segunda-feira, 2 de julho de 2007

Essa Realidade Inatingível

A lírica dos dissidentes soviéticos

Antologia traz a produção do período da Revolução às vésperas da Perestróika

Rodrigo Petronio

O Estado de S.Paulo/Cultura - 1.7.2007

Boa parte dos desastres políticos e ideológicos vividos pela extinta União Soviética ao longo do século 20, bem como das monstruosidades ocorridas ali, está hoje documentada. Mas o espírito humano, por alguma razão misteriosa, sempre arranja meios de transcender as contingências. E é talvez por esse motivo que tenhamos, nesse país, a despeito dessas condições, o florescimento de alguns dos maiores nomes recentes da poesia mundial.
A recém-lançada antologia Poesia Soviética (Editora Algol, 654 pág.), com seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, representa um acontecimento de ampla ressonância. Cobrindo o período que vai da Revolução às vésperas da Perestroika é, provavelmente, o maior painel da poesia russa desse período em língua portuguesa. Autor de Anna Akhmátova: Poesia 1912-1964, antologia essencial da grande dama de São Petersburgo, Machado Coelho reúne, em Poesia Soviética, os frutos de quase 40 anos de seleção, organização, pesquisa e tradução.
Os critérios que norteiam essa antologia também contribuem para a sua qualidade. Primeiro, embora seja uma escolha afetiva e pessoal, o aspecto qualitativo não é perdido de vista. Tal opção, além disso, tem a vantagem de não submeter as escolhas a nenhuma diretriz poético-ideológica, o que contribui para a diversidade das vozes. Segundo, Machado Coelho ignora sistematicamente os representantes oficiais do Realismo Socialista. Terceiro: baseia-se em uma abordagem vertical e não horizontal, ou seja, são 24 poetas ao todo, número relativamente pequeno, mas com uma grande quantidade de poemas traduzidos de cada um, o que aprofunda o conhecimento de suas respectivas poéticas. Por fim, o autor evita inserir poetas já traduzidos e mais conhecidos, como Maiakovski, Tsvietáieva, Mandelshtám, Pasternak, Khlébnikov, Iessiênin, dentre outros.
Munido de conhecimento crítico e histórico, Machado Coelho percorre os momentos decisivos da história intelectual russa, pontuando, em cada um deles, as possíveis saídas (ou becos sem saída) que a política forneceu aos artistas. A introdução esclarecedora aborda desde o período leninista, passando pelo período do Terror Vermelho e a distensão pós-fim da Guerra Civil, com a Nova Política Econômica. Frisa o fortalecimento da repressão com a guinada stalinista: a coletivização compulsória; o Grande Terror da década de 1930, os expurgos em massa, a política cultural de imposição do Realismo Socialista. Essa realidade só vai ser parcialmente mudada a partir do Degelo, com Kruchev; mas Brejnev vai assinalar nova virada neo-stalinista e nova fase de estagnação.
Literatura e história se entrelaçam nos poetas presentes em Poesia Soviética. Por trás da diversidade de vozes, alguns fios comuns tecem a trama de fundo dessa aventura poética. Em geral, sendo todos dissidentes, o são por uma razão simples: em todos há, em menor ou maior grau, o cultivo da expressão individual, do subjetivismo condenado pela política oficial, que se lê, por exemplo, nos belos Quatro Sonetos, de Kirsánov, na meditação amorosa dos poemas de Vanshênkin e em todos os poemas de Arsênyi Tarkóvski, pai do famoso cineasta.
Mesmo sendo críticos do regime, não deixa de escapar a alguns a questão do consumo moderno. Plissiétski visita o tema da compra e da venda, e a partir de uma cena cotidiana, uma partida de pingue-pongue em um hospital, compõe, em Tempo Imóvel, um quadro da solidão contemporânea. Vinokúrov também trata do tema em Diversidade: “O mundo é um imenso bosque/que não tem duas folhas iguais./O supérfluo é indispensável.”Dois poetas importantes dentro do cenário de mudanças políticas da URSS, que comparecem na antologia, são Yevtushenko e Vozniessiênski. Embora pratiquem uma poesia mais edificante, esse ingrediente foi decisivo para a repercussão de ambos junto ao público, e até pela sua penetração no Ocidente. Em termos de contraste, vale ressaltar o panteísmo de Zabolótski e Matvêieva, bem como as naturezas-mortas e a pintura da vida privada levada a cabo por Kúshner e Gorbaniévskaia, em excelentes poemas de talhe lírico e meditativo.
Além do lirismo, há também a ironia, como a de Martýnov, mas que às vezes chega às raias do hilariante, como no caso do absurdista Daníil Kharms, ao satirizar grandes nomes da literatura russa. Outro tema recorrente é a alegoria do presente, visto sob o prisma do passado, como ocorre em Os Herdeiros de Stálin, de Ievtushênko. Ela reaparece na sensação de morte em vida do poema O Retrato da Infanta, de Antokólski, no qual a famosa tela de Velázquez está a serviço de uma crítica do presente. E nos admiráveis poemas de Vinokúrov: A Mãe de Judas, O Anjo Terrível e Adão. Neles, a poesia restitui ao humano o que é humano, detonando a possibilidade de submetê-lo a qualquer maquinaria ou abstração político-ideológica.
Eis o ponto crucial. A Mãe de Judas, como mãe, sofreu (humanamente) tanto quanto a de Cristo, tanto quanto qualquer mãe. A poesia não habita o mundo de heróis e bandidos, de mártires e algozes. Sua única arma é a inocência, o primeiro olhar adâmico que ela lança sobre as coisas, batizando-as. Sua única libertação está em saber-se precária, e, assim, falível, decaída, impotente, incapaz de dar nome à abjeção. Só assim ela pode impedir, não os desastres de um passado irreversível, mas a fabricação futura de novos “ídolos de sangue”, nas palavras de Valéry.
Em um belíssimo poema de Brodski, autor congratulado com o Nobel de 1987, intitulado singelamente Amor, o poeta, exilado e sonâmbulo, tateia o escuro de seu quarto em busca da presença da esposa, que nunca mais pôde ver. Ao fim, o interruptor de luz. Ao fim, a realidade, que nos envolve e que é, no entanto, inatingível.A arte não sobrevive apenas ao artista. Ela sobrevive também aos governos, aos ditadores, à miséria. Essa é sua capacidade civilizadora, como nos diz o mesmo Brodski em um de seus ensaios. A poesia russa, na contracorrente da história, é uma testemunha pungente da conquista dessa realidade. E não o fez pela política ou pela ideologia, mas pelos conflitos e contradições inerentes à própria vida que, como tal, é e sempre será uma exilada, onde quer que se tenha trocado o mundo pelos conceitos.

Rodrigo Petronio é escritor, autor de História Natural, Pedra de Luz (poesia), Transversal do Tempo (ensaios), entre outros