segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Pedra de Luz: o corpo como razão - Mário Dirienzo


O objetivo destas linhas é analisar o livro Pedra de Luz, de Rodrigo Petronio. Pedra, nível elementar da matéria, contrasta com a luz, que seria o seu aspecto mais etéreo. Encarando este contraste entre a intangível luz e a dureza da pedra, Petronio procura unir o pétreo ao luminoso e atingir aquilo que Otto denominou numinoso, o divino para além – e para aquém – de suas conceituações filosóficas ou teológicas, dando ao sagrado um caráter livre e lúdico, apanágio da grande poesia. Neste diapasão, poderíamos dizer que Pedra de Luz é uma travessia da Metafísica à “meta física”. Tal assertiva, todavia, não deve ser entendida como manifestação de um materialismo “naturalista”. A meta “física” aqui não se refere à Natureza elaborada pelos laboratórios de nosso saber técnico-científico, mas, sim, à Physis, tal qual os gregos pré-socráticos a concebiam. Essa concepção de Natureza foi, modernamente, retomada por poetas e pensadores como Hölderlin, Rilke, Nietzsche e Heidegger.
Nietzsche disse que “o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”, “Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão.” Acredito que esses pensamentos podem nos servir de bússola para singrar o caudaloso leito de Pedra de Luz. Os pensamentos de Nietzsche confluem com as epígrafes que introduzem a obra, nas quais assoma o vazio no âmago das coisas de que falou Lorca, bem como o “Aberto” evocado por Rilke, que seria a verdade vista sem as delimitações conceituais. “Até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza”, frase de Herberto Helder que também serve de epígrafe para o livro, é um mote que pontilha o livro de ponta a ponta. Digamos que Deus e a Metafísica se destroem no Corpo, na Grande Razão, pois “tudo o que tenho: corpo./O declive onde a consciência se abisma e se apaga./Depois nada.”
Com efeito, Pedra de Luz trilha as plagas do niilismo, mas nele não se detém, pois “a terra não acaba porque a alma afunda”. Sob os sortilégios do Aberto, encontramos no livro momentos de grande lirismo nos quais “em um beijo revivemos, eu e tu, todo o futuro”. E a poesia se encarna não pelo seu “dom” e sua “mecânica precária”, mas é “pelos trabalhos do amor reinventada”: a poesia se faz pessoa, e a vida surge como algo bom. Há, deveras, em Pedra de Luz a evocação da feiúra terrível das coisas, bem como da beleza terrível das coisas, na qual a vida, seu viço, seu fascínio, “só se empenha em se vingar de tudo o que ainda se diz vivo”. Mas há, também, espaço para essa beleza das coisas que decorre da bondade: órbita platônica onde o Bem coincide com o Belo: “parto de elementos que encontraram o amor mais puro”.
Rompendo o “eterno retorno” do pó, da cinza e do Nada, “o pergaminho por onde escoa o rio futuro”. O futuro!, eis a dimensão messiânica que, para além da “ordem e progresso”, rebrilha em Pedra de Luz.
O corpo de que fala Rodrigo Petronio não se circunscreve ao seu corpo individual, tampouco à mão que assina um poema, pois, se para o mundo editorial, autoral, literário, social, humano, o signatário dos poemas de Pedra de Luz é Rodrigo Petronio, em última instância, quem assina os textos é “a paisagem que se move”. Com efeito, a metafísica da meta física é a vivente Physis, que não se confina às maquinações e aos mecanismos, mas se espraia na paisagem, nos signos assinantes desse organismo que é o universo, o que, porém, é “uma morte contínua e sem remédio parida pelo ventre do nada”.
Deveras, se a Physis é vivente é, outrossim, morrente. E o mundo humano “sobre-natural desnaturado”, encara tanto a vida quanto a morte com os “signos do desterro de um mundo interditado”. O azeviche do piche é a noite chã que rebaixa os céus ao asfalto e coloca a história e a sórdida tinta dos jornais debaixo do sovaco de piche de um transeunte, do desdentado sorriso dos pedintes acrobatas, que povoam os semáforos das grandes cidades, onde a vida vegeta nas gravatas que enfocam os homens para além das cartas de tarô, nas cédulas e celulares de um mundo desencantado.
Exilado dos sortilégios de Gaia, o mundo humano aparece em Pedra de Luz como uma Waste Land eliotiana. Daí, haver no livro linhas de indignação profética, que, se encontramos em Eliot e em Blake, o qual se bate contra o Urizen – “our reason”, nossa razão calculadora, capitalista – encontramos antes nos profetas bíblicos, como Isaías. De modo que o feroz afeto pagão pela Mãe-Terra une-se ao clamor judaico-cristão – messiânico e profético – pela terra, que se tornou maldita pela ação do homem e que, por isso, deve ser redimida.
Algo nos transcende: a Terra, os céus acima, o divino. O Homem não é a medida de todas as coisas. Somos mortais. Somente mediante nossa mortalidade temos acesso a Deus. A ciência e o mito têm uma tendência centrípeta, isto é, fixam-se em certos pontos em prol da exatidão, em detrimento da transcendência, a qual, sendo transcendência, não é nunca uma imanência. Assim, a realidade capturada pela ciência ou pelo mito – pelo mito da ciência ou pela ciência do mito – jamais é a realidade última, transcendente, mas, sempre, uma realidade “penúltima”. E a realidade última, transcendente, nunca se ultima. Dessa forma, o poeta, indigente assumido, premido pela pobreza do amor, esfarrapado, desnudo diante da morte, é o guardião dessa realidade última transcendente, que se revela no passamento de um momento, no eco de uma voz que é deveras silêncio. Em “Eco”, Rodrigo assume-se “enquanto” poeta, aliás, eco. O poeta não existe como autor – isso é fetiche autoral, um “direito”, um direito humano, demasiado humano. O poeta é o eco do poema e/ou da musa. Assumir-se “enquanto” poeta é encarnar o transitório advérbio “enquanto” em quanto se toca – enquanto ruem o objeto e seu sujeito. O ato poético é um suicídio – um suicídio branco, sem o óbvio e bruto óbito; um suicídio transparente, sublimado, mergulhado na opacidade do desejo e da vida. Como o suicídio, o poema é um ato de vontade; como o suicídio, tal vontade é “metafísica”, ultrapassa as raias do desejo e não comete o erro, apontado por Rilke, de distinguir bem os vivos e os mortos.
