terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O BARRO DO ÉDEN:A POESIA DE ALFREDO FRESSIA



Primeiro filho de Adão e Eva, e, por conseguinte, primeiro homem nascido naturalmente sobre a Terra, pesa sobre Caim a cifra de um enigma e de um destino, ora individual ora coletivo. Embora o seu nome signifique lança e denote a sua origem agricultora, pode ser entendido também, de modo perifrástico, como obter para si, ou seja, ganhar algo para si. Isso que o primogênito tem para si, como depois sabemos, é a inveja. A necessidade de ter, por parte de Deus, a dignidade que ele julga que lhe compete, fato que não ocorre. Por isso o fato último do assassinato. “E porei inimizade entre a tua semente e a sua semente” (Gênesis 3:15), diz Deus, referindo-se à serpente e a Eva. Ora, quer dizer que o mal que nasceu do pecado entre Eva e a serpente se estenderia à semente de Eva (Caim) e a toda a descendência deste (a humanidade).
Porém, alguns comentadores eruditos sugerem que um dos sentidos simbólicos desse personagem seria o de redentor. Ele teria vindo ao mundo, após o pecado, para matar a serpente e restituir a integridade da vida. Por isso a sua urgência de obter reconhecimento (e aqui a ambiguidade semântica da palavra é oportuna) por parte de Deus. De acordo com essa leitura heterodoxa, haveria um sentido subliminar na figura de Caim. Ele seria o descendente (a semente) que teria vindo ao mundo para aniquilar o mal. Teria sido o primeiro ungido.
Obviamente, na doutrina cristã, a ideia de regeneração da humanidade pela remissão do mal é atributo divino, e só se deu com Jesus. E trata-se de restauração total, não de mera extinção das suas causas mundanas (a serpente). Por isso, Jesus foi aquele “segundo Adão”, de acordo com as palavras do apóstolo Paulo, ou seja, aquele que restaurou integralmente o mundo e o ser por meio de sua encarnação e de sua palavra. Entretanto, não deixam de ser curiosas algumas outras associações simbólicas daquele personagem bíblico. Sabemos que Caim não apresenta arrependimento, mas padece de remorso. Esse fato vem inscrito na famosa “marca de Caim”, que foi estabelecida por Deus, mas cuja execução e natureza não vêm expressas.
Paradoxalmente, essa marca é registro de proteção e de estigma. Denota ao mesmo tempo a eleição divina e a chaga de uma ação ocorrida no passado. É aquilo que distingue Caim como descendente adâmico, marcando um limite de proteção para que ele não seja morto, e o que assinala o seu crime. Essa dupla natureza, protegida e espúria, preservada e infame, tem o intuito de fazer de Caim um dos protagonistas da neutralização do mal do mundo. Afinal, há que se suspender de vez a cadeia das mortes, interromper as quedas que se inauguram com a Queda, das quais Caim representa uma das mais profundas, logo depois da perda do Paraíso, pois em si mesmo mostra a todos a mácula de sua escolha.
Os desdobramentos do enredo, do mythos, muitos de nós sabemos: o exílio, a Terra da Fuga (Nod), a edificação de cidades, uma das quais leva o nome de seu filho Enoc, os primeiros trabalhos com a metalurgia, o crescimento da poligamia e da violência, a suspeita referência ao assassino de Caim, Lemec, que será vingado setenta vezes aquelas que Caim seria vingado, ou seja, setenta vezes sete. Ora, descendem de Caim, passando por Noé, Cam e Nemrod, o fundador de potências como Babilônia e Nínive, além de outras grandes cidades. A descendência de Caim, por outro lado, não é só o dos que constroem e manejam a metalurgia, mas também a dos que tocam cítara e flauta. Além de autores de muralhas feitas à custa de sangue e ferro, são também patronos da cultura e seu refinamento. Em palavras polidas, teria início então a “civilização”, que nada mais é do que a luta dos homens uns contra os outros? A edificação das cidades e, portanto, a ruptura com a relação com a natureza começou pelas mãos do primeiro fratricida? Não cabe discutir aqui os limites tênues entre essas esferas.
A despeito do que o leitor possa estar pensando, essa introdução um tanto idiossincrática se justifica, pois acredito que ela se relacione diretamente à experiência de leitura da poesia de Alfredo Fressia. Poesia rigorosamente edênica, ela não o é no sentido de propor a restauração de uma unidade primeira entre linguagem e mundo, de uma Ursprache poética, como tantos grandes poetas o fizeram e o fazem. Não é também poesia “profana”, no sentido de apagar as marcas da origem que tanto a linguagem quanto a vida trazem em si, no movimento centrífugo da Criação. A cena que se sustenta como pano de fundo de todos os poemas de Fressia é uma cena de intervalo.


Baseia-se na consciência de que a poesia, no seu sentido inicial e dir-se-ia até iniciático, nasce de uma origem pura, porém perdida para sempre, e toma para si a responsabilidade de edificar o mundo, mas apenas depois de estabelecer o seu compromisso com o mal. O poeta é aquela “rosa condenada” (“Mas a rosa”) ao eterno exílio, sempre no limiar, para sempre no umbral. Essa condição intervalar, de radical indecidibilidade, para usar o conceito de Blanchot, faz da via poética uma impossibilidade sustentada. Mais do que um confesso deslocado social, essa situação estrangeira é ontológica. Diz-nos que a poesia, por ser linguagem, está fora do Paraíso, mas, por ser poesia, tampouco compartilha da completa ausência de sentido.
Tanto nos conjuntos de poemas O futuro e Veloz eternidade, quanto no magistral Eclipse e nesta antologia Canto desalojado, recolhida, traduzida e organizada cuidadosamente por Fábio Aristimunho Vargas, a cena caimita não é acessória, tampouco referencial. Ao contrário, pode-se dizer que ela é a estrutura mítica sobre a qual se ergue a poesia de Fressia, é a sua matéria-prima e a sua bússola. Eleito e maldito, assim é a descendência do poeta e assim é a descensão sugerida pela instauração poética. Em termos arquetípicos, tais modulações da Queda são flagrantes até na passagem de um poema a outro.
De saída, já se vê esse movimento nos dois primeiros poemas do livro. Apresentando-se como um “mal-entendido como a alma” e como um “traidor”, desde o poema de abertura, não por acaso intitulado “A última ceia”, o percurso poético é sempre o da reminiscência, com a nostalgia do abandono (a derelicção, como diz Heidegger), e a certeza da redenção impossível. Inútil “como a poesia” é a própria existência do poeta, o mais exilado dos exilados, e, entretanto, marcado com a chancela divina. Da ceia se passa ao diálogo com o pai, em “O medo, pai”, no qual o filho espanta-se ao se reconhecer “preso no corpo”, e define os homens como “filhos obedientes da espécie”, mesma expressão que reaparece no belo e forte fechamento do poema “Obediência”.
Esse fundo mítico, que traz em si sempre a chancela de um mal inexorável e vem na abertura do livro tematizado em forma de remorso, ganha espessura na cena edênica e não se preserva no nível das formas e dos arquétipos. Toma corpo na própria vida, enraizada no cotidiano. Seja ao dizer, de modo babélico, que “todos os idiomas são incompreensíveis” na vasta tristeza noturna, seja mostrando os amantes como “títeres do tempo”, em quartos iluminados de néon (“Noturno na Avenida São João”). Esta paisagem desolada de perda e carência pode se dar na ausência de rosto, que fôra por “sete dias postergado”, no “segredo dos ossos”, no xadrez das vértebras jogadas pela morte (“Domingo à tarde”), na sinfonia da carne, na ruína dos corpos durante o amor e no regresso de cada um desses até “a sua ausência”. Esses corpos não são inodoros ou distantes, não são paisagem, tampouco estáveis permutações de um amor ameno. Eles se dilaceram e se dissipam, deixam marcas, cheiros, pegadas, passos, sêmen, odores, cortes, suor, sangue. Amam-se como peixes, amam-se e se odeia, atravessam-se e se esfolam aos olhares sorridentes da morte. Depois, se por acaso o seu o próprio corpo toma ciência de si, ele dobra-se e se contrai na posição de feto, em seu retorno primevo ao ventre da Criação, como lemos no impecável “Liturgia”.
Esse barro original de onde Fressia modela os seus corpos, além de manchado e impuro, traz algo também de singular. Se observarmos, por exemplo, a temática homoerótica de sua poesia, sinto que podemos desentranhar dela algumas variantes, não só do homoerotismo, mas também da androginia. O enigma da sexualidade, um dos enigmas da vida, é posto de maneira emblemática, entre outros, no poema “Final”. Ao dizer que “encerra todo o ciclo” e que em si “se acaba” e, logo em seguida, “Tirésias contempla o travesti em silêncio”, Fressia passa de uma dimensão literária, de fechamento dos poemas, a uma sexual e existencial, do voltar-se sobre si mesmo, ou seja, do amor ao próprio sexo e do amor a si, como fundo autotélico do desejo que não quer se perder no outro.
Ora, o adivinho Tirésias, tal como se diz de Empédocles, havia experimentado em outras vidas a forma de mulher. Esse feminino que vem inscrito na interioridade do personagem, aliado à cegueira que o veda ao mundo das formas exteriores, é o que promove o visionarismo. O mesmo visionarismo que terá Édipo em Colono, depois de cegado e depois de, na tragédia de Tebas, ter selado seu pacto com a mãe, que é Jocasta e o segredo do eterno feminino. Tem início então o segundo movimento da sinfonia trágica, o conhecimento que se exerce depois da peripécia do reconhecimento.
 A função edipiana é subvertida aqui de maneira quase bufa. O cego Tirésias contempla o travesti em silêncio. Quer dizer: as próprias estruturas interiores e exteriores foram embaralhadas, posto não haver aqui mais ambivalência produtiva. Em outras palavras, não há assimilação dos opostos, anima e animus, mas um profeta cego que “contempla” um travesti (o poeta), cujo feminino interior já foi totalmente exteriorizado, posto em potência. Nesse sentido, não há tragédia, pois a tensão dos opostos se resolveu por dissolução. O mesmo modo bifronte de união dos corpos se dá no poema “Belo amor”, no espelhamento de sexos idênticos. Dessas descrições chegamos por fim às de poemas como “Obediência”, verdadeira cidade da carne, onde o corpo e o sexo são pensados em termos puramente negativos, em uma noite que desmorona junto com as coisas.


