Impressionante como Nelson Rodrigues
compreendeu o desejo humano. Que seus personagens sejam obcecados pelo pecado e
pela transgressão, é um fato. Parecem seguir assim toda uma tradição sobre o
desejo, de Sade a Freud e de Bataille a Lacan. Eles nos revelam à contraluz uma
das fontes desse enigma humano: o desejo se move no limiar entre a luz e a autoaniquilação.
O desejo só se realiza plenamente na ambivalência entre a lei e a exceção. Para
ele, a lei não é um imperativo, mas justamente algo a ser superado: nisso
reside a dinâmica do desejo, que os personagens de Nelson exploram à exaustão e
à patologia, perdidos num lodaçal que os leva de pecado a pecado. O homem é um
animal infrator.
Mas há algo de mais grave ainda no
mundo de Nelson: nele a própria virtude se apresenta como uma patologia. Há
nele uma infectologia da lei. Uma perversidade na ordem. Uma demência
compulsiva pela caridade. Os seus personagens são tarados pela fidelidade.
Poluídos pela pureza. Infectados pelo vírus sem cura da honestidade. Destruídos
pela esperança. Manchados pela bondade. Arruinados por serem sinceros. Corroídos
pela graça. E devastados justamente pelo mais nobre e humanizante de todos os
afetos: o amor.
Essa cadeia de paradoxos é a fonte da
grandeza de Nelson. Se ele tivesse se detido em uma análise da transgressão da
lei, já teria fornecido uma grande contribuição à anatomia da alma humana. Mas
ele foi além: virou do avesso o próprio mecanismo da bondade e da virtude,
trazendo à luz as suas vísceras apodrecidas. Por isso, ao contrário do que
quereriam as boas almas, virgens em seu casto culto do mal e absolutamente
devassas em sua fé cega na bondade, o avesso do crime não é a virtude. A
suspensão do mal não é a sua contrapartida. É apenas uma maneira ainda mais
maliciosa de mascarar a substância maligna de que somos feitos. Pensem nisso,
humanistas.