Deus em Pai, Filho e Espírito Santo.
Mas, digressões teológicas à parte, o que importa na existência de quem realmente vive é que o entusiasmo não morra, pois, como assinala Assinatura do Sol, “tudo o que morre é o riso de um deus”, assim como “tudo o que existe nasce da delicadeza de um deus que morre”. Esse deus que morre rindo é o Deus da Graça e não o da Lei, isto é, não é o Deus que julga e paga o salário do pecado – que é a morte –, mas é o Deus que salva, que não exige oferendas, dando-se ele próprio como oferenda. Seria o Deus cristão, que está dentro e fora do cristianismo, assumindo inúmeras formas, do Crucificado a Dioniso.
Nós poetas – no fundo todo ser humano é um poeta – morremos junto com esse deus, como quem, já sendo dia, dormiu na noite anterior, pois “tudo o que existe é sol de um sol mais claro”. A noite é um sol de um sol que ainda é noite. A assinatura do sol é uma queimadura e/ou um aquecimento, um efeito que revela sua causa, mas essa causa é por acaso, é uma ordem que não renega o caos de sua origem. A “eventualidade do ser”, para além e aquém de qualquer conceito, é o que a verve poética, em uníssono com o estro cósmico, revela sempre e sempre, não obstante a fluência inexorável e a influência ferrenha das idéias fixas, que forcejam à exaustão por ajustar o intelecto à coisa, escamoteando o tragicômico qüiproquó que perfaz e desfaz todos os entes.
Deveras! Só um “deus”, minúsculo em sua representação e que assume a condição de feto, deixando-se afetar pelo amor e morte, pode, verdadeiramente, ser DEUS.
Imagens
Até agora, Rodrigo – já me permito o vocativo –, pensei como um filósofo ou um teólogo, ou melhor, como um arremedo desses dois operários do pensamento, a partir deste instante, quero pensar como uma abelha, não uma abelha-operária, mas como um zangão, cuja única função é voar, reproduzindo-se. Espero que meu narcisismo, que vê em cada imagem poética apenas o reflexo do meu rosto vaidoso e do meu estro canhestro, seja aniquilado pelo gozo nupcial e que eu morra risonho e delicado como o deus de Assinatura do Sol, deixando o pólen espraiar-se vida afora, vida adentro.
Eu sigo com os olhos e o coração as linhas, os alinhavados dos poemas. A linha é o prolongamento de um ponto. Em Assinatura do Sol não há ponto-e-vírgula. As vírgulas e os dois pontos, na medida do possível, são eliminados. Esse modo de pontuar o texto tem o condão de privilegiar a coordenação, a analogia, em detrimento da subordinação, do silogismo. Há um magnetismo de imagens: uma imagem se casa com outra. Nos poemas só há casamentos e não causas gerando efeitos. A realidade não é efetiva: “o mundo ainda está para ser criado.”
O casamento é um cruzamento. Linhas, linhagens que se interpenetram, multiplicando-se. O texto é têxtil, trama ou teia de fios: labirinto por onde perambulam Teseu e o Minotauro. Outrossim, o texto é o fio de Ariadne. Eu, também incorporando um monstro que é, ao mesmo tempo, Teseu, Minotauro e Ariadne, sigo os fios de luz e trevas que perfazem a Assinatura do Sol. Perfilho a linhagem de Can, sem abdicar do semítico Deus sem rosto, de rosto-espelho-da-noite onde esplendem as estrelas. “No espelho de terra”, filial do espelho da noite, lavro a minha cara: não me limpo da terra nem me livro da noite.
Das “veias verdes de Ogum” cresce o mundo e peixes grafam tatuagem na pedra. As linhas assinadas pelo sol circulam pelo globo; as linhas ondulam, encaracolam-se e tornam-se corolas de belas flores.
Eu, em meus vôos ociosos de zangão, sempre me deparei com os hibiscos, essas flores em forma de bailarinas, que vermelhas, rosadas, alaranjadas, brancas esplendem em virtude da luz do sol. Eu vi os hibiscos, mas “só a lua conhece o interior dos hibiscos”. A nudez dos entes é o visível, veste-se de pele, pêlos, pétalas, mas a nudez mais nua é a nudez do invisível, vértebra invisível de um cesto de vime, os dedos diáfanos da luz, que luz com mais brilho na escuridão da noite.