Belo porque estéril, esse amor que se descreve é propriamente uma tentativa de não procriar a vida fora dos limites do Éden, de deixar-se ali até que a salvação venha cumprir seu destino. Ou não venha nunca. Se a tradição cristã mais ortodoxa viu na sodomia um ato contra naturam é por ela não gerar filhos que possam trabalhar o linho da vida até a redenção da espécie. Em outras palavras, até a completa purificação da marca de Caim que nós herdamos. A boa poesia é sempre violenta, e no caso de Fressia o é, na medida em que propõe um retorno à cena do crime, não para corrigi-lo, mas para revivê-lo e mostrar-nos um espelho, no qual todos nós nos reconheçamos.
Esses corpos não estão presentes apenas em um de seus livros. O que dizer deles, senão que são corpos edênicos, moldados no barro original e no pecado irresoluto que nos funda? Não há aqui intervenção do puro espírito ou o corpo sutil dos místicos. Não há sublimidade, altitude espiritual, pois se não há salvação, tampouco há tragédia. A sua encarnação simbólica em poesia se dá como experiência-limite da própria materialidade, da falta de transcendência que irriga todos os poros deste mundo que ainda não foi salvo. E provavelmente nunca será. E nestes advérbios temporais parece residir todo mistério. Ou melhor, reside um dos enigmas que nunca foram resolvidos: o futuro. No futuro do pretérito de sua poesia, o mundo ainda está para ser salvo. O “futuro era o de antes” era o do “tempo dos meus quinze anos”. Pessimismo cujo tom é um dos mais interessantes, com matizes judaizantes, pode-se dizer, a poesia de Fressia é tão exilada dos lugares nos quais se radica que vê a própria utopia sob a luz do luto.
De fato, em seu livro intitulado justamente O futuro, em especial no engraçado “Teorema”, mais do que uma projeção utópica frustrada, uma distopia ou uma falta de enquadramento social, o que se lê é uma atopia. Não aquela enfadonha, insossa e insone, dos aeroportos (“Aeroportos”), que estão mais para aqueles não-lugares de que nos fala o sociólogo Marc Augé, e são tratadas comicamente. Trata-se, por outro lado, de uma condição estruturalmente incondicional, do poeta e da poesia. Sob essa ótima, que é a de um exílio ontológico, não mais uruguaio ou brasileiro, os lugares e os projetos estão sempre ainda por se realizar. Não existem, e, portanto, nunca existirão. Serão sempre diversos de si mesmo, sendo o centro luminoso de irradiação de sua verdade eternamente inacessível para nós. Por isso, não podemos dizer que algo será salvo por algo ou alguém que ainda não existe nem por aquilo que ainda não há. Se a perspectiva edênica marca seu vínculo com o tempo de antes da salvação, essa salvação que se mostra sempre por vir é eterna. Sendo assim, é também infinita. Não se consuma nunca. É, portanto, inexequível e assim carece de essência. Essa é sua parcialidade. Em outras palavras, pode-se dizer que a vida humana está e sempre estará sob o signo dessa parcialidade. Por isso, o centro de toda a poesia de Fressia chega enfim a um termo: o eclipse.
O eclipse como fenômeno natural é simples. Consiste na sobreposição de um dos astros, que oculta a parte luminosa de outro astro, seja o Sol ou a Lua. Mas se eu me surpreendo “ferido pelos astros”, eles impregnam minha carne, misturam-se ao meu sangue. Em uma palavra, são o meu corpo astral, a circulação de meu sangue e de minha linfa, a matéria estelar de que sou feito, como diz a teoria platônica. No poema “Eclipse”, um dos melhores poemas da poesia contemporânea, essa dimensão vem muito marcada:

Não nos atenhamos a detalhes, isso
era o futuro, já o sabias refugiado no ventre do bisão:
eras homem e mulher, e o céu foi um deserto
onde ardeu meia hora a fogueira fria dos teus ossos,
e estava escrito que não tivera margens nem destino
nem esperança de morrer cercado de teus filhos, o
semicírculo acossado
desde antes de nascer.

A marca da origem é anterior à cena mundana, é anterior à próprio proveniência da espécie. Vem inscrita no ocultamento dos próprios astros, que sempre produzem a sua marca profética e são mais fortes do que a nossa vontade ou do que a triste sociologia das revoltas sociais ou de nossas ocupações. Trata-se de uma marca mais profunda: o Estrangeiro dos gnósticos, que nunca pertence a este mundo. Ele vem marcado desde a origem edênica, nos mitos primordiais que fornecem a miséria e a liberdade necessária ao exercício de nossa finitude. Mais que isso, de nossa fatalidade. O poeta, e aqui não falo em termos literários, mas falo sim de Alfredo Fressia, de carne e osso, já fora “acossado desde antes de nascer”. O futuro “era o de antes”, era o que ainda não existiu e não existirá nunca, pois não tem essência.


Homem e mulher, conjunção de sol e lua, de masculino e feminino, de gregos e persas, queimado em meio a um gélido deserto, sem esperança de deixar descendência que não a poesia e o signo de Caim que traz consigo e não se limpa, seja no eclipse de Tebas, no da batalha de Salamina ou no de Montevidéu. O retorno à cena primordial ganha ainda mais espessura, pois agora retroage ao fundamento metafísico e cósmico dos astros, em sua conjunção maléfica. Como diz Fernando Pessoa em um dos sonetos ingleses, o seu eu é anterior ao mundo e anterior até mesmo a Deus. Por isso, vive a desolação de saber-se sempre alheio a tudo que o cerca. O intuito do poeta é refazer essa peregrinação inversa, essa reminiscência às origens obscuras de onde provém a sua verdade.
Tal recuperação não é vivida como miséria, como desespero ou como autoglorificação; não estamos diante de um dândi que se apostasia anacronicamente na transgressão, nem de uma mistificação inócua do lado oposto da vida. O resultado último do percurso levado a cabo por Fressia é uma espécie de desilusão essencial. O remorso prossegue, porque não há redenção; mas, por maior que seja o peso do nefasto eclipse que nos condena, não há sequer tragédia, porque o destino quis que nós nos desviássemos e nos transviássemos para virmos a conhecer a vida e edificar o mundo, com suas torpezas e maravilhas.
O rito final dessa mise-en-scène prossegue nos belíssimos poemas inéditos: “Nugatória”, “Inveja” e “Rua Rondeau”. Estes, somados a poemas como “Liturgia” e “Obediência”, bem como a quase todos os poemas selecionados de Eclipse, estão entre os melhores poemas escritos nas últimas décadas, no Brasil e quiçá em castelhano. No magistral “Penitência”, lemos:

Quero voltar ao ventre
e velo imóvel sobre a teia de aranhas venenosas. Conto-as
uma por uma, até que sucumbam famintas como pensamentos.
Rezo. A goteira não cede na cozinha. Recostado
sou branco e gigante como o arrependimento. Vivo para pedir.
Perdão pela memória porosa da areia, perdão
se afundo meu ouvido no travesseiro de plumas
e me ouço flutuar atrás da muralha, Amém.

O retorno ao ventre se dá não como aconchego, mas como úlsão de morte, pois o ventre é “o velo imóvel sobre a teia de aranhas venenosas”. E se o poeta é “branco e gigante como o arrependimento”, por ter ciência da sua marca fundadora, sua vida e sua escrita não deixa de ser, por seu lado, também um extenso “perdão pela memória porosa da areia”. Nesta série, o tema bíblico, praticamente apenas sugerido nos primeiros poemas e aprofundado nos demais, toma corpo e vem à luz com todas as letras em “Nugatória”, com a “quebra da inocência”, porque “é polpa amarga o coração do fruto” e também porque chegamos “tarde à colheita dos filhos de Eva”. E, mais adiante, em “Poeta no Éden”, lemos a bela abertura:

Não, Senhor,
nunca fugirei do Paraíso, tenho em mim
o leite eterno dos pais e dos filhos,
e escrevo poemas para a saudade.