Ser um eco arrasa o ego, que emula por ter voz própria. Narciso enamora-se da própria imagem: “A flor congela no espelho e o ser é igual a si mesmo.” O narcisismo é saudável. E sem narcisismo não se faz um poema. Mas só com narcisismo, também não se faz um poema. O poeta emula por outros rostos, não apenas aquele que está fixado nas águas paradas de um lago. “Muitos e muitos eus se despregam de minhas dobras.”
Assim como rilkeanamente os mortos não são tão distintos dos vivos, os céus não são tão distintos da Terra. O mundo sublunar e o mundo-da-lua são telúricos e lunáticos. O cerne da fruta está na lua, em seus estros e mênstruos, favorecendo ou não as messes. E a estrela emula o verme, pois em seu cerne há um verme, um verme enorme – o buraco negro, cova sideral do galáctico funeral. Sim, conhecer é saber que o ser é para a morte. Sim!, mas conhecer a fundo é “lembrar o que não tem fim nem começo”, pois a eternidade é o que fica em quanto a vida rua. A eternidade não é um museu; é a musa, a musa nua, despida até de sua alma, mas conservando o Aberto, a memória além do lembrado, uma saudade além da “saüdade”, isto é, não um arcaísmo de um presente já passado, mas o Arcaico que é o Aberto, aquilo que não sendo um dado ou uma data, precede e sucede tudo o que é dado no tempo e no espaço, ou seja, que é evidente, que é – visível. O Aberto é a recordação do invisível, no qual a visibilidade se dá como uma clareira que eclode numa espessa mata.
O “amor do real” – amor fati – faz com que o poeta não veja ou vislumbre nada atrás das aparências. Mas, sob o signo do Aberto, “a flor que não se explica e que apenas explode em seu pólen” é “infinita”. Sempre a Physis, meta física, mas metafísica dentro da física. Sem arte até Deus torna-se prosaico como um guarda-chuva. Com arte, o vazio de Deus é divino: é o poço onde, pelo reflexo, a lua começa a ser real.


Entre Amarelo e Amaranto: A Sabedoria

Na pg. 102 de Pedra de Luz, deparamo-nos com um poema que pode ser o emblema do saber e do sabor do livro. “Meditação à margem do Rio Amarelo”, aliás, foi colocado na contracapa de Pedra de Luz, fato que denota o caráter emblemático do texto.
O Rio Amarelo – Huang-Ho – situa-se na China. E a melancólica meditação feita às suas margens plácidas é ocidental e exílica. O molde do poema é “Babel e Sião”, de Camões, redondilha na qual há os famosos versos: “Sôlobos rios que vão/Por Babilônia, me achei,/Onde sentado chorei/As lembranças de Sião/E quanto nela passei.” “Babel e Sião”, por sua vez, inspira-se no Salmo bíblico, onde o salmista diz: “Às margens dos rios de Babilônia nós sentávamos e chorávamos,/ lembrando-nos de Sião./Nos salgueiros que lá havia/pendurávamos as nossas harpas.”
O salmo descreve a situação do povo judeu, que foi conquistado pelos babilônios e levado como escravo. Camões espiritualiza a situação e coloca Babel como o mundo material dos mortais e Sião como a sua verdadeira pátria, que é o Céu. Nesta ordem de idéias, poderíamos dizer em relação a “Meditação à margem do Rio Amarelo”, que, como tudo em um poema, a China, o Rio Amarelo podem ser metáforas, isto é, estarem para além de sua posição geográfica, situados num “Oriente ao oriente do oriente”, num nascente ontológico: uma Natureza auroral, mãe de tudo e todos.
Às margens – já excluído – dessas águas uterinas, ancestrais, o poeta pranteia o destino de seu mundo, o mundo ocidental, o mundo inteiro, já ocidentalizado, já globalizado. Neste diapasão, o rio de uma inexistente China é o amarelo de uma folha seca, de um rosto sem viço, vítima de hepatite, do ouro sórdido que faz o mar virar sertão.
Desde os profetas bíblicos ao nosso Antônio Conselheiro, passando pela volta de Dom Sebastião, o Dia do Juízo e o Apocalipse são arquétipos que se impõem à nossa sensibilidade. Um acerto de conta de tudo o que foi feito pelos homens, a ser avaliado por uma outra instância. Essa outra instância é o Livro. O dito de Mallarmé, de que o mundo foi feito para tornar-se livro, aparece no poema de maneira indefinida. Pode ser uma predatória empreitada de transformar árvores em celulose; árvores em papel, engendrando a aridez dos desertos físicos e metafísicos, mas também pode ser o início – ou o almejado fim – da sabedoria.
Se da Árvore da Ciência do Bem e do Mal brotam livros, da Árvore da Vida brotaria o Livro da Vida, um livro vivo sem as letras mortas que compõem os outros livros: livros-caixa, livros-caixão.
Como os chorões na Babilônia onde o choroso salmista pendurou sua lira, viceja junto com o pranto do poeta à beira do Rio Amarelo, uma planta chamada amaranto. A etimologia do vocábulo “amaranto” está ligada ao adjetivo “imarcescível”, ou seja, aquilo que não murcha. O paradoxal amaranto do poema é uma permanente geração de rugas, geração de degenerescência: perpetuação do crepúsculo, adensamento de uma noite transfigurada em dia radioso.
O Ocidente é o lado do crepúsculo, do “ocaso”. O ser do Ocidente é para a noite, para a morte. Do amaro amaranto ocidental nascem seres senis, rejuvenescidos por acósmica cosmética. A opulência do Ocidente é indigência. Prometéico, fáustico, o Ocidente tem a sua sina no infortúnio decorrente da fortuna, do fogo roubado aos deuses, do saber com o ressaibo de bem-e-mal, do tudo-querer-e-tudo-perder: de um “risco” que se arrisca até a ser banal e transformar os organismos em mecanismos.
