segunda-feira, 7 de junho de 2010

NÓS, OS FEMINICIDAS




O filme O homem que não amava as mulheres é bom sob diversos pontos de vista. Com um ritmo bem marcado, suspense, enredo cheio de minúcias e tramas que vão sendo criadas e desmanchadas em grande velocidade. O eixo da estória são homens de idades e procedências distintas que violentam mulheres. Dentre eles, há um serial killer que precisa ser encontrado. Claro, tem também o mocinho e a mocinha que acabam ficando juntos, como se supõe, com direito aos clichês toleráveis em nome do amor. Enfim, um filme que trata de todas as formas de violência, física, moral, sexual e simbólica, contra as mulheres, chegando ao seu limite, ou seja, ao feminicídio.
Mas o grande pecado do filme, se é que podemos dizer assim, ou a lacuna grave que ele deixa escancarada ao espectador, é que ele nos mostra apenas os frutos dessa violência, a sua gratuidade, sem em nenhum momento apontar para as suas origens ou se indagar sobre as suas bases. Assim, ao ocultar as motivações internas do feminicídio, transforma seus personagens em marionetes, em doentes mentais monstruosos e não-humamos. O que não deixa de dar o doce sabor da vingança pelo preço que eles pagam no final, ou seja, uma bela (e merecida) recompensa às mulheres, que saem do filme felizes por terem sido “justiçadas” e “redimidas”. Mas, assim, o filme transforma os acontecimentos em performances cinematográficas com um valor meramente moral, sem dimensioná-los sob um ponto de vista da estrutura mesma da sociedade contemporânea.
No fundo, caímos no velho mito da monstruosidade do Mal, e esquecemos a sua indefectível banalidade. Em outras palavras, é muito fácil fazer um filme sobre Jesus em que todos os cristãos se sintam comovidos com a “injustiça” cometida contra o Salvador. Mas no qual esses mesmos cristãos não se deem conta de que eles próprios, nas mesmas condições, com certeza salvariam Barrabás. De gota em gota, esquecemos que o Mal tem os traços do nosso rosto. Como nos lembra Drummond, em seu belo poema, em todas as manhãs do mundo despertam os “ferozes leiteiros do mal” e os “ferozes padeiros do mal”. É aquela “ração de crime” cotidianamente distribuída em casa. Está tão perto que nos é estranha, tão próxima que se faz invisível, tão imperceptível que nos alimenta, sem nos darmos conta. O Mal nos é mais familiar do que nossa roupa, do que a nossa pele, do que os nossos gestos cotidianos. Ele é aquele “pó da morte” de que fala o filósofo cristão Bernanos, que vai se infiltrando e se sedimentando em nós, no ar que respiramos, até a nossa completa (e inconsciente) aniquilação.
Se nos indagarmos sobre o movimento mesmo de liberalização sexual, ele corre em mão dupla e se dirige a ambos os sexos. Ao mesmo tempo em que temos a emancipação legítima da mulher e cada vez mais e em maior grau uma “igualdade” de direitos entre os sexos, ambicionada por todas as pessoas razoáveis, temos, dentre outras coisas, a consequente desfeminilização das mesmas, para que elas possam de fato adquirir a sua “igualdade”. Por outro lado e de maneira complementar, há uma progressiva e evidente “castração” simbólica do homem, de que não tratarei aqui, mas que está no cerne de alguns dos problemas do nosso tempo. Bom, até aí, tudo bem.
Mas o que pouca gente ressalta é que, afinal, nessa igualdade entra de tudo. Pois se durante tantos séculos coube ao homem o papel de poder sobre si mesmo, sobre os mais fracos e sobre o outro sexo, hoje esse “poder” está se diluindo velozmente por todos os indivíduos do planeta. Se eu “posso” vender meu corpo para uma revista gay, para uma agência de turismo sexual para senhoras ou para uma empresa de embalagens eróticas, as mulheres também “podem” ser atrizes de filmes pornô, prostituir-se ou serem consumidas em algum horário vago da agenda de um grande executivo. E nesse sentido, não valem argumentos sociológicos de boteco ou uma pseudofilosofia da condition humaine. O problema que se coloca é claro. Os desdobramentos sucessivos da modernidade implicam essa dupla condição: liberdade autossustentada que traz mais liberdade autossustentável, hipoteticamente regulada pelos expedientes da razão pública e da moral privada. Esse complexo movimento, por sua vez, vem salvaguardado pela tênue e paradoxal película de uma coisa extremamente abstrata chamada lei. 