Em seguida, o poeta nos fala do “menino imenso” que docilmente escreve “no barro do Éden”, passando logo em seguida a um colóquio entre ele mesmo e o invejoso, “estendidos sobre a grama” e “fingindo certa glória”. A visão caimita ora é a do outro ora a do próprio poeta, mas nunca sai de cena. Caim aparece, seja como o próprio poeta, seja em forma dialogal, neste poema intitulado justamente “Inveja”. Essa glória é um artifício, uma tentativa de isenção e soberania que não há. Porque depois do Paraíso confiscado, resta-nos apenas o modelo histriônico e postiço, desenhado em “serpentes de néon”: Next Paradise.
Resta-nos simplesmente o futuro, que não se sabe utópico e exequível ou uma mera boutade para aliviar um remorso sem cura. Em seguida, o desejo de voltar às “nêsperas da infância” (“Rua Rondeau”). Mas o retorno não consente um acesso à veracidade das coisas, pois o tempo passado também é um mundo. Este, por sua vez, é um pião de mentiras, girando na “vista noturna do tempo da minha infância” (“Cartão postal”). O poeta em estado natural está no Éden e ao mesmo tempo caminha pelas ruas e é corrupto. A linguagem é seu Paraíso, mas a sua natureza é modelada no barro impuro da Criação.
Para finalizar o livro, nada melhor do que “Rua Rondeau”. O caminhar leve pela rua, levando “os filhos que não tivera sob o casaco”, faz Fressia sentir todas as virtualidades, o que não houve, mas persiste, entrelaçado eternamente à sua vida. O mito, nesse sentido, também é um misto de virtual e atual, de presença pura e de origem para sempre perdida em um passado irrecuperável. A consciência do poeta é a de que não há reconciliação possível. Mas há a tentativa de ao menos dignificar a sua condição neste mundo manchado:

Ou desde as abóbadas da cidadela,
onde agora me refugio, embalo
os meus filhos não nascidos
e abraço os joelhos
de todas as estátuas na estação central
para que não me expulsem, nem impregnem minha terra com sal estéril
nem maldigam outra vez minha estirpe
para as sete gerações
que vigiam meu poema
e torne a cumprir minha cerimônia.

O tom elegíaco e passional é proporcional ao tema, corolário do livro e de uma poética. E aqui é introduzido um novo leitmotiv: o tema igualmente bíblico da mulher de Loth. Pois senão, de onde surgiram essas referências ao sal como elemento estéril e punitivo? Ao ser convocada a deixar Sodoma, cidade da devassidão, sem olhar para trás, ainda assim a mulher de Loth não pôde conter-se e foi transformada em uma estátua de sal. O mesmo mitema de Orfeu é chancelado aqui para o poeta, mas em outra chave. Impelido a sair do Paraíso como a mulher o fora de abandonar Sodoma, o poeta (Caim) se recusa, deliberadamente, a fazê-lo. Ao contrário, afronta o destino que se lhe pesa. Quer a sua cidade, a sua estirpe, a sua vida de volta. Quer livrar-se da culpa eterna, na qual ele, tal como Caim, se vira marcado por “sete gerações”, também tal como a referência bíblica. Os deuses que vigiam o seu poema tornarão a cumprir a cerimônia. Esta é a cerimônia do exílio. E este, a essência da radicação última do poeta e da poesia no mundo.
Abraçado às estátuas e à cidadela, ou seja, às edificações que a maldição o levou a executar. E depois, a amar. Os ingênuos chamam enfaticamente esses signos de “cultura”. Para o poeta, eles são o seu destino, o seu alimento e a sua fatalidade. Sabe que estabeleceu um compromisso com o mal para escrever cada um de seus versos e para erguer cada um dos tijolos de sua cidade. Mas depois, aprendeu a amá-los, como ama a poesia, que é a inscrição de sua expulsão e de seu irremediável destino. Em seu fracasso, sente-se no mais íntimo de si mesmo. Pois a poesia é pharmakon, remédio e veneno, mysterium tremendum e mysterium fascinans, como reza toda a rigorosa aproximação com o sagrado, que une em si o fasto e o nefasto, a experiência do puro e do impuro, em proporções iguais.
Ao fim e ao cabo, decifro a Esfinge. Nesse umbral, vejo Alfredo Fressia, bifronte. Diz-nos que o passado é irremediável e o futuro não existe. O que você nos pede, não é o alívio do arrependimento, nem a suspensão da miséria original que nos constitui, a mim, a todos nós e a você, Fressia. Pois ela é o barro fundamental do que somos. O que você pede é que a sua cerimônia nunca deixe de se cumprir. E que sempre saibamos que nossa vida não começou no dia de nosso nascimento, mas muito antes, em uma caminhada a leste do Éden, no primeiro eclipse ou no lado escuro das estrelas. E pode acreditar que assim será, em sua poesia, in saeculum saeculorum, indefinidamente. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

NELSON RODRIGUES E O AVESSO DA VIRTUDE


Impressionante como Nelson Rodrigues compreendeu o desejo humano. Que seus personagens sejam obcecados pelo pecado e pela transgressão, é um fato. Parecem seguir assim toda uma tradição sobre o desejo, de Sade a Freud e de Bataille a Lacan. Eles nos revelam à contraluz uma das fontes desse enigma humano: o desejo se move no limiar entre a luz e a autoaniquilação. O desejo só se realiza plenamente na ambivalência entre a lei e a exceção. Para ele, a lei não é um imperativo, mas justamente algo a ser superado: nisso reside a dinâmica do desejo, que os personagens de Nelson exploram à exaustão e à patologia, perdidos num lodaçal que os leva de pecado a pecado. O homem é um animal infrator.
Mas há algo de mais grave ainda no mundo de Nelson: nele a própria virtude se apresenta como uma patologia. Há nele uma infectologia da lei. Uma perversidade na ordem. Uma demência compulsiva pela caridade. Os seus personagens são tarados pela fidelidade. Poluídos pela pureza. Infectados pelo vírus sem cura da honestidade. Destruídos pela esperança. Manchados pela bondade. Arruinados por serem sinceros. Corroídos pela graça. E devastados justamente pelo mais nobre e humanizante de todos os afetos: o amor.
Essa cadeia de paradoxos é a fonte da grandeza de Nelson. Se ele tivesse se detido em uma análise da transgressão da lei, já teria fornecido uma grande contribuição à anatomia da alma humana. Mas ele foi além: virou do avesso o próprio mecanismo da bondade e da virtude, trazendo à luz as suas vísceras apodrecidas. Por isso, ao contrário do que quereriam as boas almas, virgens em seu casto culto do mal e absolutamente devassas em sua fé cega na bondade, o avesso do crime não é a virtude. A suspensão do mal não é a sua contrapartida. É apenas uma maneira ainda mais maliciosa de mascarar a substância maligna de que somos feitos. Pensem nisso, humanistas. 

domingo, 15 de janeiro de 2012

NIILISMO A QUEIMA-ROUPA

Acabei de ver na internet um texto de um professor cotejando Aristóteles com Michel Teló. A classe média fica horrorizada com o funk carioca, mas acha normal que um professor crie um esgoto teórico que me autorize cotejar Aristóteles e Michel Teló. E aí o cara da perifa, que fica 3 horas no busão, pra trabalhar 12 e ganhar um salário mínimo, quando faz seu churras de domingo, tem que ter bom gosto. Mas o professorzinho de classe média tem o direito de criar uma enciclopédia teórica pra legitimar sua estupidez sem se comprometer. Continuará gozando da mesma autoridade, pois ela é fornecida por eles próprios, pedagogos e classe média, que se autolegitimam a si mesmos. E depois vocês ainda me perguntam o que é niilismo? Francamente, se isso não é niilismo, não sei o que possa ser.

NOVOS CURSOS

Seguem aqui alguns links com programações das oficinas.

Uma oficina de férias na Casa do Saber:

http://www.casadosaber.com.br/curso.php?cid=2922

E o Núcleo de Escrita Criativa que estou desenvolvendo na Fundação Klabin, agora com 4 meses de duração, de manhã e de noite:

http://projetocultura.com.br/linksinternos/2012_Nucleo-Escrita-Criativa_08-Mar-Tarde.html

http://projetocultura.com.br/linksinternos/2012_Nucleo-Escrita-Criativa_08-Mar-Noite.html

Na Klabin, haverá também um intensivo em janeiro/fevereiro:

http://projetocultura.com.br/linksinternos/2012_Oficina_Escrita_Instensivo_30-Jan.html

É PRECISO DUVIDAR DE TUDO

Se não existe crítica sem alguma margem de dúvida, tampouco existe dúvida sem uma margem de crença. A crença é tão ou mais importante do que o ato de duvidar pra se chegar a qualquer conhecimento aproximado da realidade. Como diria o grande Vilém Flusser, em A Dúvida, se a dúvida metódica se transformasse em dúvida existencial, ou seja, em dúvida da dúvida, só nos restaria uma saída: a morte. E este seria um suicídio filosófico. Ou seja: uma insípida autoaniquilação. Essa é a crítica mais comum ao ceticismo de tipo pirrônico.

Porém, não acredito que a dúvida, diferente da crença, seja uma exceção no processo cognitivo. Acho que duvidamos como respiramos. Ortega diz algo nesse sentido com seu conceito de "razão vital". Se a crítica da crítica oferece problemas epistemológicos, a fé na dúvida também os oferece, talvez em quantidades ainda maiores. Todos aqueles que criam botes salva-vidas e mecanismos de neutralização, nos quais ao criticar não se vejam também eles no objeto criticado, agem ou por ingenuidade teórica ou por malícia estratégia. Querem se mostrar ou menos conscientes do que poderiam ser ou mais lúcidos do que realmente são. Qualquer conhecimento da realidade só existe de modo encarnado. Nunca como conceito abstrativo. Nesse sentido, toda a realidade e tudo o que existe, de pior e de melhor, não passa de um espelho. É apenas isso o que somos: um espelho. E não por acaso só a partir desse momento começa de fato a especulação.

sábado, 14 de janeiro de 2012

NÓS E O BBB

Só uma coisa me dá mais preguiça do que gente inteligente: gente inteligente falando mal da cultura de massas. E a enxurrada de lugares-comuns da imprensa nos últimos dias atingiu o nível mais gritante da Escala Richter da estupidez. É nessas horas que eu descubro algo fundamental. Só há uma coisa mais baixa do que o BBB: os críticos do BBB. Querem negar que eles também fazem parte do reality show. Inútil. Por quê? Pelo simples motivo de que no atual estágio de capitalismo avançado, de globalização e de hipermodernidade, tudo faz parte do BBB. Tudo é reality show no Palácio de Cristal. Por mais que alguns perfeitos cínicos e outros tantos falsos ilustrados queiram nos fazer crer que eles são imunes a tais baixezas. Compreensível. Desde o Paleolítico a hipocrisia é uma das melhores estratégias de sobrevivência da espécie. Porém, mais cedo ou mais tarde, toda Bela Adormecida acaba tendo que despertar.