Mas, enfim, o mar vai virar sertão, o sertão vai virar mar? Tudo será livro! Mas até a Bíblia, o Livro dos Livros, diz, como todas as letras, que “a letra mata”. Novamente evocando Rilke, poderíamos dizer: “tudo é livro e flor”. Sim, talvez tudo deva ser livro, um livro que é flor, flores e letras nos jardins, flores e símbolos nas florestas, flores mesmo nos desertos, maravilhosas flores que vicejariam nos cactos, parindo poemas sumarentos. E o mar como signo de morte seria absorvido pelo Rio da Vida às margens da Jerusalém Celeste. Daí, o amaranto geraria corpos lisos, lépidos, lindos. E os salmistas sacariam as liras de salgueiros que, então, só chorariam de alegria.
Contrapõe-se ao tudo-será-livro de Mallarmé a profecia de Jorge Luis Borges: “Ignoro se a música sabe desesperar da música e o mármore do mármore, porém a literatura é uma arte que sabe profetizar o tempo em que terá emudecido, enfurecer-se com a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim.” A trágica sabedoria a que “Meditação à margem do Rio Amarelo” chega é a de uma espécie de Midas, que percebe que tudo o que toca tem dois mil anos – a pátina ou a áurea sucata da era cristã, que chegará ao seu fim.
Assim como a literatura, os “Povos do Livro” também predizem o seu fim e o deste céu e desta terra. O termo grego apocalipse significa “revelação”. O Apocalipse, o fim das eras, seria, pois, a revelação do nosso ser, enfim, a “paz”. A paz da pá de cal; a paz de cemitério? Ou uma paz que excede toda compreensão? A paz – a paz como horizonte.
À revelia da noite, no horizonte, o luminoso e ígneo rio amarelo do sol assina o ser dos mortais com a tinta da luz e a pena da vida: pena de pluma – da Graça; pena de chumbo – da Lei. A sombra dos Dez Mandamentos; a luz dos Mandamentos serem um só: o Amor.


O Ético e o Estético


Os Dez Mandamentos podem ser sintetizados em dois, aliás, em um. Amar a Deus acima de todas as coisas; amar o próximo como a nós mesmos. O Amor une, unifica os demais mandamentos.
“O amor não se sustenta”, mote do poema “Musgo sombra ave esfera”. Com efeito, o amor é “insustentável”. O amor não é sustentado pela usura nem pela prece interesseira. O amor está sempre e só – à flor da pele. De fato, a pele macia da juventude é manuseada pelas mãos de Eros. A pele franzida da decrepitude é tocada pelas mãos de Ágape. E a pele das mãos que se apertam num pacto é amparada pelas mãos da Amizade.
A esfera – mamária, alta ou baixamente ventral, glútea, terrestre – nos impele “a crer que nada há além da pele”. De novo, a metafísica como meta física. Mas é por isso que o Verbo se faz Carne – e habita entre nós.
Aos Dez Mandamentos contrapõem-se os “desmandamentos”, os desmandos da cobiça e da usura.
Os humanos, ricos ou pobres, querem sempre justificar o seu ser. As frutas, verdes, maduras ou podres, apodrecem, sem procurar resposta. Elas estão postas; são res (coisas) postas: são em si mesmas. Mas os homens sempre apostam: assumem o risco de ser isto ou aquilo – assumem o riso de ser.
O poeta é miserável, mortal assumido, épica esfarrapada, lira fagocitada pelos finos ramos do crocodiliano chorão babilônico, mas o poema “ignora nossa miséria e a nossa espada”.
Ah, a irresponsabilidade do poema, cantada belamente no poema “Rosto esculpido pelas rosas”. A metafísica meta física espelha uma “outra vida”, mas sendo física, essencialmente física, Verbo-feito-Carne, é apenas o intangível dos corpos diáfanos de uma noite lúgubre, lúbrica, lúdica: uma noite sensual e sagrada.
Ah, suspira o poema: quem me dera que o mundo possuísse somente uma dimensão estética e que o seu mapa só conduzisse ao poema “Mapa”, trajeto feito de lampiões perdidos na noite dos tempos, da moldura comida de um retrato, na cidade que some sob os olhos e a sola dos sapatos e que se perpetua no estalo dos galhos, que geram flores, frutos e versos.
Ah, com mais ardor suspira o poema: quem me dera que essa cidade estética se esticasse pela eternidade, além de bem e além de mal, mas o Decálogo se impõe e, à revelia do poema, “não podemos ignorar a nossa miséria.” Com efeito, pelas ruas em que se anda, no Brasil ou na África, sempre se está em “Ruanda”, na qual se coroam com espinhos os rostos esculpidos pelas rosas, cujos membros decepados, no quebra-cabeças do menino de pistola, formam – por mais inverossímil que pareça – um homem.


O Sacrifício, Quetzalcoatl


O tema – e anátema – do sacrifício também se perfila nas linhas de Pedra de Luz, não só como incidente, mas como rito, como premeditação. Tal desenvolvimento temático, deveras, está prenunciado pelas epígrafes que encabeçam o livro, que indicam o âmago das coisas como o vazio, o Aberto, ou seja, um âmbito onde todos os entes são sacrificados, até mesmo Deus – destruído pelo extremo exercício da beleza, no lapidar dizer de Herberto Helder.
Transpondo as lindes dos dilemas éticos, bem como a pletora e a centrifugação das sensações, que caracterizam o estágio estético da existência, o sacrifício aponta para a dimensão religiosa propriamente dita. Ainda que nenhum deus seja enunciado, o holocausto aponta para uma vitória do ser – o inarticulado – sobre todo e qualquer ente – articulação.
A grande poesia, sem vergonha ou medo, assume as suas influências. Em Pedra de Luz de Petronio há a ressonância de pedra e sol, constante da obra de Octavio Paz e da mitologia pré-colombiana que a poesia do autor mexicano traz em seu ubérrimo bojo. Quetzalcoatl, divindade asteca, aparece no poema homônimo como emblema do homem americano. No Poema, há também referências a Drummond e ao seu “Poema de Sete Faces” à sua “Máquina do Mundo”, engrenagens em que estamos, as quais, ao fim e ao cabo, nos engolem.
Sacrifício é desperdício: os primeiros frutos da colheita, o primogênito pertencem aos deuses, somente as coisas segundas, as sombras, os simulacros são dos homens. Neste diapasão, Quetzalcoatl, alada serpente, tanto telúrica quanto celeste, equivale a Saturno – o deus que encarna o tempo – e é a divindade que surge onipotente, devorando os próprios filhos e fazendo da “história do futuro” os restos que se amontoam no passado. A arte, seu artifício, escaparia a essa verdade. A arte é uma verdade? É uma mentira? O esteta empedernido pode, com fleuma, lavar as mãos, mas no coração do poeta a inquietude do ser ou não ser, do morrer, dormir e – talvez sonhar.