A linha da luz costura todas as coisas, forjando o espaço e os símbolos, mas a poesia às vezes se cansa das metáforas e prefere andar nua sem a sua túnica bordada de mitologia, de esférica e estratosférica música ou princípios aristotélicos. O mito, todavia, em razão de seu condão centrípeto, impede que a poesia caia na muda aridez das coisas simplesmente dadas. E o alinhavo e a linhagem de Assinatura do Sol prosseguem: as veias verdes de Ogum fluem num “assobio”, linha melódica que se alonga além de si mesma. Esse assobio é um sinuoso e erétil sibilo; é uma serpente, uma serpente entre rosas, uma agulha que volta a costurar com notas musicais a veste florida dos seres. A serpente que incita à ciência do bem e do mal é uma deidade da qual nasce, precária como o pecado, a beleza, beleza que pode ser a de um par de seios, sóis brancos munidos de duas mamilares luas negras.
São dados zoológicos: o zangão não produz mel nem tem ferrão, sua função na colméia limita-se à reprodução. Para ele a flor é uma genitália, a genitália da abelha-rainha. Sem o ferrão guerreiro, sem o mel operário, o zangão pode ser espelho do poeta, que reproduz o mundo mediante metáforas, hauridas das musas e da mãe das musas – a Memória.
“Deus morre para que a manhã se levante. Erga sua toalha e banhe nossos corpos nus./ Para que toda a excentricidade retorne ao destino do mel. A abelha trabalhe.” Esses versos de Assinatura do Sol retornam à idéia do “deus que morre” e, segundo Jabès, assim como a criação rejeita o Criador, “o homem se destrói criando”. O gozo procriador do zangão é letal. O poeta é um deus, um demiurgo, que morre na sua obra, excentricidade sibilina, a qual está imbuída de fel, mas que desemboca na simplicidade e na doçura do “destino do mel”, que nutre a colméia humana, a colméia cósmica.
Destino do mel – destino de mel. Gostei do sabor que você extraiu do Fado, Rodrigo. Se nossa sina sabe a dor e a angústia, um mel maior é aquilo que alimenta a plenitude da vida, para além do inevitável azedume que nos tiraniza. A vida é agridoce, e quem é sábio agradece.
Encerro estas linhas como “a pele que fecha sua pupila”, como um deus falho, que morre, para que a existência em êxtase insista. Eu não estou nestas linhas, como você, Rodrigo, não está nos “seus” poemas. A criação nos rejeita, nos destrói, todavia, Deus está conosco, neste calvário – na Ressurreição.
Assinatura do Sol é uma série de poemas assinada por Rodrigo Petronio. Na medida em que os poemas são assinados por alguém, permito-me parodiar o múltiplo poema e dizer que, na verdade, “é uma assinatura do sou”. Mas esse “sou” não é uma expressão subjetivista ou solipsista, mas, o “Eu sou o que sou”, o bíblico Iahweh, indicado pela epígrafe de Edmond Jabès, poeta vinculado à tradição judaica, a qual é uma crítica radical à deificação da natureza e dos homens.
O eu do poeta, seja ele Rodrigo Petronio, Mário Dirienzo, Dora Ferreira da Silva ou Hölderlin é como Jacó naquela sua luta com o Anjo de Iahweh, narrada pelo Gênesis. O eu, nada diante do infinito, mas tudo em face do nada, trava, no campo do mito, sua luta contra o divino, pelo divino. Com efeito, poema é polêmica. O poema é uma visceral expressão da vida, a qual se define pelo conflito, se um deles é luta do eu com Deus, outro é a “teomaquia”, a luta entre deuses. Daí, ao lado do invisível, irrepresentável, inimaginável Deus bíblico, aparecerem nos poemas divindades afro-brasileiras, as quais vinculam-se de forma imediata a forças da natureza. O Deus sem rosto evocado por Jabès é sobrenatural, transcendente, paira acima da imanência e naturalidade dos deuses pagãos.
O pensador italiano Vicenzo Vittielo coloca o poeta Edmond Jabès como um excelente exemplo da experiência hebraica do divino como ausência, experiência que se contrapõe à greco-romana, na qual a Natureza estava cheia de deuses. O hábitat “natural” do Deus judaico é o deserto, o exílio de Seu povo, à espera de um Messias – sempre futuro, nunca presente. Versos de Jabès, citados por Vittielo, ilustram essa visão da invisibilidade de Deus, que toma como “idolatria” toda assimilação de Deus a qualquer criatura. “Ninguém viu Deus, mas as etapas de Sua morte são, para cada um de nós, visíveis.” “O Criador é rejeitado pela criação. Esplendor do universo./O homem se destrói criando.”