A lógica desse tipo de crítica chega a ser infantil de tão previsível. Como se sabe, as crianças adoram a repetição. A repetição é o Paraíso da infância. Um idiota nada mais é do que uma criança ao quadrado. Ou seja, uma criança que vive se repetindo duplamente, pois repete a infância e se repete a si mesma. Repetição da repetição. É basicamente essa a impressão que tenho quando ouço gente inteligente criticar a sociedade de massas. Claro que é bom falarmos do povo, não é? A coisa que os inteligentes mais gostam de fazer é emitir opinião sobre o povo, por mais que, como dizia Nelson Rodrigues, nunca tenham visto ao vivo um torcedor do Flamengo. Não é à toa que o intelectual, como categoria histórica, nasceu junto com a publicidade. Do púlpito aos palanques, intelectual é aquele tipo de animal que adora falar em nome de sua espécie. Curioso animal, este. Um animal que fala em nome do povo. Mas desde que o povo aja conforme os inteligentes e intelectuais acham que ele deve agir. E seja como os inteligentes querem que sele seja.

Ah, sim. A cultura deveria ser dirigida por um programa do Estado. Claro. Vamos criar leis que obriguem todos os botecos e puteiros do Brasil a só tocar Villa-Lobos e Pixinguinha. E quem vai definir o que é cultura elevada? No meu projeto de cultura elevada, por exemplo, 90% da história da literatura brasileira não entraria nos currículos escolares. Muito menos violeiros, como Chico Buarque e Caetano Veloso, ícones de todos os inteligentes. Você aceita assiná-lo? Ou vou ter que apertar o gatilho? Nada mais imbecil do que uma cultura feita de atos institucionais. Bom gosto? Goebbels era apreciador de música clássica e Hitler teve ninguém mais do que Leni Riefenstahl dirigindo a propaganda cinematográfica do Reich. A gravidade da situação de hoje se deve ao fato de as relações humanas estarem absolutamente estropiadas, e não ao fato de não se ler Montaigne. Não há Shakespeare que cure isso. Não há Mozart para esse câncer. Não há Chopin para essa metástase. Não há Homero para esse esgoto.

O que quer então essa maldita classe média que reivindica bom gosto? Nossa, como é terrível o BBB e o funk carioca, não é? Pois o Facebook não passa de um BBB pra pseudointelectuais. Com o agravante de reter informações privadas com uma eficácia que a KGB, o Wikileaks ou a CIA jamais sonharam. Vamos emancipar as massas? Sim. Mas desde que elas sejam dirigidas por nós, que somos inteligentes e sabemos o que é elas não sabem sobre si mesmas. Por isso, sabemos também o que é bom para elas. Parafraseando Bernard Shaw, toda revolução não é nada mais do que uma maneira de transferir a tirania para outros donos.

Pois bem. A cultura de massa não é nada mais do que o reverso de todo o discurso de emancipação popular defendido por todos os progressistas demagogos de todos os quadrantes. Valores? O erro começa ao se usar a palavra no plural. Não existem valores. Tampouco há duas nem mil fontes de valor. Mas apenas uma. O valor é um só. Porque a moral é uma só. Transcendê-la, como fez Nietzsche, não é negar o bem ou o mal, mas simples e sumariamente negar qualquer viabilidade para ambos. Isso quer dizer que se você quer estabelecer dois pesos e duas medidas, pregando a distinção entre uma emancipação boa e uma ruim, você estará apenas hipocritamente moralizando a amoralidade, ou seja, quer dizer que você não passa de um fascista do bem.

Quem fica garganteando valores contra um eventual desvalor da sociedade de consumo, não compreendeu ou finge não compreender que a dinâmica do mundo, há pelo menos dois séculos, não produz mais valores. Produz ações. E uma ação que conduz a outra ação não é nada mais do que a nadificação de todo e qualquer valor. Quem não compreendeu ou finge não compreender isso, não sabe o que é niilismo. Quem não atravessou o niilismo, não entende absolutamente nada do que está acontecendo. Quem quiser continuar criticando as massas e as tecnologias e a defender valores, procure algum grotão sobre a face da Terra onde não exista energia elétrica e fique plantando batatas e fazendo tricô. Agora, com licença que eu vou voltar pro meu Bach. E não encham o meu saco.

segunda-feira, 21 de março de 2011

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

FILOSOFIA BRASILEIRA

Caros

Alguns devem saber que estou organizando as Obras Completas do filósofo Vicente Ferreira da Silva. Terminei o terceiro e último volume, mais de 700 páginas, que está indo pra gráfica. Estou trabalhando em um quarto, só de fortuna crítica sobre VFS.

Parte da Introdução Geral foi publicada na revista Desenredos:

http://www.desenredos.com.br/6dss_petronio2_199.html

Preparei também um dossiê sobre VFS para a mesma revista:

http://www.desenredos.com.br/2_santa_teresa_66.html

Felipe Cherubim está fazendo um trabalho excelente também sobre Filosofia Brasileira:

http://www.dicta.com.br/a-redescoberta-da-filosofia-no-brasil-i-panorama-geral/

Nesse sentido mais amplo, há o projeto magistral de Luiz Alberto Cerqueira:

http://filosofiabrasileiracefib.blogspot.com/

Felipe Cherubim também aborda o genial Mário Ferreira dos Santos:

http://www.dicta.com.br/a-redescoberta-da-filosofia-no-brasil-ii-mario-ferreira-dos-santos/

E publicou uma entrevista sobre Vicente Ferreira da Silva, que iria sair no Estadão, mas a pauta caiu:

http://www.dicta.com.br/a-redescoberta-da-filosofia-no-brasil-iii-vicente-ferreira-da-silva/

Isso: a pauta caiu. Se dependermos das universidades e de muitos setores da impressa, dois dos maiores pensadores da língua potuguesa e tantos outros estariam ainda soterrados. Mário totalmente ignorado em vida, Vicente vítima de um sem-fim de preconceitos ideológicos e de uma morte prematura e trágica em um acidente automobilístico, em 1963, o que obstruiu ainda mais a divulgação de sua obra.

Aos possíveis interessados e àqueles que queiram divulgar, seguem aqui esses links. Desculpem o incômodo com essas informações. Mas acho que muita coisa na área da cultura ainda funciona como trabalho de formiga.