Em Rastros do Sagrado, o autor italiano Umberto Galimberti coloca o sacrifício como o “mediador entre o sagrado e o profano”, “entre os mortais e os deuses”. A arte como qualquer outra articulação pressupõe o inarticulado, assim como a razão pressupõe a loucura. Os artifícios da articulação implicam a supressão do inarticulado: se a ordem nasce do caos, vige apenas e tão-somente no aniquilamento do caos. Ocorre que a loucura está nas coisas, à espreita. Não há lei que resista ao poder da desarticulação. A lei tenta colocar o caos debaixo do tapete, mas o tapete mágico voa à revelia da vigilância da dona-de-casa, trazendo as mil-e-uma-noites para o solar do meio-dia. Temos todos relações habituais com as coisas. Assevera, pois, Galimberti que “o sacrifício subverte uma ordem, põe fim a laços habituais que costumeiramente temos com as coisas, não para estabelecer outros, mas para criar aquele vazio que as cinzas do sacrifício bem representam como distância que nos separa das relações aparentemente inevitáveis que temos com a realidade.”
Neste diapasão, é oportuno trazer à colação mais um poema de Pedra de Luz, “Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto”. Neste poema, Rodrigo Petronio vê o mais cotidiano hábito brasileiro – o de tomar um cafezinho – sob o prisma sacrificial, no qual, além e aquém do brilho, fulge a parte velada da Verdade, pois o que vem à luz nas relações cotidianas pressupõe o que jaz à sombra. Sombras, trevas, podem ser signo do Mal ou do que simplesmente não se manifesta, sendo inefável, inenarrável, fora de qualquer preceito, conceito ou constatação, ou, tomando de empréstimo as palavras de Umberto Galimberti, no sacrifício, no “sacrifício vivo” que é o enigma do poema, desdobra-se “o enigma da própria vida naquilo que ela tem de irrepresentável”, pois “o mundo aberto pelo sacrifício opõe-se ao mundo real como o excesso festivo à moderação do dia útil, como a embriaguez à lucidez.”
Blake viu o mundo num grão de areia, Rodrigo Petronio vê num punhado de açúcar – açúcar negro, mascavo – galáxias pulverizadas, deterioradas, imergindo na infinita noite de uma xícara de café. Essa noite, avesso da luz, nos acompanha, assim como o silêncio acompanha e pontua o som.
Na medida em que, num lapso-de-tempo, está o Tempo, um cotidiano hábito, como tomar um cafezinho, evoca a dissolução do cosmos. A doçura do açúcar é imolada no pavilhão de uma xícara, assim como uma estrela é engolida pelo buraco negro. A vida é nutrição, o que implica destruição. Viver é matar ou morrer; matar e morrer.
Com efeito, viver seria um crime, só uma existência nirvanizada, acima dos ciclos de vida e morte, seria sã, santa – sagrada. Os rituais civilizados sempre encobrem o caráter criminoso, assassino, da vida em sua essência. O conteúdo das normas erra como música amorfa regida por uma letal batuta, que transfigura o monstro em maestro.
Reiterando a idéia do poema como sacrifício, não há como fugir do sentido eucarístico. Há sempre uma hóstia – o sentido original do termo designava a vítima expiatória oferecida ao deus – que agrega em seu ser a hostilidade do mundo. Todos somos hóstias expostas à voracidade do mundo. Mas Deus – eis a verdade cristã – fez-se hóstia e foi devorado pelos nossos pecados.
O poeta, sacerdote heterodoxo, aliás, sobremaneira ortodoxo, assume ter devorado Deus, confessa o crime que imbui o ritual civilizado, pois a Lei, em sua dinâmica contraditória, nasce da violência, violência que transborda e, violando a violação primeva, cria a ordem, o que resplandece e ofusca o caos. Sem as cores do escuro Caos não há Poema; sem o preto no branco não há a clara, concisa e precisa Lei. No princípio, era o Poema, verve metaforizante que semeava no Campo do Possível, no qual nascem plantas dadas, gêneros, espécies, sins, nãos, senões a serem evitados – Lei, à revelia do Poema.
Se luz é sinônimo de ser, do que aparece, vem a ser, as trevas são a ausência de ser, de procriação. A “menstruação da luz” evocada no poema opõe-se ao “estro da luz”, ao “cio da luz”. Na menstruação, não há fertilidade, a semente não vinga: é o lado leteu da Verdade.
O mito de Narciso também pode lançar luz sobre o texto. Digamos que, em “Manhã negra, açúcar, bebo o orvalho de um rosto”, há um Narciso às avessas, possuidor de um rosto divino, celeste, de rocio vindo do céu, dando-se como oferenda à Terra. É um rosto sem feições que se perde no negror da xícara de café, a qual é um espelho devorador, desdobrado na boca de quem toma o café, noite na qual estrelas, como grãos de açúcar, estão dissolvidas. De forma que o ensimesmamento deste rosto, que é – creio – o rosto de Deus, não é o mesmo ensimesmamento de Narciso. Enamorado da própria imagem, Narciso se afoga no lago que a refletia. Um rosto de orvalho não tem imagem. Deus, não sendo um ídolo, não idolatra nem a si mesmo. Seu destino sacrificial é eternamente sair de si, encarnar-se na matéria – encarnar-se na nossa miséria, que, assim, se eleva ao Absoluto.
“Sei que Deus sem mim não vive um só momento./ Ele expiraria com meu passamento”, disse Angelus Silesius. Esse mim, todavia, não vem de um eu narcisista; é expressão daquilo que Heidegger denominou Dasein, o ser – aí, no mundo, para a morte. Mas essa morte morre neste instante: o Tempo é eterno.


Inscrições na Água, Assinaturas de Sol e Lua, Livro Coberto por Pele e Espírito

No trânsito sempre paradoxal entre Physis e Metafísica, o tema do Livro punge como uma dor e uma flor.
“Soneto Antigo” é um poema em que Rodrigo demonstra sua maestria no uso dessa forma antiga e sempre atual da poesia. Se nos versos livres e polirrítmicos o poeta evoca a pletora de sensações e sua inerente centrifugação, nos sonetos e formas fixas, brinda-nos com a concisão, a lapidar expressão do lema, do emblema.
