O filme O
homem que não amava as mulheres é bom sob diversos pontos de vista. Com um
ritmo bem marcado, suspense, enredo cheio de minúcias e tramas que vão sendo
criadas e desmanchadas em grande velocidade. O eixo da estória são homens de
idades e procedências distintas que violentam mulheres. Dentre eles, há um serial killer que precisa ser
encontrado. Claro, tem também o mocinho e a mocinha que acabam ficando juntos,
como se supõe, com direito aos clichês toleráveis em nome do amor. Enfim, um
filme que trata de todas as formas de violência, física, moral, sexual e
simbólica, contra as mulheres, chegando ao seu limite, ou seja, ao feminicídio.
Mas o grande pecado do filme, se é que
podemos dizer assim, ou a lacuna grave que ele deixa escancarada ao espectador,
é que ele nos mostra apenas os frutos dessa violência, a sua gratuidade, sem em
nenhum momento apontar para as suas origens ou se indagar sobre as suas bases.
Assim, ao ocultar as motivações internas do feminicídio, transforma seus
personagens em marionetes, em doentes mentais monstruosos e não-humamos. O que
não deixa de dar o doce sabor da vingança pelo preço que eles pagam no final,
ou seja, uma bela (e merecida) recompensa às mulheres, que saem do filme
felizes por terem sido “justiçadas” e “redimidas”. Mas, assim, o filme
transforma os acontecimentos em performances cinematográficas com um valor
meramente moral, sem dimensioná-los sob um ponto de vista da estrutura mesma da
sociedade contemporânea.
No fundo, caímos no velho mito da
monstruosidade do Mal, e esquecemos a sua indefectível banalidade. Em outras
palavras, é muito fácil fazer um filme sobre Jesus em que todos os cristãos se
sintam comovidos com a “injustiça” cometida contra o Salvador. Mas no qual
esses mesmos cristãos não se deem conta de que eles próprios, nas mesmas
condições, com certeza salvariam Barrabás. De gota em gota, esquecemos que o
Mal tem os traços do nosso rosto. Como nos lembra Drummond, em seu belo poema,
em todas as manhãs do mundo despertam os “ferozes leiteiros do mal” e os
“ferozes padeiros do mal”. É aquela “ração de crime” cotidianamente distribuída
em casa. Está tão perto que nos é estranha, tão próxima que se faz invisível,
tão imperceptível que nos alimenta, sem nos darmos conta. O Mal nos é mais
familiar do que nossa roupa, do que a nossa pele, do que os nossos gestos
cotidianos. Ele é aquele “pó da morte” de que fala o filósofo cristão Bernanos,
que vai se infiltrando e se sedimentando em nós, no ar que respiramos, até a
nossa completa (e inconsciente) aniquilação.
Se nos indagarmos sobre o movimento mesmo de
liberalização sexual, ele corre em mão dupla e se dirige a ambos os sexos. Ao
mesmo tempo em que temos a emancipação legítima da mulher e cada vez mais e em
maior grau uma “igualdade” de direitos entre os sexos, ambicionada por todas as
pessoas razoáveis, temos, dentre outras coisas, a consequente desfeminilização
das mesmas, para que elas possam de fato adquirir a sua “igualdade”. Por outro
lado e de maneira complementar, há uma progressiva e evidente “castração”
simbólica do homem, de que não tratarei aqui, mas que está no cerne de alguns
dos problemas do nosso tempo. Bom, até aí, tudo bem.
Mas o que pouca gente ressalta é que, afinal,
nessa igualdade entra de tudo. Pois se durante tantos séculos coube ao homem o
papel de poder sobre si mesmo, sobre os mais fracos e sobre o outro sexo, hoje
esse “poder” está se diluindo velozmente por todos os indivíduos do planeta. Se
eu “posso” vender meu corpo para uma revista gay, para uma agência de turismo
sexual para senhoras ou para uma empresa de embalagens eróticas, as mulheres
também “podem” ser atrizes de filmes pornô, prostituir-se ou serem consumidas
em algum horário vago da agenda de um grande executivo. E nesse sentido, não
valem argumentos sociológicos de boteco ou uma pseudofilosofia da condition humaine. O problema que se
coloca é claro. Os desdobramentos sucessivos da modernidade implicam essa dupla
condição: liberdade autossustentada que traz mais liberdade autossustentável,
hipoteticamente regulada pelos expedientes da razão pública e da moral privada.
Esse complexo movimento, por sua vez, vem salvaguardado pela tênue e paradoxal
película de uma coisa extremamente abstrata chamada lei.