Ex Corde
Rodrigo

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

DINASTIA PETISTA, CHAVISMO BRANCO E MEXICANIZAÇÃO EM MARCHA

BOLÍVAR LAMOUNIER - A 'mexicanização' em marcha

O processo sucessório presidencial em curso comporta dois cenários marcadamente assimétricos, conforme o vencedor seja José Serra ou Dilma Rousseff. Se for José Serra, não é difícil prever a cerrada oposição que ele sofrerá por parte do PT e dos "movimentos sociais", entidades estudantis e sindicatos controlados por ele - e, provavelmente, do próprio Lula. Se for Dilma Rousseff - como as pesquisas estão indicando -, o cenário provável é a ausência, e não o excesso, de oposição. Para bem entender esta hipótese convém levar em conta dois fatos adicionais. Primeiro, o cenário Dilma não se esgota na figura da ex-ministra. Ele inclui, entre os elementos mais relevantes, o controle de ambas as Casas do Congresso Nacional pela dupla PT e PMDB. Inclui também uma entidade institucional inédita, personificada por Lula. Semelhante, neste aspecto, a um aiatolá, atuando de fora para dentro do governo, Lula tentará, como é óbvio, influenciar o conjunto do sistema político no sentido que lhe parecer conveniente ao governo de sua pupila ou a seus próprios interesses. Emitirá juízos positivos ou negativos, em graus variáveis de sutileza, sobre medidas tomadas pelo governo e regulará não só o comportamento da base governista no Congresso, mas também os movimentos de sístole e diástole da "sociedade civil organizada" - entendendo-se por tal os sindicatos, segmentos corporativos e demais organizações sensíveis à sua orientação. O segundo fato a considerar é a extensão da derrota que Lula terá conseguido impor à oposição. Claro, a eventual derrota será também consequência das ambiguidades, das divisões e dos equívocos da própria oposição, mas o fator determinante será, evidentemente, a ação de Lula e do esquema de forças sob seu comando. Deixo de lado, por óbvio, as condições econômicas extremamente favoráveis, o Bolsa-Família, a popularidade do presidente, etc.José Serra ficará sem mandato até 2012, pelo menos. No Senado - a menos que sobrevenha alguma reorganização das forças políticas -, Aécio Neves fará parte de uma pequena minoria parlamentar, situação em que ele dificilmente exercerá com desenvoltura as suas habilidades políticas. Nos Estados, os governadores eventualmente eleitos pelo PSDB, sujeitos ao torniquete financeiro do governo federal, estarão igualmente vulneráveis ao rolo compressor governista. Longe de mim subestimar lideranças novas, como a de Beto Richa, no Paraná, e a de Geraldo Alckmin, em São Paulo. Mas não é por acaso que Lula já se apresta a batalha por São Paulo, indicando claramente a sua disposição de empregar todo o arsenal necessário a fim de reverter o favoritismo tucano neste Estado. Resumo da ópera: no cenário Dilma, o conjunto de engrenagens que Lula montou ao longo dos últimos sete anos e meio entrará em pleno funcionamento, liquidando por certo período as chances de uma oposição eficaz. A prevalecer tal cenário, parece-me fora de dúvida que a democracia brasileira adentrará uma quadra histórica não isenta de riscos.É oportuno lembrar que o esquema de poder ora dominante abriga setores não inteiramente devotados à democracia representativa, adeptos seja do populismo que grassa em países vizinhos, seja de uma nebulosa "democracia direta", que de direta não teria nada, pois seus atores seriam, evidentemente, movimentos radicais e organizações corporativas. Claro indício da presença de tais setores é a famigerada tese do "controle social da mídia", eufemismo para intervenção em empresas jornalísticas e imposição de censura prévia.Na Primeira República (1889-1930), a "situação" - ou seja, os governantes e seus aliados nos planos federal e estadual - esmagava a oposição. Foram poucas e parciais as exceções a essa regra. Mas a estratégia levada a cabo por Lula está indo muito além. É abrangente, notavelmente sagaz e tem um objetivo bem definido: alvejar em cheio a oposição tucana. Para bem compreendê-la seria mister voltar ao primeiro mandato, ao discurso da "herança maldita", sem precedente em nossa História republicana no que se refere ao envenenamento da imagem do antecessor; à anistia, retoricamente construída, a diversos corruptos e até a indivíduos que se aprestavam a cometer um crime - os "aloprados"; e aos primórdios da estratégia especificamente eleitoral, ao chamado confronto plebiscitário, em nome do qual ele liquidou no nascedouro toda veleidade de autonomia por parte de quantos se dispusessem a concorrer paralelamente a Dilma Rousseff. A Ciro Gomes Lula não concedeu sequer a graça de uma "sublegenda", para evocar um termo do período militar.Para o bem ou para o mal, a única oposição político-eleitoral potencialmente capaz de fazer frente ao rolo compressor lulista é a aliança PSDB-DEM-PPS. No horizonte de tempo em que estou pensando - digamos, os próximos quatro anos -, não há alternativa. Portanto, a operação a que estamos assistindo, com seu claro intento de esterilizar ou virtualmente aniquilar essa aliança, coloca-nos nas cercanias de um regime autoritário.Sem a esterilização ou o aniquilamento político-eleitoral da mencionada coalizão, não há como cogitar de um projeto de poder hegemônico, de longo prazo e sem real alternância de poder. A esterilização pode resultar de uma estratégia deliberada por parte do comando político existente em dado momento, de uma conjunção de erros, derrotas e até fraquezas das próprias forças oposicionistas - ou de ambas as coisas.Sociologicamente falando, não há funcionamento efetivo da democracia, quaisquer que sejam os arranjos constitucionais vigentes, num país onde não exista uma oposição eleitoralmente viável. Haverá, na melhor das hipóteses, um autoritarismo disfarçado, um "chavismo branco" ou, se preferem, um regime mexican style - aquele dominado durante seis décadas pelo PRI, o velho Partido Revolucionário Institucional mexicano.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA

OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA
FUNDAÇÃO EMA KLABIN
PROJETO CULTURA

http://www.projetocultura.com.br/index.php/component/content/article/37-arte/169-oficina-de-escrita-criativa

Oficina de Escrita Criativa
Professor Rodrigo PetronioDuração 5 encontros semanaisDias terças-feiras, das 14:30 às 16:30 horasDatas 10, 17, 24, 31 de Agosto, 14 de Setembro Local Fundação Ema Klabin - Rua Portugal 43, Jardim Europa
Valor R$ 150,00 na inscrição + uma parcela de R$ 170,00

OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA

OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA

FUNDAÇÃO EMA KLABIN

PROJETO CULTURA




Oficina de Escrita Criativa
Professor | Rodrigo PetronioDuração | 5 encontros semanaisDias | terças-feiras, das 14:30 às 16:30 horasDatas | 10, 17, 24, 31 de Agosto, 14 de Setembro Local | Fundação Ema Klabin - Rua Portugal 43, Jardim Europa
Valor | R$ 150,00 na inscrição + uma parcela de R$ 170,00

RELIGIÕES: UMA INTRODUÇÃO TEMÁTICA

RELIGIÕES: UMA INTRODUÇÃO TEMÁTICA
CURSO NA FUNDAÇÃO EMA KLABIN
PROJETO CULTURA

Religiões: uma introdução temática
Professor Rodrigo PetronioDuração 7 encontros semanaisDias quintas-feiras, das 20:30 às 22:30 horasDatas 12, 19, 26 de Agosto, 02, 09, 16, 23 de Setembro Local Fundação Ema Klabin - Rua Portugal 43, Jardim Europa
Valor R$ 200,00 na inscrição + duas parcelas de R$ 145,00



terça-feira, 22 de junho de 2010

CURSO: A ARTE E OS ARQUÉTIPOS










http://www.projetocultura.com.br/index.php/component/content/article/39-historia/146-a-arte-e-os-arquetipos

A Arte e os ArquétiposProfessor Rodrigo PetronioDuração 4 encontros na mesma semana- Início dia 05 de JulhoDias segunda à quinta-feira, das 20:30 às 22:30 horasDatas 05, 06, 07 e 08 de Julho
Valor R$ 125,00 na inscrição + uma parcela de R$ 125,00Local Fundação Ema Klabin - Rua Portugal 43, Jardim EuropaInscrições pelos telefones 2307-0767 e 8128-5521


O conceito de arquétipo pode ser entendido sob diversas perspectivas, tendo em vista uma ênfase na filosofia, na literatura, na arte, na antropologia, na teologia, na psicologia, na história das religiões ou na sua dimensão estritamente formal. Até na biologia, na física e na química há estudiosos que propõem teorias arquetípicas.Em todos esses contextos é possível compreender a sua estrutura e as suas funções, em uma perspectiva histórica, mas também atual. Basicamente criada por Platão, a noção de arquétipo se revestiu de diversos sentidos e amalgamou em si uma série de conceitos de natureza próxima: mito, símbolo, signo, figura, tipo, protótipo, alegoria, imagem, entre outras.
No século XX, foram criadas algumas novas abordagens para o arquétipo, que têm ganhado cada vez mais o campo de estudos e aberto novas frentes de interpretação. O tema é imenso. A proposta deste curso é apenas abrir algumas janelas e lançar luzes sobre este conceito produtivo, partindo da arte, da literatura, do cinema e de temas contemporâneos em evidência.

Aula 1 - Introdução. Aarkhé de Platão e o mundo das Formas: essência, forma, real, eidos e aparência. A era cristã e o sentido figural e revelado da interpretação: entre os arquétipos e a história. Arquétipo e Alegoria, Tipos e Protótipos: a leitura cristã do mundo das Formas. A visão arquetípica da Academia Platônica do século XV. Modernidade e esvaziamento arquetípico. O debate nos séculos XX e XXI. A Escola de Eranos: Eliade, Kerényi, Corbin. Jung e a Psicologia Analítica: as bases da teoria arquetípica na psicologia moderna. O renascimento do pensamento arquetípico: Guénon, Coomaraswamy, Burckhardt, Lings, Schuon e a Filosofia Perene. O Instituto Aby Warburg: Frances Yates e Edgar Wind. Dois gênios brasileiros na cena mundial: Mário Ferreira dos Santos e Vicente Ferreira da Silva. O debate atual: Gilbert Durand, a “teoria geral dos arquétipos” e as “estruturas antropológicas do imaginário”. A nova Antropologia do Imaginário. Teoria dos arquétipos literários: Frye e Mielietinski.

Aula 2 - O arquétipo nas artes. Princípios de geometria sagrada. Formas elementares do mundo e da consciência: a Forma das formas. O “naturalismo” grego: uma aberração? Leonardo e a literalização da arte arquetípica. A Alquimia: fonte inesgotável da ação arquetípica. O princípio de matematização do espaço. Marcel Duchamp e a crítica da “arte retiniana”: abertura arquetípica ou fraude? Retorno de novas formulações sobre a arte. Paul Klee, Paul Delvaux, Balthus, Bacon: o deslocamento arquetípico. Anselm Kiefer: os dons malignos de Lilith. Alguns contemporâneos.

Aula 3 - Os arquétipos na literatura. O poema sumério Gilgamesh e o fundamento das estruturas imaginárias da ficção. O Hino de Purusa do Rig-Veda: o Homem entre o Céu e a Terra. Orfeu e o orfismo. Do Céu e do Inferno. Dante e a estrutura arquetípica da Divina Comédia. O Quixote: equivocidade dos signos e loucura − a oficina cansada dos arquétipos. Fausto de Goethe: a oclusão da alma e o pacto com a Sombra. Dostoiévski: as bases arquetípicas do Homem e a consciência do Mal. Alguns poetas arquetípicos do século XX. Guimarães Rosa: entre Deus e o Diabo, a “matéria vertente” do Homem.

Aula 4 - Os arquétipos e o mundo contemporâneo. Imanência, materialismo e construtivismo: a Santíssima Trindade da modernidade. A cruzada dos chimpanzés contra as religiões. O simbólico, o imaginário e o real: as tramas do inconsciente. Do arquétipo ao Estado. A assimilação das estruturas arquetípicas pelo Leviatã: a redução à Ideologia. O sagrado reduzido a ideologia e a “ciência”: do fascismo ao holismo. A ditadura dos oprimidos: a oclusão das formas arquetípicas e o criptofascismo contemporâneo. Cultura de massas e Sombra Coletiva. O conceito de “desejo mimético” de René Girard e a violência sagrada. Violência, desejo mimético, bode expiatório. Crise dos “ciclos sacrificiais” e declínio das instâncias de mediação simbólica. O eu, os simulacros e os bloqueios à ação arquetípica. Os arquétipos e o cinema: alguns filmes e diretores: Lang, Murnau, Bergman, Tarkovski, Von Trier, Pasolini, Sokúrov, Dreyer.