O ato de engendrar um poema é uma cópula solitária, intransitiva, incesto do si consigo mesmo. O poema é o testemunho de que não conhecemos mais o Uno, pois o lastro do Outro se alastra sem cessar. O poema é um mísero milagre, uma magia sem eficácia, um monólogo que arde pelo impossível diálogo, uma prece a um deus que está suspenso na descrença e no qual, mesmo assim, se crê. Esse mortal que se chama poeta parece dizer: “eu não creio no que creio”; duvido de tudo, nem sequer descreio, permaneço no impasse, mas danço – calado. Todavia, o poema em seu silêncio fala “pelos cotovelos” e suas “dores”. Não há poema que, no fundo, não seja de “circunstância”, não seja “confessional”, pois a circunstância é, em última instância, o Fado, e a confissão é a de um eu, “desviado de si próprio”, perambulando pelo mundo. Ao menos essa é a “identidade” do eu lírico que surge em “Soneto Antigo”, alguém incapaz de recusa absoluta ou da religação religiosa entre o vôo da ave e o roer do verme. Eis a aludida “dança do impasse”, da disjunção, a qual, todavia, não deixa de dar uma resposta à “velha questão”, a saber: recobrar o ser remoto que o destino quer o sujeito teça. Ou seja, a dicotomia liberdade/destino é dissolvida no Livro coberto pela pele do sujeito “sujeito” e insubmisso ao seu fado. O Livro em que jaz a nossa biografia não é escrito nem pelo eu nem pela circunstância, mas pelo eu-circunstância, que só se salva quando assente no seu destino sem ressentimento.
Assim, do mesmo modo que existe a assinatura do lunático e insolado autor de um poema, existe a humana assinatura do Sol, da Lua e das Águas sobre a Terra, perfazendo o tema e anátema do Livro.
Assinatura do Sol é uma série de poemas constante de Pedra de Luz e assinada por Rodrigo Petronio. Na medida em que os poemas são assinados por alguém, permito-me parodiar o múltiplo poema e dizer que, na verdade, “é uma assinatura do sou”. Mas esse “sou” não é uma expressão subjetivista ou solipsista, mas, o “Eu sou o que sou”, o bíblico Iahweh, indicado pela epígrafe de Edmond Jabès, poeta vinculado à tradição judaica, a qual é uma crítica radical à deificação da natureza e dos homens.
O eu de todo poeta é como Jacó naquela sua luta com o Anjo de Iahweh, narrada pelo Gênesis. O eu, nada diante do infinito, mas tudo em face do nada, trava, no campo do mito, sua luta contra o divino, pelo divino. Com efeito, poema é polêmica. O poema é uma visceral expressão da vida, a qual se define pelo conflito, se um deles é luta do eu com Deus, outro é a “teomaquia”, a luta entre deuses. Daí, ao lado do invisível, irrepresentável, inimaginável Deus bíblico, aparecerem nos poemas divindades afro-brasileiras, as quais, de forma imediata, vinculam-se a forças da natureza. O Deus sem rosto evocado por Jabès é sobrenatural, transcendente, paira acima da imanência e naturalidade dos deuses pagãos.
O pensador italiano Vicenzo Vittielo coloca o poeta Edmond Jabès como um excelente exemplo da experiência hebraica do divino como ausência, experiência que se contrapõe à greco-romana, na qual a Natureza estava cheia de deuses. O hábitat “natural” do Deus judaico é o deserto, o exílio de Seu povo, à espera de um Messias – sempre futuro, nunca presente. Versos de Jabès, citados por Vittielo, ilustram essa visão da invisibilidade de Deus, que toma como “idolatria” toda assimilação de Deus a qualquer criatura. “Ninguém viu Deus, mas as etapas de Sua morte são, para cada um de nós, visíveis.” “O Criador é rejeitado pela criação. Esplendor do universo./O homem se destrói criando.”
Por outro lado, no Ocidente, o Deus do monoteísmo foi assimilado ao Primeiro Motor aristotélico. Essa assimilação passou a designar Deus como a causa das coisas. A famigerada lei de causa e efeito teria, ao longo dos séculos, retirado a vivacidade da vida, transformando os entes encantados em dados objetivos, cuja causa emigrou da onipotência de Deus, radicando-se na prepotência humana.
Contra essa monomania e monotonia (pós-)monoteísta Assinatura do Sol, com a “delicadeza de um deus que morre”, vocifera. Personifica essa peleja o bíblico Cam, cuja pele escura traz a assinatura do sol. Cam é o filho de Noé que foi por este amaldiçoado, pois viu Noé nu e embriagado. De Cam vem os camitas, etíopes, egípcios, os africanos: a raça dos homens escuros e seu culto politeísta. De Cam viria tudo o que é negro, os orixás, a noite, a “noite dos tempos”, “do universo origem e suporte”.
O rosto escuro pode ser o rosto de alguém da raça negra, alvo de repulsa e/ou atração. Nós brasileiros temos sempre um rosto negro no nosso rosto, por mais brancos que sejamos, por mais que consideremos o rosto negro uma alteridade, pois essa alteridade é parte de nossas raízes.
Aprofundando a idéia da alteridade como raiz, encontramos Deus como o rosto negro, que se furta aos rostos de todos os matizes, pois o negro é a negação da cor. Por outro lado, o rosto divino contém todos os rostos, assim, o seu rosto é branco, soma de todas as cores. Sendo tanto branco quanto negro, o rosto de Deus é um paradoxo, que não devemos decifrar, mas viver.
Neste diapasão, a polêmica entre monoteísmo e politeísmo perde o sentido: tudo é uno e múltiplo, simultaneamente. Há deuses e/ou os deuses são as faces de Deus. A própria Bíblia, o livro do monoteísmo, diz num salmo de Davi, também citado por Jesus, que os homens são deuses, são deuses porque julgam e são filhos do Altíssimo. E o conceito cristão de Trindade implica uma tripartição de Deus em Pai, Filho e Espírito Santo.