Então, torna-se muito bonito, ou seja, muito
moral, no sentido raso da palavra, falar de espancadores e de assassinos de
mulheres, dos feminicidas em última instância. De fato, não deixa de ser
importante tratar disso, como uma forma de alerta ou termômetro, para assegurar
direitos conquistados e deixar a sociedade em vigilância para uma eventual
regressão democrática. Mas colocar o problema assim implica em reduzi-lo à sua
superfície. Porque esse sexo “frágil” é hoje composto por profissionais
liberais, milionárias, executivas, taxistas, boxeadoras, professoras,
prostitutas, bancárias, empresárias, caminhoneiras, traficantes,
contrabandistas, criminosas, assassinas, todas elas “consumidoras”, dentre
outras coisas, de homens, seja de fato ou em potencial. Todas mais ou menos
inseridas nas malhas do “poder”, palavra que só é usada em sentido pejorativo
pelos idiotas ou pelos hipócritas, para produzirem no leitor uma falsa
neutralidade e a impressão de que eles, que a pronunciam, não o desejam. Como
se diz em filosofia: o ser sempre deseja persistir em sua essência. Até as
pedras “desejam” exercer algum “poder” sobre as outras pedras.
Então, qual seriam os traços básicos do
feminicida do futuro? Ele certamente será bem diferente do assassino principal
do filme, um jovem que “aprendeu” com o pai a estuprar a própria irmã. Talvez
possamos vê-lo como aquele tipo de jovem tímido, feio, esquisito, fedido,
avacalhado pelos colegas. Talvez ele ainda novo tenha bons sentimentos, e possa
até ter alguma sensibilidade. Um adolescente pacato, meio boçal, e que
amadurecerá sem conseguir criar recursos para sair de sua boçalidade. Quem sabe
filho de uma mãe promíscua, prostituta ou mesmo incestuosa? Mas segundo o
discurso vigente, isso pouco importa. Podemos muito bem continuar dizendo que o
machismo é um dos maiores problemas do mundo desde há milênios. Podemos
continuar encontrando novos expedientes de equanimidade entre os sexos. Podemos
continuar repetindo que os corpos são construídos. Podemos continuar celebrando
a Mãe Natureza e salvando as baleias. Podemos criar uma nova mitologia para a
Grande Mãe, uma nova religião das energias da Anima e pôr um ponto final em toda
essa história de patriarcado e repressão. Basta que sejamos todos “iguais”. Ou
melhor, que façamos o percurso de “integração do feminino”, como dizem os
psicólogos.
Esse mesmo adolescente virará um homem. Provavelmente
a sua “integração do feminino” possa não funcionar muito bem, e então ele será
consumido pelas mulheres, talvez por muitas delas, muitas vezes, impiedosamente.
E estas provavelmente o trocarão bem rápido por algum outro objeto um pouco
mais selvagem, performático ou aerodinâmico. Nessa voragem da circulação dos
corpos, na apoteose do amor líquido, entre nádegas boiando na televisão e o
silêncio desse personagem, sozinho em seu quarto, talvez lhe ocorra um dia uma
ideia. Nada nova, nada original, desde os neandertais. Talvez ele sinta algo se
mover do fundo de sua impotência, do fundo de seu ódio, do ponto mais recôndito
da podridão que povoa os seus pensamentos. Talvez ele sinta, pela primeira vez,
as suas veias, o seu sangue, os seus músculos. Sim. Finalmente há algo que o diferencia daqueles “seres”
que são a razão de seu mal.
Da clava às cavernas, da navalha aos matagais
urbanos, a cena não mudou muito em milhões de anos. E do estupro ao
feminicídio, é um pulo. Isso demonstra que a complexidade do momento em que
vivemos consiste no fato bem plausível de que esses jovens estejam se
multiplicando. Quem sabe não vivamos sob a gestação de um exército de futuros
feminicidas? E então? De quem é a “culpa”? Alguma feminista mais cara-de-pau
poderia se perguntar se a “culpa” não continua sendo do machismo, que não se
extinguiu de todo. Tese difícil de ser defendida nos dias de hoje, praticamente
indefensável daqui a algumas décadas ou séculos. A “culpa” é da liberação das
mulheres? Da emancipação dos indivíduos? Da modernidade? Do feminismo? Da
democracia? Do progresso? Da igualdade? Obviamente, não. Afinal, do ponto de
vista darwinista, a sobrevivência se dá mediante uma seleção natural dos mais
fortes, não é? Não há premissa moral que regre a desmesura do devir histórico
em suas sínteses objetivas e na efetividade concreta de todas as suas escolhas,
individuais, irreversíveis e sempre contingentes. É muito mais provável e
plausível pensarmos que a “culpa” é desses próprios adolescentes, que não se
adaptaram ao funcionamento da engrenagem. E que possivelmente enlouqueceram por
acreditarem em coisas inviáveis, inexistentes ou simplesmente obsoletas. Tipo,
o amor.