quinta-feira, 19 de novembro de 2009

CRITICISMO

Toda crítica e toda a poesia pressupõem uma saudável mescla de dúvida e devoção sobre um determinado dado, seja ele qual for. Platão diz que a filosofia nasce do espanto. Vico diz que o mito nasce do espanto. Há, entretanto, um intervalo grande entre as duas concepções de espanto. O primeiro nasce de uma posse da consciência. Espanto-me porque percebo que sou algo e que este algo não é o mundo. O segundo me revela a condição mundana e, por conseguinte, a minha condição; traz-me à luz a forma das coisas e a minha própria forma. Espanto-me porque a árvore não é a árvore, mas é um deus. Por extensão, espanto-me porque eu, tal como a árvore, não sou apenas eu, mas um híbrido de consciência e de substância divina. Também sou árvore, também sou um deus, porque os nomeio.
Do estado de simpatia cósmica ao estado de reflexão crítica há um hiato interessantíssimo, e, em detrimento do que se tem dito, há tantas pontes que conectam quanto abismos que separam. Mas não é esse o assunto que me interessa aqui. O que podemos supor é que o espanto reflexivo, entendido como espanto, é conatural à própria manifestação elementar da vida. Seja como simpatia ou como princípio dissociador da minha consciência que, em movimento, acaba por se descobrir a si mesma, em ambos os casos temos uma ação fundamental.
Para lembrar Vilém Flusser, um estado crítico fundado em uma dúvida radical e amplificado até atingir o paroxismo é algo incapaz de ser realizado empiricamente, tampouco é encontrável como vivência ou como dado vital. Não é, portanto, uma realidade efetiva, mas meramente nominal, teórica, no pior sentido da palavra. Afinal, uma pessoa que duvidasse de tudo em todos os instantes de sua vida terminaria invariavelmente chegando ao suicídio – ou à loucura. Isso demonstra que há um princípio de crença animando até mesmo a possibilidade de exercermos a crítica, seja qual for o seu escopo, a sua finalidade, o seu objeto, o seu grau ou o seu fundamento lógico, cognitivo ou ontológico. Um germe de crença está enraizado, ainda que timidamente, até na minha capacidade mais radical e transgressora de negar o real em sua totalidade.
Da mesma maneira, se produzo uma concepção de mundo que transforma a força crítica em horizonte último de todos os conhecimentos e experiências possíveis, todo o real passa a se oferecer a mim como hipóteses a serem desenhadas em um pano de fundo recortado e constantemente criticado. Sem substância e sem subsistência, nesses termos não poderei nunca transcender o estatuto de minha premissa, ou seja, em última análise, não posso cumprir a premissa crítica em sua última aspiração, que seria uma crítica da crítica. Tomada como uma positividade e ser cumprida em quaisquer circunstâncias e para todos os fins da vida, eis que o fundamento da minha hipótese se confirma inviável. Mais que isso, funda-se sobre a sua própria inviabilidade, em suma, em seu suicídio.
Fides quaerens intellectum, a fé busca a inteligência, diz Santo Agostinho. Credo quia absurdum, creio porque é absurdo, diz Tertuliano. Essas duas afirmações, extremas e aparentemente excludentes, complementam-se e reafirmam a unidade do pensamento. O mundo só me é inteligível na medida em que eu creio. Sem a crença, entendida como base prévia do conhecimento, não haveria sequer a possibilidade de criticar os fundamentos da fé e mesmo os da razão, que, por seu turno, me faculta o exercício de crenças periféricas, secundárias. Se, ao crer, vinculo a crença à impossibilidade de uma explicação última do mundo, demonstro os limites de todo conhecimento demonstrativo quanto à essência desse mesmo mundo e também no que concerne à essência do próprio conhecimento. Ao fazê-lo, resgato a substância mesma do pensamento, sua forma primeira, sua estrutura não-relacional, o seu ser, diríamos. Produzo uma dupla superação: do real como unidade finita e do pensamento como unidade autossuficiente.