Por outro lado, no Ocidente, o Deus do monoteísmo foi assimilado ao Primeiro Motor aristotélico. Essa assimilação passou a designar Deus como a causa das coisas. A famigerada lei de causa e efeito teria, ao longo dos séculos, retirado a vivacidade da vida, transformando os entes encantados em dados objetivos, cuja causa emigrou da onipotência de Deus, radicando-se na prepotência humana.
Contra essa monomania e monotonia (pós-)monoteísta Assinatura do Sol, com a “delicadeza de um deus que morre”, vocifera. Personifica essa peleja o bíblico Can, cuja pele escura traz a assinatura do sol. Can é o filho de Noé que foi por este amaldiçoado, pois viu Noé nu e embriagado. De Can vem os camitas, etíopes, egípcios, os africanos: a raça dos homens escuros e seu culto politeísta. De Can viria tudo o que é negro, os orixás, a noite, a “noite dos tempos”, “do universo origem e suporte”.
O rosto escuro pode ser o rosto de alguém da raça negra, alvo de repulsa e/ou atração. Nós brasileiros temos sempre um rosto negro no nosso rosto, por mais brancos que sejamos, por mais que consideremos o rosto negro uma alteridade, pois essa alteridade é parte de nossas raízes.
Aprofundando a idéia da alteridade como raiz, encontramos Deus como o rosto negro, que se furta aos rosto de todos os matizes, pois o negro é a negação da cor. Por outro lado, o rosto divino contém todos os rostos, assim, o seu rosto é branco, soma de todas as cores. Sendo tanto branco quanto negro, o rosto de Deus é um paradoxo, que não devemos decifrar, mas viver.
Neste diapasão, a polêmica entre monoteísmo e politeísmo perde o sentido: tudo é uno e múltiplo, simultaneamente. Há deuses e/ou os deuses são as faces de Deus. A própria Bíblia, o livro do monoteísmo, diz num salmo de Davi, também citado por Jesus, que os homens são deuses, são deuses porque julgam e são filhos do Altíssimo. E o conceito cristão de Trindade implica uma tripartição de Deus em Pai, Filho e Espírito Santo.
Mas, digressões teológicas à parte, o que importa na existência de quem realmente vive é que o entusiasmo não morra, pois, como assinala Assinatura do Sol, “tudo o que morre é o riso de um deus”, assim como “tudo o que existe nasce da delicadeza de um deus que morre”. Esse deus que morre rindo é o Deus da Graça e não o da Lei, isto é, não é o Deus que julga e paga o salário do pecado – que é a morte –, mas é o Deus que salva, que não exige oferendas, dando-se ele próprio como oferenda. Seria o Deus cristão, que está dentro e fora do cristianismo, assumindo inúmeras formas, do Crucificado a Dioniso.
Nós poetas – no fundo todo ser humano é um poeta – morremos junto com esse deus, como quem, já sendo dia, dormiu na noite anterior, pois “tudo o que existe é sol de um sol mais claro”. A noite é um sol de um sol que ainda é noite. A assinatura do sol é uma queimadura e/ou um aquecimento, um efeito que revela sua causa, mas essa causa é por acaso, é uma ordem que não renega o caos de sua origem. A “eventualidade do ser”, para além e aquém de qualquer conceito, é o que a verve poética, em uníssono com o estro cósmico, revela sempre e sempre, não obstante a fluência inexorável e a influência ferrenha das idéias fixas, que forcejam à exaustão por ajustar o intelecto à coisa, escamoteando o tragicômico qüiproquó que perfaz e desfaz todos os entes.
Deveras! Só um “deus”, minúsculo em sua representação e que assume a condição de feto, deixando-se afetar pelo amor e morte, pode, verdadeiramente, ser DEUS.
Imagens
Até agora, Rodrigo – já me permito o vocativo –, pensei como um filósofo ou um teólogo, ou melhor, como um arremedo desses dois operários do pensamento, a partir deste instante, quero pensar como uma abelha, não uma abelha-operária, mas como um zangão, cuja única função é voar, reproduzindo-se. Espero que meu narcisismo, que vê em cada imagem poética apenas o reflexo do meu rosto vaidoso e do meu estro canhestro, seja aniquilado pelo gozo nupcial e que eu morra risonho e delicado como o deus de Assinatura do Sol, deixando o pólen espraiar-se vida afora, vida adentro.