Mas, digressões teológicas à parte, o que importa na existência de quem realmente vive é que o entusiasmo não morra, pois, como assinala Assinatura do Sol, “tudo o que morre é o riso de um deus”, assim como “tudo o que existe nasce da delicadeza de um deus que morre”. Esse deus que morre rindo é o Deus da Graça e não o da Lei, isto é, não é o Deus que julga e paga o salário do pecado – que é a morte –, mas é o Deus que salva, que não exige oferendas, dando-se ele próprio como oferenda. Seria o Deus cristão, que está dentro e fora do cristianismo, assumindo inúmeras formas, do Crucificado a Dioniso.
Nós poetas – no fundo todo ser humano é um poeta – morremos junto com esse deus, como quem, já sendo dia, dormiu na noite anterior, pois “tudo o que existe é sol de um sol mais claro”. A noite é um sol de um sol que ainda é noite. A assinatura do sol é uma queimadura e/ou um aquecimento, um efeito que revela sua causa, mas essa causa é por acaso, é uma ordem que não renega o caos de sua origem. A “eventualidade do ser”, para além e aquém de qualquer conceito, é o que a verve poética, em uníssono com o estro cósmico, revela sempre e sempre, não obstante a fluência inexorável e a influência ferrenha das idéias fixas, que forcejam à exaustão por ajustar o intelecto à coisa, escamoteando o tragicômico qüiproquó que perfaz e desfaz todos os entes.
Deveras! Só um “deus”, minúsculo em sua representação e que assume a condição de feto, deixando-se afetar pelo amor e morte, pode, verdadeiramente, ser DEUS.
Até agora, pensei como um filósofo ou um teólogo, ou melhor, como um arremedo desses dois operários do pensamento, a partir deste instante, quero pensar como uma abelha, não uma abelha-operária, mas como um zangão, cuja única função é voar, reproduzindo-se. Espero que meu narcisismo, que vê em cada imagem poética apenas o reflexo do meu rosto vaidoso e do meu estro canhestro, seja aniquilado pelo gozo nupcial e que eu morra risonho e delicado como o deus de Assinatura do Sol, deixando o pólen espraiar-se vida afora, vida adentro.
Eu sigo com os olhos e o coração as linhas, os alinhavados dos poemas. A linha é o prolongamento de um ponto. Em Assinatura do Sol não há ponto-e-vírgula. As vírgulas e os dois pontos, na medida do possível, são eliminados. Esse modo de pontuar o texto tem o condão de privilegiar a coordenação, a analogia, em detrimento da subordinação, do silogismo. Há um magnetismo de imagens: uma imagem se casa com outra. Nos poemas só há casamentos e não causas gerando efeitos. A realidade não é efetiva: “o mundo ainda está para ser criado.”
O casamento é um cruzamento. Linhas, linhagens que se interpenetram, multiplicando-se. O texto é têxtil, trama ou teia de fios: labirinto por onde perambulam Teseu e o Minotauro. Outrossim, o texto é o fio de Ariadne. Eu, também incorporando um monstro que é, ao mesmo tempo, Teseu, Minotauro e Ariadne, sigo os fios de luz e trevas que perfazem a Assinatura do Sol. Perfilho a linhagem de Cam, sem abdicar do semítico Deus sem rosto, de rosto-espelho-da-noite onde esplendem as estrelas. “No espelho de terra”, filial do espelho da noite, lavro a minha cara: não me limpo da terra nem me livro da noite.
Das “veias verdes de Ogum” cresce o mundo e peixes grafam tatuagem na pedra. As linhas assinadas pelo sol circulam pelo globo; as linhas ondulam, encaracolam-se e tornam-se corolas de belas flores.
Eu, em meus vôos ociosos de zangão, sempre me deparei com os hibiscos, essas flores em forma de bailarinas, que vermelhas, rosadas, alaranjadas, brancas esplendem em virtude da luz do sol. Eu vi os hibiscos, mas “só a lua conhece o interior dos hibiscos”. A nudez dos entes é o visível, veste-se de pele, pêlos, pétalas, mas a nudez mais nua é a nudez do invisível, vértebra invisível de um cesto de vime, os dedos diáfanos da luz, que luz com mais brilho na escuridão da noite.
A linha da luz costura todas as coisas, forjando o espaço e os símbolos, mas a poesia às vezes se cansa das metáforas e prefere andar nua sem a sua túnica bordada de mitologia, de esférica e estratosférica música ou princípios aristotélicos. O mito, todavia, em razão de seu condão centrípeto, impede que a poesia caia na muda aridez das coisas simplesmente dadas. E o alinhavo e a linhagem de Assinatura do Sol prosseguem: as veias verdes de Ogum fluem num “assobio”, linha melódica que se alonga além de si mesma. Esse assobio é um sinuoso e erétil sibilo; é uma serpente, uma serpente entre rosas, uma agulha que volta a costurar com notas musicais a veste florida dos seres. A serpente que incita à ciência do bem e do mal é uma deidade da qual nasce, precária como o pecado, a beleza, beleza que pode ser a de um par de seios, sóis brancos munidos de duas mamilares luas negras.
São dados zoológicos: o zangão não produz mel nem tem ferrão, sua função na colméia limita-se à reprodução. Para ele a flor é uma genitália, a genitália da abelha-rainha. Sem o ferrão guerreiro, sem o mel operário, o zangão pode ser espelho do poeta, que reproduz o mundo mediante metáforas, hauridas das musas e da mãe das musas – a Memória.
“Deus morre para que a manhã se levante. Erga sua toalha e banhe nossos corpos nus./ Para que toda a excentricidade retorne ao destino do mel. A abelha trabalhe.” Esses versos de Assinatura do Sol retornam à idéia do “deus que morre” e, segundo Jabès, assim como a criação rejeita o Criador, “o homem se destrói criando”. O gozo procriador do zangão é letal. O poeta é um deus, um demiurgo, que morre na sua obra, excentricidade sibilina, a qual está imbuída de fel, mas que desemboca na simplicidade e na doçura do “destino do mel”, que nutre a colméia humana, a colméia cósmica.
Destino do mel – destino de mel. Doce é o sabor extraído do Fado, apesar de todo o fel. Se nossa sina sabe a dor e a angústia, um mel maior é aquilo que alimenta a plenitude da vida, para além do inevitável azedume que nos tiraniza. A vida é agridoce, e quem é sábio agradece.