Rodrigo Petronio é editor, escritor e professor. Formado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP. Professor do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema (AIC), professor-coordenador do Centro de Estudos Cavalo Azul, fundado pela poeta Dora Ferreira da Silva, e coordenador de grupos de leitura do Instituto Fernand Braudel. É membro do Nemes (Núcleo de Estudos de Mística e Santidade) da PUC-SP. Autor dos livros: História Natural, Transversal do Tempo, Assinatura do Sol, Pedra de Luz e Venho de um País Selvagem, entre outros.

CURSO: DANTE E A DIVINA COMÉDIA












http://www.projetocultura.com.br/index.php/component/content/article/62-dante-e-a-divina-comedia


Dante e a Divina Comédia
Professor Rodrigo PetronioDuração 4 encontros na mesma semanaDias segunda à quinta-feira, das 20:30 às 22:30 horasDatas 12, 13, 14, 15 de JulhoLocal Fundação Ema Klabin - Rua Portugal 43, Jardim EuropaValor R$ 125,00 na inscrição + uma parcela de R$ 125,00


Uma das obras mais traduzidas e comentadas no mundo depois da Bíblia, a Divina Comédia de Dante é um dos maiores poemas da humanidade e um acontecimento espiritual e literário basilar do Ocidente. Porém, para entendermos a sua raiz e a sua estrutura, é necessário não apenas ir além do que se designa modernamente como literatura, mas também adentrarmos domínios como o da história das religiões, da filosofia, da teologia e da hermenêutica dos símbolos sagrados. Mesmo as fronteiras geográficas e culturais disso que chamamos de Ocidente cristão devem ser postas entre parênteses, pois, sendo também uma das obras mais eruditas da história da literatura, é um mosaico que sintetiza referências antiquíssimas e de procedência vária, tanto a Oriente quanto a Ocidente, seja por meio de assimilação direta ou indireta.
Dante pode ser considerado o maior poeta órfico de todos os tempos. Ao propor, ele mesmo, várias camadas de leitura (literal, moral, alegórica, anagógica) e vários níveis de temporalidade, conseguiu uma proeza de ser um dos poetas mais humanos, na pintura dos afetos, dos vícios, das virtudes e das paixões, e ao mesmo tempo um dos mais transcendentais, ao capturar nossa condição e nossa fisionomia sempre sob um fundo de eternidade. O curso pretende levantar os principais elementos da obra, suas questões nucleares, bem como sinalizar os episódios mais importantes, como forma de orientação de leitura. Para tanto, pretende-se fazer menção a temas que vão desde assuntos históricos de época até concepções religiosas, poéticas e filosóficas que subjazem à sua estrutura.

Aula 1 - As origens da representação da vida após a morte. Poesia e Revelação: o poeta como vate-sacerdote. A invenção da imortalidade. A concepção órfico-pitagórica e a escatologia judaica: origens do conceito de imortalidade cristã. Platão e a alma imortal. As origens e as principais concepções de Inferno e Paraíso. Terra e Céu, Inferno e Paraíso. O Purgatório e os corpos intermediários. Virgilio e Platão: filtros das doutrinas esotéricas antigas. Dante e os poetas visionários arcaicos. A Divina Comédia: a poesia como gnose e a fundamentação tomista do Universo. Síntese entre poesia extático-visionária e arquitetura conceitual escolástica.

Aula 2 - Inferno: a estrutura do Inferno de Dante. Comparação com outros infernos. O problema do Mal. O Mal entre a privação e a potência: duas visões excludentes. A superação do maniqueísmo. A Mal como ausência de unidade ontológica. A divisão dos pecados e das punições e a hierarquia metafísica. A doutrina da apocatástase e o problema insolúvel da realidade do Mal. Principais episódios e personagens.

Aula 3 - Purgatório: uma “psicanálise em grande em estilo”. Transformação interior e redenção: metanoia e conversio. O sentido dos pecados de acordo com a “falta de amor”. Entre a obra humana e a graça eficaz. O processo de transformação e o sentido simbólico dos graus objetivos da natureza. O Paraíso Terrestre e a Árvore da Vida: redenção da natureza e regeneração da vida. Principais episódios e personagens.

Aula 4 - As visões edênicas e o sentido arquetípico do Paraíso. De Jardim a Cidade, de Cidade a Templo e de Templo a Eternidade: as diversas metamorfoses da concepção de Paraíso. Protologia e escatologia. A inversão dos vetores temporais: da Origem Perdida ao Fim do Tempo. Dos mitos cosmogônicos à Redenção Universal. A estrutura dos céus na Divina Comédia, os principais personagens e seus sentidos simbólicos. O Paraíso da Divina Comédia e a escatologia islâmica: Dante e Ibn ‘Arabi. Os graus do Uno. Retorno da alma ao Uno e confronto com o além-ser. Teologia negativa, mística da luz e apofatismo na ascensão do Paraíso. O Empíreo e o Primo Mobile. A reintegração de tudo em tudo e a unidade transcendente de Deus. Deus como Face e como Espelho.

Rodrigo Petronio é editor, escritor e professor. Formado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP. Professor do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema (AIC), professor-coordenador do Centro de Estudos Cavalo Azul,fundado pela poeta Dora Ferreira da Silva, e coordenador de grupos de leitura do Instituto Fernand Braudel. É membro do Nemes (Núcleo de Estudos de Mística e Santidade) da PUC-SP. Autor dos livros: História Natural, Transversal do Tempo, Assinatura do Sol, Pedra de Luz e Venho de um País Selvagem, entre outros.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