Eu sigo com os olhos e o coração as linhas, os alinhavados dos poemas. A linha é o prolongamento de um ponto. Em Assinatura do Sol não há ponto-e-vírgula. As vírgulas e os dois pontos, na medida do possível, são eliminados. Esse modo de pontuar o texto tem o condão de privilegiar a coordenação, a analogia, em detrimento da subordinação, do silogismo. Há um magnetismo de imagens: uma imagem se casa com outra. Nos poemas só há casamentos e não causas gerando efeitos. A realidade não é efetiva: “o mundo ainda está para ser criado.”
O casamento é um cruzamento. Linhas, linhagens que se interpenetram, multiplicando-se. O texto é têxtil, trama ou teia de fios: labirinto por onde perambulam Teseu e o Minotauro. Outrossim, o texto é o fio de Ariadne. Eu, também incorporando um monstro que é, ao mesmo tempo, Teseu, Minotauro e Ariadne, sigo os fios de luz e trevas que perfazem a Assinatura do Sol. Perfilho a linhagem de Can, sem abdicar do semítico Deus sem rosto, de rosto-espelho-da-noite onde esplendem as estrelas. “No espelho de terra”, filial do espelho da noite, lavro a minha cara: não me limpo da terra nem me livro da noite.
Das “veias verdes de Ogum” cresce o mundo e peixes grafam tatuagem na pedra. As linhas assinadas pelo sol circulam pelo globo; as linhas ondulam, encaracolam-se e tornam-se corolas de belas flores.
Eu, em meus vôos ociosos de zangão, sempre me deparei com os hibiscos, essas flores em forma de bailarinas, que vermelhas, rosadas, alaranjadas, brancas esplendem em virtude da luz do sol. Eu vi os hibiscos, mas “só a lua conhece o interior dos hibiscos”. A nudez dos entes é o visível, veste-se de pele, pêlos, pétalas, mas a nudez mais nua é a nudez do invisível, vértebra invisível de um cesto de vime, os dedos diáfanos da luz, que luz com mais brilho na escuridão da noite.
A linha da luz costura todas as coisas, forjando o espaço e os símbolos, mas a poesia às vezes se cansa das metáforas e prefere andar nua sem a sua túnica bordada de mitologia, de esférica e estratosférica música ou princípios aristotélicos. O mito, todavia, em razão de seu condão centrípeto, impede que a poesia caia na muda aridez das coisas simplesmente dadas. E o alinhavo e a linhagem de Assinatura do Sol prosseguem: as veias verdes de Ogum fluem num “assobio”, linha melódica que se alonga além de si mesma. Esse assobio é um sinuoso e erétil sibilo; é uma serpente, uma serpente entre rosas, uma agulha que volta a costurar com notas musicais a veste florida dos seres. A serpente que incita à ciência do bem e do mal é uma deidade da qual nasce, precária como o pecado, a beleza, beleza que pode ser a de um par de seios, sóis brancos munidos de duas mamilares luas negras.
São dados zoológicos: o zangão não produz mel nem tem ferrão, sua função na colméia limita-se à reprodução. Para ele a flor é uma genitália, a genitália da abelha-rainha. Sem o ferrão guerreiro, sem o mel operário, o zangão pode ser espelho do poeta, que reproduz o mundo mediante metáforas, hauridas das musas e da mãe das musas – a Memória.
“Deus morre para que a manhã se levante. Erga sua toalha e banhe nossos corpos nus./ Para que toda a excentricidade retorne ao destino do mel. A abelha trabalhe.” Esses versos de Assinatura do Sol retornam à idéia do “deus que morre” e, segundo Jabès, assim como a criação rejeita o Criador, “o homem se destrói criando”. O gozo procriador do zangão é letal. O poeta é um deus, um demiurgo, que morre na sua obra, excentricidade sibilina, a qual está imbuída de fel, mas que desemboca na simplicidade e na doçura do “destino do mel”, que nutre a colméia humana, a colméia cósmica.
Destino do mel – destino de mel. Gostei do sabor que você extraiu do Fado, Rodrigo. Se nossa sina sabe a dor e a angústia, um mel maior é aquilo que alimenta a plenitude da vida, para além do inevitável azedume que nos tiraniza. A vida é agridoce, e quem é sábio agradece.
Encerro estas linhas como “a pele que fecha sua pupila”, como um deus falho, que morre, para que a existência em êxtase insista. Eu não estou nestas linhas, como você, Rodrigo, não está nos “seus” poemas. A criação nos rejeita, nos destrói, todavia, Deus está conosco, neste calvário – na Ressurreição.