Então, torna-se muito bonito, ou seja, muito moral, no sentido raso da palavra, falar de espancadores e de assassinos de mulheres, dos feminicidas em última instância. De fato, não deixa de ser importante tratar disso, como uma forma de alerta ou termômetro, para assegurar direitos conquistados e deixar a sociedade em vigilância para uma eventual regressão democrática. Mas colocar o problema assim implica em reduzi-lo à sua superfície. Porque esse sexo “frágil” é hoje composto por profissionais liberais, milionárias, executivas, taxistas, boxeadoras, professoras, prostitutas, bancárias, empresárias, caminhoneiras, traficantes, contrabandistas, criminosas, assassinas, todas elas “consumidoras”, dentre outras coisas, de homens, seja de fato ou em potencial. Todas mais ou menos inseridas nas malhas do “poder”, palavra que só é usada em sentido pejorativo pelos idiotas ou pelos hipócritas, para produzirem no leitor uma falsa neutralidade e a impressão de que eles, que a pronunciam, não o desejam. Como se diz em filosofia: o ser sempre deseja persistir em sua essência. Até as pedras “desejam” exercer algum “poder” sobre as outras pedras.
Então, qual seriam os traços básicos do feminicida do futuro? Ele certamente será bem diferente do assassino principal do filme, um jovem que “aprendeu” com o pai a estuprar a própria irmã. Talvez possamos vê-lo como aquele tipo de jovem tímido, feio, esquisito, fedido, avacalhado pelos colegas. Talvez ele ainda novo tenha bons sentimentos, e possa até ter alguma sensibilidade. Um adolescente pacato, meio boçal, e que amadurecerá sem conseguir criar recursos para sair de sua boçalidade. Quem sabe filho de uma mãe promíscua, prostituta ou mesmo incestuosa? Mas segundo o discurso vigente, isso pouco importa. Podemos muito bem continuar dizendo que o machismo é um dos maiores problemas do mundo desde há milênios. Podemos continuar encontrando novos expedientes de equanimidade entre os sexos. Podemos continuar repetindo que os corpos são construídos. Podemos continuar celebrando a Mãe Natureza e salvando as baleias. Podemos criar uma nova mitologia para a Grande Mãe, uma nova religião das energias da Anima e pôr um ponto final em toda essa história de patriarcado e repressão. Basta que sejamos todos “iguais”. Ou melhor, que façamos o percurso de “integração do feminino”, como dizem os psicólogos.
Esse mesmo adolescente virará um homem. Provavelmente a sua “integração do feminino” possa não funcionar muito bem, e então ele será consumido pelas mulheres, talvez por muitas delas, muitas vezes, impiedosamente. E estas provavelmente o trocarão bem rápido por algum outro objeto um pouco mais selvagem, performático ou aerodinâmico. Nessa voragem da circulação dos corpos, na apoteose do amor líquido, entre nádegas boiando na televisão e o silêncio desse personagem, sozinho em seu quarto, talvez lhe ocorra um dia uma ideia. Nada nova, nada original, desde os neandertais. Talvez ele sinta algo se mover do fundo de sua impotência, do fundo de seu ódio, do ponto mais recôndito da podridão que povoa os seus pensamentos. Talvez ele sinta, pela primeira vez, as suas veias, o seu sangue, os seus músculos. Sim. Finalmente há algo que o diferencia daqueles “seres” que são a razão de seu mal.
Da clava às cavernas, da navalha aos matagais urbanos, a cena não mudou muito em milhões de anos. E do estupro ao feminicídio, é um pulo. Isso demonstra que a complexidade do momento em que vivemos consiste no fato bem plausível de que esses jovens estejam se multiplicando. Quem sabe não vivamos sob a gestação de um exército de futuros feminicidas? E então? De quem é a “culpa”? Alguma feminista mais cara-de-pau poderia se perguntar se a “culpa” não continua sendo do machismo, que não se extinguiu de todo. Tese difícil de ser defendida nos dias de hoje, praticamente indefensável daqui a algumas décadas ou séculos. A “culpa” é da liberação das mulheres? Da emancipação dos indivíduos? Da modernidade? Do feminismo? Da democracia? Do progresso? Da igualdade? Obviamente, não. Afinal, do ponto de vista darwinista, a sobrevivência se dá mediante uma seleção natural dos mais fortes, não é? Não há premissa moral que regre a desmesura do devir histórico em suas sínteses objetivas e na efetividade concreta de todas as suas escolhas, individuais, irreversíveis e sempre contingentes. É muito mais provável e plausível pensarmos que a “culpa” é desses próprios adolescentes, que não se adaptaram ao funcionamento da engrenagem. E que possivelmente enlouqueceram por acreditarem em coisas inviáveis, inexistentes ou simplesmente obsoletas. Tipo, o amor.