Deus está conosco, neste calvário – na Ressurreição. E, se o Sol morre, a Lua, ainda matizada pelo astro-rei que se põe, começa a ser real e apõe no horizonte a sua assinatura. Assinatura, outro poema de Pedra de Luz vem a lume. Desta vez é a Lua a signatária do poema de Rodrigo Petronio. Diferentemente de Assinatura do Sol, um exercício caudaloso de versilibrismo, a lunar assinatura que ora se firma é constituída por quadras de versos de sete sílabas, nas quais há o refrão “olho no céu essa lua”. Contraponto feminino do varonil, mas castrável Sol – cuja metáfora pode ser um sol que declina como uma cabeça decepada do corpo – a Lua, elevando-se altiva, contempla impassível a putrefação do poente. Por outro lado, como terna mãe, favorece as messes, regula estros, mênstruos, ciclos, e deságua em uma assinatura com tinta branca “no livro mudo do mundo”.
Traçando uma conexão entre as assinaturas de sol e de sol e o poema “A Escrita da Água”, diviso a questão da angústia do eu que, se é lírico, é também existencial, biográfico, que pode “estar” na mudez dos livros do mundo e da sociedade, mas vocifera nos suspiros do coração.
Encerraríamos estas linhas como “a pele que fecha sua pupila”, como um deus falho, que morre, para que a existência em êxtase insista. Eu não estou nestas linhas, como Rodrigo Petronio não está nos “seus” poemas. A criação nos rejeita, nos destrói. O “Epílogo” de Pedra de Luz manifesta o contentamento pela realização da obra, um contentamento sem nenhum regalo a não ser o vento e a impossível conservação de estátuas em movimento. Todavia, esse esgotamento inesgotável do “campo do possível” não elimina de todo a “aspiração pela imortalidade”. Assim, após o epílogo, um pós-epílogo intitulado “Papyrus” é o desfecho do livro, no qual uma vegetativa imortalidade de papiro ou papel aparece. Tal imortalidade trouxe à minha memória uma estrofe do “Cemitério Marinho” de Paul Valéry que diz: “Maigre immortalité noire et dorée,/ Consolatrice affreusemente laurée,/Qui de la mort fais un sein maternel,/Le beau mensonge et la pieuse ruse!/Qui ne connaît, et qui ne les refuse,/Ce crâne vide et ce rire éternel!” A “magra imortalidade” de que fala o poeta francês é uma consolação desoladora que faz da tumba um seio materno e coroa de louros uma caveira cujo permanente riso é uma descarnada rigidez cadavérica.
Assim, vislumbro uma antítese envolvendo “Epílogo” e “Papyrus”. Nessa disjuntiva relação, o tudo-será-livro de Mallarmé e a literatura cortejando o seu fim de que fala Borges digladiam-se e, na peleja, os contendores tornam-se indiscerníveis, para além – ou para aquém – de Platão, o sensível e o inteligível engalfinham-se, perdem a identidade.
Se o papiro ou o papel é um “dorso selvagem que sem alma transpira”, o poeta, produtor de papiros, é um guardador de “estátuas em movimento”. Essas estátuas em movimento são as pessoas, o “próximo”, com quem o poeta pode prosear.
O “Epílogo” não é o epílogo, tampouco “Papyrus” é o último poema. As palavras e as páginas continuam no Livro e ultrapassando o Livro.
O citado poema de Valéry tem como epígrafe o verso do antigo poeta grego Píndaro que diz: “Ó minha alma, não aspira à vida imortal,/ mas esgota o campo do possível.” Sim à imortalidade magra, dos louros, da página “lapidar” estampada no riso da caveira, a essa imortalidade não se deve aspirar. Mas há uma outra imortalidade, a das estátuas em movimento – a de Beatriz saudando e salvando Dante Alighieri, a de uma criança sorrindo para a sua mãe.
O pastor norte-americano Rick Warren, relatando a sua experiência ao lado do leito de morte, disse: “eu tenho estado ao lado do leito de muitas pessoas em seus momentos finais, quando eles estão já no limiar da eternidade, e eu nunca ouvi alguém dizer: ‘tragam meus diplomas! Eu quero olhá-los uma vez mais. Mostrem-me meus aposentos, minhas medalhas, aquele relógio de ouro que eu dei.’ Quando a vida na terra está findando, as pessoas não se cercam de objetos. O que nós queremos em volta de nós são pessoas – pessoas que nós amamos e com as quais nos relacionamos.”
O fato é que o poeta pode conversar com o mundo e fazer o seu Livro mudo falar, pois o epílogo não é o epílogo do ponto final, mas o das reticências – um epílogo em pílulas... O Instante se precede e se sucede: excede-se no morrente que ressurge, no regresso do tempo – eterno.

Dois Dedos de Prosa: do Poema ao Poema


Com efeito, a característica básica do poema é monológica, isto é, o poeta, em princípio, monologa, posto que o veículo próprio para o diálogo é a prosa com seus travessões. Contudo, a par do fato de que existe a legítima procura de uma “poesia pura”, há a, também legítima, busca de uma “poesia impura”, contaminada pelo ritmo de prosa, pelo prosaísmo da vida humana e social. A partir do Modernismo, já tradição na poesia brasileira, a incorporação do prosaísmo tem dotado o trabalho poético aqui produzido com pontos culminante, que despontam nas obras de Bandeira e Drummond.
Na esteira de tal moderna tradição, há em Pedra de Luz poemas dignos de nota, como “Rotação manivela sopro cacto” e “Metrô”. Neles, Rodrigo Petronio trava um diálogo com realidades cotidianas e imbuídas da dessacralização da vida humana sem muitas mediações metafísicas, revelando, todavia, a metafísica inerente à vida cujo fruto dileto é o estro poético.