NÓS, OS FEMINICIDAS




O filme O homem que não amava as mulheres é bom sob diversos pontos de vista. Com um ritmo bem marcado, suspense, enredo cheio de minúcias e tramas que vão sendo criadas e desmanchadas em grande velocidade. O eixo da estória são homens de idades e procedências distintas que violentam mulheres. Dentre eles, há um serial killer que precisa ser encontrado. Claro, tem também o mocinho e a mocinha que acabam ficando juntos, como se supõe, com direito aos clichês toleráveis em nome do amor. Enfim, um filme que trata de todas as formas de violência, física, moral, sexual e simbólica, contra as mulheres, chegando ao seu limite, ou seja, ao feminicídio.
Mas o grande pecado do filme, se é que podemos dizer assim, ou a lacuna grave que ele deixa escancarada ao espectador, é que ele nos mostra apenas os frutos dessa violência, a sua gratuidade, sem em nenhum momento apontar para as suas origens ou se indagar sobre as suas bases. Assim, ao ocultar as motivações internas do feminicídio, transforma seus personagens em marionetes, em doentes mentais monstruosos e não-humamos. O que não deixa de dar o doce sabor da vingança pelo preço que eles pagam no final, ou seja, uma bela (e merecida) recompensa às mulheres, que saem do filme felizes por terem sido “justiçadas” e “redimidas”. Mas, assim, o filme transforma os acontecimentos em performances cinematográficas com um valor meramente moral, sem dimensioná-los sob um ponto de vista da estrutura mesma da sociedade contemporânea.
No fundo, caímos no velho mito da monstruosidade do Mal, e esquecemos a sua indefectível banalidade. Em outras palavras, é muito fácil fazer um filme sobre Jesus em que todos os cristãos se sintam comovidos com a “injustiça” cometida contra o Salvador. Mas no qual esses mesmos cristãos não se deem conta de que eles próprios, nas mesmas condições, com certeza salvariam Barrabás. De gota em gota, esquecemos que o Mal tem os traços do nosso rosto. Como nos lembra Drummond, em seu belo poema, em todas as manhãs do mundo despertam os “ferozes leiteiros do mal” e os “ferozes padeiros do mal”. É aquela “ração de crime” cotidianamente distribuída em casa. Está tão perto que nos é estranha, tão próxima que se faz invisível, tão imperceptível que nos alimenta, sem nos darmos conta. O Mal nos é mais familiar do que nossa roupa, do que a nossa pele, do que os nossos gestos cotidianos. Ele é aquele “pó da morte” de que fala o filósofo cristão Bernanos, que vai se infiltrando e se sedimentando em nós, no ar que respiramos, até a nossa completa (e inconsciente) aniquilação.
Se nos indagarmos sobre o movimento mesmo de liberalização sexual, ele corre em mão dupla e se dirige a ambos os sexos. Ao mesmo tempo em que temos a emancipação legítima da mulher e cada vez mais e em maior grau uma “igualdade” de direitos entre os sexos, ambicionada por todas as pessoas razoáveis, temos, dentre outras coisas, a consequente desfeminilização das mesmas, para que elas possam de fato adquirir a sua “igualdade”. Por outro lado e de maneira complementar, há uma progressiva e evidente “castração” simbólica do homem, de que não tratarei aqui, mas que está no cerne de alguns dos problemas do nosso tempo. Bom, até aí, tudo bem.
Mas o que pouca gente ressalta é que, afinal, nessa igualdade entra de tudo. Pois se durante tantos séculos coube ao homem o papel de poder sobre si mesmo, sobre os mais fracos e sobre o outro sexo, hoje esse “poder” está se diluindo velozmente por todos os indivíduos do planeta. Se eu “posso” vender meu corpo para uma revista gay, para uma agência de turismo sexual para senhoras ou para uma empresa de embalagens eróticas, as mulheres também “podem” ser atrizes de filmes pornô, prostituir-se ou serem consumidas em algum horário vago da agenda de um grande executivo. E nesse sentido, não valem argumentos sociológicos de boteco ou uma pseudofilosofia da condition humaine. O problema que se coloca é claro. Os desdobramentos sucessivos da modernidade implicam essa dupla condição: liberdade autossustentada que traz mais liberdade autossustentável, hipoteticamente regulada pelos expedientes da razão pública e da moral privada. Esse complexo movimento, por sua vez, vem salvaguardado pela tênue e paradoxal película de uma coisa extremamente abstrata chamada lei. 
Então, torna-se muito bonito, ou seja, muito moral, no sentido raso da palavra, falar de espancadores e de assassinos de mulheres, dos feminicidas em última instância. De fato, não deixa de ser importante tratar disso, como uma forma de alerta ou termômetro, para assegurar direitos conquistados e deixar a sociedade em vigilância para uma eventual regressão democrática. Mas colocar o problema assim implica em reduzi-lo à sua superfície. Porque esse sexo “frágil” é hoje composto por profissionais liberais, milionárias, executivas, taxistas, boxeadoras, professoras, prostitutas, bancárias, empresárias, caminhoneiras, traficantes, contrabandistas, criminosas, assassinas, todas elas “consumidoras”, dentre outras coisas, de homens, seja de fato ou em potencial. Todas mais ou menos inseridas nas malhas do “poder”, palavra que só é usada em sentido pejorativo pelos idiotas ou pelos hipócritas, para produzirem no leitor uma falsa neutralidade e a impressão de que eles, que a pronunciam, não o desejam. Como se diz em filosofia: o ser sempre deseja persistir em sua essência. Até as pedras “desejam” exercer algum “poder” sobre as outras pedras.
Então, qual seriam os traços básicos do feminicida do futuro? Ele certamente será bem diferente do assassino principal do filme, um jovem que “aprendeu” com o pai a estuprar a própria irmã. Talvez possamos vê-lo como aquele tipo de jovem tímido, feio, esquisito, fedido, avacalhado pelos colegas. Talvez ele ainda novo tenha bons sentimentos, e possa até ter alguma sensibilidade. Um adolescente pacato, meio boçal, e que amadurecerá sem conseguir criar recursos para sair de sua boçalidade. Quem sabe filho de uma mãe promíscua, prostituta ou mesmo incestuosa? Mas segundo o discurso vigente, isso pouco importa. Podemos muito bem continuar dizendo que o machismo é um dos maiores problemas do mundo desde há milênios. Podemos continuar encontrando novos expedientes de equanimidade entre os sexos. Podemos continuar repetindo que os corpos são construídos. Podemos continuar celebrando a Mãe Natureza e salvando as baleias. Podemos criar uma nova mitologia para a Grande Mãe, uma nova religião das energias da Anima e pôr um ponto final em toda essa história de patriarcado e repressão. Basta que sejamos todos “iguais”. Ou melhor, que façamos o percurso de “integração do feminino”, como dizem os psicólogos.
Esse mesmo adolescente virará um homem. Provavelmente a sua “integração do feminino” possa não funcionar muito bem, e então ele será consumido pelas mulheres, talvez por muitas delas, muitas vezes, impiedosamente. E estas provavelmente o trocarão bem rápido por algum outro objeto um pouco mais selvagem, performático ou aerodinâmico. Nessa voragem da circulação dos corpos, na apoteose do amor líquido, entre nádegas boiando na televisão e o silêncio desse personagem, sozinho em seu quarto, talvez lhe ocorra um dia uma ideia. Nada nova, nada original, desde os neandertais. Talvez ele sinta algo se mover do fundo de sua impotência, do fundo de seu ódio, do ponto mais recôndito da podridão que povoa os seus pensamentos. Talvez ele sinta, pela primeira vez, as suas veias, o seu sangue, os seus músculos. Sim. Finalmente há algo que o diferencia daqueles “seres” que são a razão de seu mal.
Da clava às cavernas, da navalha aos matagais urbanos, a cena não mudou muito em milhões de anos. E do estupro ao feminicídio, é um pulo. Isso demonstra que a complexidade do momento em que vivemos consiste no fato bem plausível de que esses jovens estejam se multiplicando. Quem sabe não vivamos sob a gestação de um exército de futuros feminicidas? E então? De quem é a “culpa”? Alguma feminista mais cara-de-pau poderia se perguntar se a “culpa” não continua sendo do machismo, que não se extinguiu de todo. Tese difícil de ser defendida nos dias de hoje, praticamente indefensável daqui a algumas décadas ou séculos. A “culpa” é da liberação das mulheres? Da emancipação dos indivíduos? Da modernidade? Do feminismo? Da democracia? Do progresso? Da igualdade? Obviamente, não. Afinal, do ponto de vista darwinista, a sobrevivência se dá mediante uma seleção natural dos mais fortes, não é? Não há premissa moral que regre a desmesura do devir histórico em suas sínteses objetivas e na efetividade concreta de todas as suas escolhas, individuais, irreversíveis e sempre contingentes. É muito mais provável e plausível pensarmos que a “culpa” é desses próprios adolescentes, que não se adaptaram ao funcionamento da engrenagem. E que possivelmente enlouqueceram por acreditarem em coisas inviáveis, inexistentes ou simplesmente obsoletas. Tipo, o amor. 

