segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

NELSON RODRIGUES E O AVESSO DA VIRTUDE


Impressionante como Nelson Rodrigues compreendeu o desejo humano. Que seus personagens sejam obcecados pelo pecado e pela transgressão, é um fato. Parecem seguir assim toda uma tradição sobre o desejo, de Sade a Freud e de Bataille a Lacan. Eles nos revelam à contraluz uma das fontes desse enigma humano: o desejo se move no limiar entre a luz e a autoaniquilação. O desejo só se realiza plenamente na ambivalência entre a lei e a exceção. Para ele, a lei não é um imperativo, mas justamente algo a ser superado: nisso reside a dinâmica do desejo, que os personagens de Nelson exploram à exaustão e à patologia, perdidos num lodaçal que os leva de pecado a pecado. O homem é um animal infrator.
Mas há algo de mais grave ainda no mundo de Nelson: nele a própria virtude se apresenta como uma patologia. Há nele uma infectologia da lei. Uma perversidade na ordem. Uma demência compulsiva pela caridade. Os seus personagens são tarados pela fidelidade. Poluídos pela pureza. Infectados pelo vírus sem cura da honestidade. Destruídos pela esperança. Manchados pela bondade. Arruinados por serem sinceros. Corroídos pela graça. E devastados justamente pelo mais nobre e humanizante de todos os afetos: o amor.
Essa cadeia de paradoxos é a fonte da grandeza de Nelson. Se ele tivesse se detido em uma análise da transgressão da lei, já teria fornecido uma grande contribuição à anatomia da alma humana. Mas ele foi além: virou do avesso o próprio mecanismo da bondade e da virtude, trazendo à luz as suas vísceras apodrecidas. Por isso, ao contrário do que quereriam as boas almas, virgens em seu casto culto do mal e absolutamente devassas em sua fé cega na bondade, o avesso do crime não é a virtude. A suspensão do mal não é a sua contrapartida. É apenas uma maneira ainda mais maliciosa de mascarar a substância maligna de que somos feitos. Pensem nisso, humanistas.