Essa atitude de excentricidade me põe em contato, por sua vez, com a dupla articulação de toda a sabedoria, no seu grau mais elevado: a verdade e o absurdo. Por ser verdade e por ser absolutamente transcendente, não é acessível à luz fosca, subsidiária, adventícia da minha razão; por isso, absurdo perante os desígnios omnicompreensivos a que ela anseia. Sendo absurda e relativa, devolve-me à minha finitude, à minha interminável busca de sentido, justamente o que me faz humano, in fieri. Por outro lado, ao reduzir o perímetro de alcance de meu pensamento, preservo o real intacto em sua subordinação àquilo que o transcende. E, por conseguinte, também o próprio pensamento.
Ao reduzir o estatuto de minha inteligência, apreendo o mundo em uma amplitude maior do que a fornecida pelos expedientes lógicos que lhe atribuem valor e o predicam. Ao superar o demonstrável, devolvo a minha consciência à sua origem ilimitada e, portanto, ao que não se quantifica, ao imponderável. Isso só me revela que há um além para o qual a consciência caminha e justamente este além lhe é consubstancial; ele é que nega o estatuto fechado do meu pensamento, negação sem a qual não há processo noético, e, portanto, não haveria negações ou afirmações parciais de nada, mas apenas uma completa anomia e indistinção improdutivas.
Em resumo, a partir da crença, chego à inteligência. A partir desta, chego ao absurdo. Depois do absurdo, reabsorvo a razão, plena em seu fracasso, ciente de sua insuficiência essencial, transformada e redimida depois da transformação, do conhecimento e do reconhecimento, que se realizaram em seu interior. Negação da negação, reintegro a minha capacidade compreensiva aos domínios do mundo, ao círculo amplo de minha abrangência, mínimo diante do que lhe excede. Desse ponto de vista e ao contrário do que vulgarmente se diz à exaustão, o impensável é o elemento crítico que se infiltra em minha razão e produz nela a crítica da crítica, ou seja, a negação de sua condição autotélica, que é inviável e inverossímil. Apenas o contato com o Outro, com a absoluta transcendência, molda a meu eu em sua singularidade, abre a clareira de minha consciência e possibilita que esta conheça e se reconheça, que esteja no mundo porque se percebe também fora do mundo.
Sem cogitar o imponderável que nos cerca e que nos anima, dia a dia, esse complexo fenômeno a que chamamos de consciência, desde seus graus mais elementares às suas espirais mais complexas, o próprio ato de pensar atinge uma contradição embaraçosa, pois passa a se apoiar em resoluções parciais de uma questão ontológica mais ampla. Assim, traduz-se, seja em um eu abstrativo e puro, sem efetividade, seja em uma fé cega, que não atinge os elementos críticos capazes de revelar a sua relatividade e precariedade intrínsecas. Da mesma maneira que Santo Anselmo postulou aquilo além do que nada pode ser pensado, traduzindo-o na substância divina que transcende todo o inteligível e todo o real, fé e inteligência se completam e se minimizam mutuamente mediante o imperativo dessa realidade excêntrica divina.
Não cabe crer e explicar, tampouco conhecer e ignorar ou crer que tudo o que não compreendo é a projeção negativa de algo que compreendo. Trata-se, sim, de dar o salto qualitativo sobre o absurdo fundamental da vida humana. Esse é o testemunho que caracteriza e legitima o verdadeiro ato de fé. Há uma luz mais ampla que nos possibilidade reter as dimensões e variantes da própria luz. É possível criticar a luz. Mas não é possível criticar a condição que, enquanto luz, me possibilita a legibilidade do mundo – e da luz. Sem absurdo, não há inteligência. Sem absurdo, tampouco há fé. Sem crença, não há nem absurdo nem inteligência. Há apenas massa amorfa e impassível à espera do fim dos tempos, sem compreensão e sem revelação, de nada e de ninguém. Isto posto, quase todas as proposições negativas e pseudocríticas da modernidade são destituídas de validade empírica, lógica e ontológica. Em suma, são um equívoco, ou, para sermos mais claros, uma fraude.