DEMO, CRACK & CIA



Sim. O problema do mundo são os mendigos. Na verdade, gostaria de falar do filme Hadewijch, de Bruno Dumont, ambientado nos dias de hoje, mas inspirado na vida da mística homônima do século XIII, e que passou na mostra de cinema francês que ocorreu em São Paulo esta semana. Mas me vi subitamente interpelado por uma série de artigos de jornal tratando do crescimento do consumo de crack, carinhosamente conhecido como “raspa da canela do diabo”. Como se sabe, os traficantes, como em qualquer iniciativa privada com fins lucrativos, controlam o ciclo da droga. Agora acabaram de aumentar o valor da grama de maconha de 2 pra 5 reais. Em um bom funcionamento capitalista, essa é a melhor forma de tirá-la do mercado. Mas, claro, a estória não acaba assim. Eles estão começando a mesclar pequenas doses de crack à maconha, para paulatinamente começar a formar seus futuros clientes. Os novos viciados em crack serão os atuais consumidores de inofensivos baseados. Esse é o projeto da década.
Seu filho ou sua filha, leitor e leitora, que gostam de queimar um baseadinho no Centro Acadêmico da universidade, sabe? Então. O demônio mora ao lado. Já dizia e continua dizendo, firme e forte, minha avó. E olha que ela nunca leu Hannah Arendt. Em termos logísticos, o crack é quase igual à cocaína. Em termos de lucro, a balança pesa desfavoravelmente: 300% de lucro na coca, 200% de lucro no crack. Mas não se engane. Isso se compensa em outras frentes. O que é interessante, na verdade, é ver como a distribuição dos números funciona. Porque a cocaína passou a ser droga de elite, e a maconha, droguinha de intelectual parasita. Então o crack tomou imensas projeções na balança comercial. Podendo atingir potencialmente classes que vão de A a E, tem um público consumidor virtual de 164 milhões de brasileiros. Exatamente isso. Mais de 90% da população.
Neste momento, levanto-me da cadeira e vou à janela. Leitor, moro no Largo do Arouche, centro de São Paulo. Na minha porta, todos os dias, moleques caídos, mendigos atravessados, neuras na fissura. Olho pela janela, e tudo dorme. Alguns trapos humanos vagam pela rua. Uns zumbis, com seus cobertorzinhos. É muito comum no centro de São Paulo esses trapos vagarem assim, ainda mais agora, que é madrugada. Uma pedra de crack, e você já está na nóia, no vício. Como a heroína, não há usuário de crack. Só há viciados. Porém, é muito diferente, um pobre-diabo desses, trapo do capeta, vagando na noite, e um drogado que tenha estrutura. Lembra do seu filho, falando de Marx, de libertação sexual, de surrealismo, no Centro Acadêmico? Então.
Nesta mesma semana, uma longa matéria sobre Billy Clegg, agente literário em Nova York, com carreira brilhante junto às mais importantes editoras dos EUA. Acabou de escrever sua autobiografia, na qual narra a sua passagem por mais de um ano numa clínica de desintoxicação. Orgias, rituais macabros, quase-morte, estado vegetativo. Clegg chegou ao fundo mais pardacento do poço, com consumo diário de várias doses de crack. Não chegou à morte, convenhamos, porque tinha estrutura. Estrutura. Essa é a palavra. Estrutura. A mesma estrutura que o filho do querido (ou querida) leitor (ou leitora) tem. A estrutura que o maldito guri que observo agora pela janela, arrastando seu cobertorzinho fedido, não tem. Azar o dele. Então. Vejamos. O filho ou a filha da minha querida ou querido leitor estão fumando seu baseadinho em paz. Eles são progressistas, desinibidos, já passaram por n revoluções sexuais. Coisa de 68 é passado distante. Hoje em dia o que rola são surubas cultas com os colegas e drogas variadas: ecstasy, LSD, pó, haxixe. Nada de ideologia. De romantismo revolucionário. Felizmente. Ao menos nisso, o progresso existe. E presta. Trepar sem ideologia foi o primeiro grande avanço da humanidade. Trepar sem amor será o segundo. Depois, vão se dedicar a alguma profissão liberal, seja nas ciências humanas, nas exatas, no direito, na medicina ou que tais. Eles têm escolhas, e as realizam. Leitor, isso se chama: cidadania. Eles têm a escolha da profissão, assim como têm a escolha de votar na Dilma. Eles têm a escolha de beber uma cerveja, de tomar uma coca-cola ou de fumar um baseado-pedra. Quantia mínima. Você nem percebe, cara. E dá uma brisa boa. Leve. Diferente. Escolha. É esta a palavra. Quanto mais opções de escolha, mais democracia.
Entretanto, façamos uma estatística em nada assombrosa ou mirabolante. Se o público-alvo do crack está projetado em torno de 160 milhões de pessoas, obviamente isso é uma estimativa meramente numérica. Disso se excluem todos os aposentados, donas-de-casa, avós, avôs, religiosos, padres, crianças, virgens, debutantes, energúmenos, doentes, parasitas e tantos e tantos quejandos. Chutemos a cifra de 20 milhões de usuários em potencial, 1/8 do número original. Que metade deles (10 milhões) seja mais efetiva enquanto usuários, e que 1/5 (2 milhões) desta cifra o seja de fato. Não serão usuários de crack puro, obviamente, querida leitora. A senhora acha que seu filho se parece com esse trapo humano que olho pela janela? Está ficando louca? Justo seu filho, que sabe línguas, fez estágio no exterior, balé, piano, natação, ginástica olímpica, e que hoje fuma placidamente seu baseadinho na universidade? Que coisa. Quem diria, seu filho, de trapinho nas costas, todo vegetal, se arrastando, entre merda e urina, no esgoto das noites, no centro de São Paulo? Aqui, justo na minha calçada? Então.
Como amante incondicional das palavras, nunca entendi por que a palavra demônio e democracia têm a mesma raiz. Os manuais escolares nos ensinaram direitinho: democracia é a cracia do povo, o governo do povo. Mas o que o povo tem a ver com o demo? Mais que isso, nunca compreendi por que a palavra demo, sozinha, quer dizer algo de consumo fácil, gratuito, distribuído para teste. É o seu sentido de povo. Mas e o seu sentido de Demo, Capeta, Fuinha, Cujo, Dito, Diabo, Caititu, Fominha, Abutre, Nego, Pindéu, Banguela, Satanás, Ó, Cabrito, Belzebu? Pensei logo que essas coincidências tinham sido invenção de algum neonazista. Ou de algum Capeta. Mas não. Como dizia minha avó, que nunca leu Hannah Arendt, o demônio mora ao lado. É tudo uma questão de escolha. De opção. A democracia é demo, porque é uma oferta quase gratuita, sempre à mão. Um sem-número de possibilidades. E de escolhas. Quase grátis. Demo. Escolha. Essa é a palavra, leitor. Memorize. A democracia é demoníaca, porque lida com a liberdade humana como quem lida com um manual, com uma bula, com um antibiótico, com uma pomada, com um revólver, com um tônico capilar, com um absorvente, com um guia de ruas. Na planificação democrática, tudo assume função de projeto a ser efetivado. Tudo tem um destino, como se tivesse um desígnio. Que bom, assim temos acesso aos bens de consumo, não? Ventiladores, celulares, GPS, cigarros, pornografia, prostitutas, maconha, crack. Já pensou, 2 milhões de usuários de crack soltos pela rua? Mesmo em um país desse tamanho, na concentração de uma grande metrópole, isso seria um arrastão de zumbis por todas as ruas e avenidas centrais. Mas esse arrastão já existe. E talvez exista um batalhão de futuros pedreiros (como são carinhosamente conhecidos) nos bancos universitários. Futuros assassinos? Não só da ridícula esquerda liberal. Mas também executivos e estelionatários de luxo. Futuros pedreiros. Todos eles são os moleques aqui da minha porta, leitora. Mendigos e demônios. Todos: Demo. Esse lixo humano, fedorento, que eu detesto. E detesto mesmo. Escória. Asco. Lixo humano. Resto biológico. Sobra das fezes de algum plebeu. Isso que eles são.
Então. O filme de Bruno Dumont fala de uma figura extremamente pura, que devotou sua vida a Cristo. Virgem. Ela não consegue tocar em um homem. E se diz amante de Deus. Amante de Cristo, em carne e osso. Amante. Simplesmente isso. A atriz, amadora. Não profissional. Amante. Filha de um ministro francês, é uma menina de alta sociedade. Não suporta a família. Nenhuma indireta pra você, leitora. Só estou narrando o filme. E então ela se interna em um convento. E o convento a expulsa. Vai encontrar Deus nas ruas – diz a freira. Ela não encontra Deus nas ruas. Encontra o demo. O Islã. Envolve-se com dois irmãos árabes. Um, bandidinho desnorteado. Outro, futuro homem-bomba. Um, falso religioso. Outro, verdadeiro. E em plena missão. Ela segue o religioso verdadeiro, correto? Sim. Porque ela é verdadeira. E no nosso tempo parece que a verdade sempre tem algum compromisso com o Mal. Não está a fim de meias-verdades ou de planos quinquenais. Tipo a sua família, bolsa-escola, ministros, baseadinhos em universidades, conversas fiadas, orgias, papos progressistas, esquerdismo liberal, PT, falta de vergonha na cara, ONGs, lixo marxista, besteirol intelectual, vagabundagem. Claro que sim. Depois da conversão, todos os preparativos para o que fica em suspense: ambos se explodirão no metrô de Paris. Quanto mais próxima do Terror, mais ela fica bela. Mais cresce como mulher. Então, leitor, será que seu filho vai estar com a moçada da uni nessas férias na França? Ou será que vai estar aqui na porta da minha casa? Não. Não. Acho que ele não viajou com os colegas maconheiros nessas férias pra Europa.
Hadewijch encontra Nassar no metrô. Ambos de jaqueta. Como são tristes as fisionomias no metrô, não? Como são tristes os dias repetidos de nossa rotina, essa rotina, espécie de arte de conduzir à morte com sussurros e palavras brandas. É isso: democracia. Império da Escolha. Liberdade do Demo. Cadeia de Satanás. Se Tudo é permitido, Nada é permitido. O Absoluto da Liberdade é o Absoluto da Opressão. Ainda não caiu a ficha, truta? Salve São Marquês de Sade! Padroeiro da modernidade. Seria isso? O pacto com o Cujo, lembra? Não é no redemoinho, não. Na encruzilhada. Não. Não é no fundo sem fundo do Inferno de Lúcifer. Não é com o titânico Satã de Milton. Não é fáustico. Nem mefistofélico. O pacto com o Demo. Escolha. Democracia. Opção. Liberdade. Crack. Cracia do demo. Isso. Palavras brandas. Opção. Escolha. Dá um trago desse seu baseado, truta? Canela do Demo. Arte de conduzir ao túmulo. Não com palavras gregas, como dizia Hipócrates. Mas com palavras suaves. Dir-se-ia quase doces. Como as fezes do menino na sarjeta, queimando uma pedra, agora, de madrugada. Como as doces manhãs de Paris, à margem do Sena. Enquanto o metrô não explode. Enquanto o metrô explode. Explode. Bem debaixo do Arco do Triunfo. O metrô explode.
Ato contínuo, Hadewijch aparece no convento. Cristo a salvou do suicídio? Estaríamos vendo sua alma? Em que plano se passa a ação? Ou ela desistiu no último segundo e correu, porta afora, antes da explosão? Nada se explica, como em todo bom cinema. Mas ela não suporta. Viver entre vermes, entre gente pardacenta, de meias-verdades, meias-patacas, meias-palavras. O meio-termo é uma ilusão dos sentidos, dizia eu outro dia a mim mesmo, em um momento de pura filosofia. Sim. Resta o suicídio. Nem mosteiro, nem rua. Nem casa, nem sarjeta. O meio-termo é uma ilusão dos sentidos. Sim. Na larga campina, no bosque do mosteiro. Ofélica, ela se lança, no lago. Afunda. Afunda. Gruda-se às raízes das árvores, submersas, álacres. Mas uma figura surge do fundo para desfazer o equívoco. Salva-a. É o carpinteiro. Acabara de sair da prisão. Homem de dentes podres, comidos pela vida. Semblante aceso. Tranquilo. Puro. Parece um animal em sua docilidade. O abraço de ambos sela um novo pacto. Fim.
Vou à janela. Penso: o novo pacto é a conivência com a fatalidade? É a aceitação de nosso destino miserável? Esse foi o pacto de Hadewijch? Primeiro com o Terror, desfeito? Depois com um pobre-diabo, consumado? Mas este não seria o demo? Ou seria Cristo, em sua mais abjeta (e bela) humilhação? Ela fez o pacto com Cristo, o Artífice da Glória? Ou com apenas mais um carpinteiro? Com um qualquer? Seria um pacto de glória, não de perdição? Seria essa figura bruta o emblema da nossa triste precariedade? Mas então era isso o Cristo que ela tanto amava? Vou de novo à janela. Atônito. Nervoso. Hesitante. Mais um trapo, sombra, fezes, fedor e nojeira. Corre de um lado pra outro, em alucinações. Não. Não. Não posso interromper minha missão nesse momento. Aperto o cachimbo e pingo dois gramas de veneno. Desço as escadas, escuras, paulatinamente. Ao sair, ninguém na rua. Só vultos e fantasmagorias do que virá a ser o amanhã. Vem cá, meu irmão. Vem cá, brother. Eu posso te ajudar na sua fissura. Segura aqui. Essa é na faixa. De cortesia. Ele acende a brasa do cachimbo e cai estático. Arrasto o corpo para o lado, pra não atrapalhar a passagem. Afinal, logo amanhece. É preciso deixar espaço pros pedestres. Levarão junto com o lixo. Democracia. Pedestres. Opção. Escolha. Fiz por amor. Foi por amor ao seu filho, leitora. Quanto antes, menos sofrimento. Faço o sinal da cruz. Volto para casa. No céu, a lua crescente do Islã. O problema do mundo são os mendigos.