Jorge Luis Borges disse que, enquanto alguns se orgulhavam de ter escrito poemas, ele se orgulhava de ter lido alguns poemas. Creio que este deve ser o lema de todo poeta quando lê os poemas de outro poeta, pois há uma emulação inerente ao afã de criar: o já referido caráter monológico do poetar nem sempre induz o poeta a ser um bom leitor de seus pares. Eu, Mário Dirienzo, signatário destas linhas, sou, ou tento ser, poeta, inveteradamente: já estou na “lira dos cinqüent’anos” e deparo-me com a invejável obra de um jovem poeta, a qual tenho a honra e o orgulho de analisar. Tal fato, todavia, não impede que, seguindo os imperativos categóricos da consciência crítica, como um “advogado-do-diabo”, procure os “pecados” de Pedra de Luz. A tarefa é árdua, talvez uma ociosa “procura de pêlo em ovo”, na medida em que as qualidades do livro são evidentes. Contudo, arrisco dizer que nos textos de Pedra de Luz, às vezes, há uma extensão que desnorteia o leitor: talvez por excesso do texto, talvez por insuficiência do leitor. Se a crítica que esboço – a de que em alguns poemas há uma pletora de invocações que estanca o fluxo da poesia – os poemas “Metrô”, “Revolução”, “Rotação manivela sopro cacto” destacam-se, pois, possuindo um caráter descritivo, anedótico até, têm uma concisão oracular e aquele estouro “em alguma forma inusual de felicidade” ou em um revolucionário salto suicida, que semeia girassóis para pacíficas pombas.
Se o propósito de introduzir a prosa na poesia é trazer os céus para Terra e fazer brotar uma inusitada maneira de ser feliz, é, outrossim, denotar a infelicidade reinante por meio dos afiados dentes da ironia. Alvo desse furor satírico é o profano conflito que se dá na “Terra Santa”, onde os fundamentalismos cristão, judeu e muçulmano fazem ruir os verdadeiros fundamentos daquilo que seria salubre, sacro, salvo da sanha deletéria. O tema, que pulula pelo livro, ganha uma sublime expressão, digna de nota, no poema “Ezequiel”. Intentando uma hermenêutica do texto, deparo com a intertextualidade de dois trechos bíblicos: o Salmo 90 e o capítulo 37, versos 1-14, do livro do profeta Ezequiel. O salmo fala da proteção dada por Deus ao fiel. No campo de batalha, caem mil ao seu lado e dez mil ao seu lado direito, mas o fiel não será atingido. A situação histórica à qual o salmo parece referir-se são os quarenta anos que o povo de Israel ficou no deserto antes de chegar à Terra Prometida. No sentido estritamente religioso, o texto é aplicável àqueles que têm fé em Deus e Nele confiam. Já o livro de Ezequiel fala de uma visão do profeta, que viu um “vale de ossos secos”, que simbolizava a miséria espiritual e material do povo de Israel quando cativo de outros povos. Na visão de Ezequiel, Deus fez o profeta andar ao redor dos ossos secos e profetizar a eles, dizendo-lhes que Deus iria pôr-lhes tendões e faria crescer carnes e pele sobre os ossos secos, colocando naqueles corpos já redivivos o Seu espírito. As situações que, nos textos bíblicos são antitéticas, no poema de Petronio são sintetizadas num sentido irônico. Ou seja, os eleitos por Deus, em virtude da proteção do Altíssimo, produzem um vale de ossos secos dos seus inimigos, fato que depõe contra a sua eleição.
Entrando numa polêmica política, onde o prosaísmo dos conceitos e/ou preconceitos parece enterrar o sentido poético, “Ezequiel”, mantendo-se nas paragens da poesia, não deve ser visto como um panfleto anti-sionista, antiamericano ou antipalestino, mas sim como uma corrente bravia vinda do veio profético que, não raro, conflui com a ironia no afã de questionar a eleição dos eleitos e a seleção dos mais aptos, apontando para o fato de que todos são eleitos para “ser”, e que o ser é para o vale de ossos secos ou para os sussurros do Espírito, que soam ao arrepio do rugido das armas.
A propósito da “Terra Prometida”, é bom lembrar que Moisés morreu antes de chegar a Canaã, a qual avistou do alto do monte Nebo, para depois expirar. Tal evento é signo de que a terra, no ápice de seu cio, tangencia os céus – na esperança, na saudade – e de que sua circunferência está em toda parte, estando seu centro em lugar nenhum. Assim, na terra de um homem estão todas as terras; assim, os eternos quarenta anos no deserto deságuam nas dunas brasileiras, enxergam o Saara no Ceará, profetizam que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. E esperam a volta do Messias – e/ou Dom Sebastião. Ah, isso tudo é saudade: “saudade de nunca mais”. Os colonizadores pisaram nas areias de São Vicente. E, através das areias que giram e giram na ampulheta, eu vejo um menino que brincava na praia, enquanto o mar bramia. É Casimiro de Abreu? Não, é Rodrigo Petronio. Ele se maravilha com a exuberância do mar. Talvez sua mãe tenha lhe dito que há uma potência maior que o mar: “Deus”. Mas o menino cresceu na saudade de não ter “saüdade”, na esperança de uma nação ainda não projetada, sem a nostalgia das “auroras da minha vida”, na expectativa de um país feito a giz, que se pode apagar e reescrever. Eis a “saudade” do “ser”, ao invés do “ente”, seja esse ente o Brasil, Portugal ou a Civilização Ocidental. O ser é aquilo que “é”, mesmo quando tudo aquilo que é, não é mais. É o Nada? É Tudo!
Como se pode ver, depois de dois dedos de prosa, oito dedos – um polvo, um povo – de devaneios: distanciei-me do “distanciamento crítico”, perdendo-me nesse deserto e/ou oásis que é a poesia. Quem sabe isso seja fruto de minha inépcia como leitor; talvez seja o “furto” que todo poeta comete em relação ao seu colega, ou, quiçá, o resultado de uma lógica fatal: se o pó volta ao pó, o poema volta ao poema.
Uma “pedra de luz” é uma alquímica pedra filosofal, minério etéreo; uma paradoxal pedra-de-tropeço, que, fazendo tropeçar, fornece raízes; uma pedra-de-toque, valioso e avaliador jaspe, que agrega e afere elementos telúricos e cerúleos: um enlace/embate entre a Terra e os céus; entre o divino e o humano, onde, mesmo não havendo “nada além da pele”, “o ouro”, todavia, “quer ser luz desencarnada”.
Se Pedra de Luz fez do corpo um corpo poroso e “incorpórea” a sua razão, uma razão enlouquecida, mas sem idéias fixas, “poética”, eu, sob o influxo desse livro de Rodrigo Petronio, porém escorado nos ombros largos de Platão e na herança metafísica que o pensador grego nos legou, compus o poema “A Meta Física”, cujo compasso incerto é o da alma, que “dança quando vive do que falta/e morre em quanto aspira ser exata.”