quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

2046 DE WONG KAR WAI: ERA UMA VEZ O AMOR

O tema do amor é um dos mais explorados em toda a história do cinema. Chega a ser quase um recurso menor por ser tão universal e, ao mesmo tempo, tão passível de ser endossado sem grandes crises de consciência do espectador em geral, que tende a se identificar de saída com a proposta, seja ela qual for. De Casablanca a toda sorte de terapia amorosa grupal a que os produtores de Hollywood chamam de cinema, dos mais antigos registros cinematográficos, passando pelas abordagens mais eróticas, até toda série de filmes cuja tônica recai sobre alguma relação amorosa, vai uma floresta negra de infindáveis títulos que não cabe recensear aqui. O interessante é notar (e aqui vem uma distinção essencial) que muitas vezes esses filmes não tematizam o amor, mas uma relação amorosa em específico. Alguns diretores e filmes se propuseram enfaticamente a isso: Antonioni, Truffaut, Bergman e até mesmo aquele explícito Elogio do Amor, mais um dos tantos equívocos de Godard. Também recentemente tivemos o belo Amor em Cinco Tempos de François Ozon. Mas, muitas vezes, aborda-se o tema mais num nível teórico do que propriamente fílmico. Em geral, por mais abrangente que seja o enquadramento e por mais que nos identifiquemos com o que transcorre na tela, não é o amor propriamente o principal agente do espetáculo. Os atores o encarnam e o individualizam em personagens. Não nos remetem à sua causa primeira, ao seu mistério, à sua condição.
Em um sentido bastante diverso podemos entender o novo filme de Wong Kar Wai: 2046. O diretor já havia mergulhado no tema em um belo filme anterior, Amor à Flor da Pele, do qual este seria uma espécie de continuação. Mas aqui ele o leva às raias do paroxismo. Na atual maré rala do cinema, mesmo o europeu, que oscila entre grandes produções que dizem pouco ou quase nada e os filmes competentes, o famoso (e entediante) mito tecnocrata da competência, não deixa de ser um grande frescor respirar um filme como este. Façamos um resumo sucinto de seu enredo, pois não é ele que realmente importa. Nos anos 1960, em plena tensão de conflitos políticos, Chow vive de escrever pequenos contos ficcionais para um jornal. Decepcionado por uma desilusão amorosa, sai de Cingapura e se refugia em um quarto pobre de hotel. Escolhe o número que dá título ao filme, por ali ter morado um antigo amor, que nele foi assassinada por um de seus amantes. A partir de então sua vida é a de uma completa dissolução. Aquilo que podemos chamar de uma promiscuidade regrada, sem grandes arroubos ou perversões, mas com uma alta rotatividade de parceiras. O fato é que a vida do hotel começa a se entrelaçar à sua. Passa a ser o receptáculo das cartas apócrifas endereçadas à filha do dono, apaixonada impossivelmente por um japonês. A filha mais nova, adolescente lúbrica, quer tê-lo a qualquer custo e acaba fugindo de casa. A vizinha da frente, uma espécie sutil de prostituta, reluta muito em se entregar a ele, pois sabe que acabará se apaixonando. Como de fato acontece. E uma grande série de conluios amorosos se dá, até que o protagonista parte de volta para Cingapura e passa a ganhar a vida na noite, com o jogo de cartas. É quando conhece uma mulher misteriosa que tem exatamente o nome da amante que lhe fizera perder o rumo e fugir da cidade. Mais um amor em aberto, uma possibilidade que não se concretiza, e Chow parte enfim de volta para Hong Kong. Subentende-se que o faz para retomar a sua vida de dissolução, sem qualquer perspectiva mais sólida.
Não importam os desdobramentos da história. Aliás, no grande cinema, a história é o que menos interessa. É sempre um pretexto para acionar potências, forças, intensidades, afetos, singularidades, dar-nos, enfim, a fina flor da imagem-tempo, como bem o definiu Deleuze. O que temos, na verdade, no desenrolar dessas cerca de duas horas de uma discreta obra-prima, é uma das mais contundentes encenações do amor. Porém, não de seu apogeu, mas de seu eclipse. Em mimetismo com a impossibilidade do amor num futuro de máquinas, numa hipotética era de 2046, cujas relações amorosas se desdobram em um plano de ficção científica, saído todos os dias da caneta desse escritor-personagem, Kar Wai nos dá uma antecipação da ruína futura do amor, que se faz presente. E, no nosso caso, também passado. Eis a estratégia narrativa que suspende a contingência temporal. O amor que não poderá ser já não o é. E, para nós, já não o é desde há muito tempo. Nesse sentido, ao recorrer à ficção científica, que é parodiada e desmontada para demonstrar, em um fundo artificialmente atemporal, a impossibilidade do afeto e a incomunicabilidade entre as pessoas, 2046 se filia quase que explicitamente ao Solaris de Tarkovski, provavelmente um dos maiores artistas do século XX.
Porém, diferente da proposta do diretor russo, há aqui um apelo sexual. No filme de Kar Wai, a sensação de vazio e incomunicabilidade se reveste do mais transparente hedonismo e pode ser entendida de muitas maneiras. As mais diretas dizem respeito à própria gama de situações que o afeto pode nos proporcionar. Mas há uma leitura mais fina, sub-reptícia. Ela se relaciona ao próprio estado atual da sociedade e da cultura, e não se trata de um fenômeno ocidental ou oriental, mas do mundo todo. Resumindo grosseiramente aqui as idéias de Zygmunt Bauman, se a modernidade pode ser definida como a instauração da fluidez como a grande moeda do mercado de bens materiais e simbólicos, nesse contexto o ocaso do amor era não só esperado, mas inadiável. Se também as relações humanas passam a ser subsumidas à transação e à transitoriedade de um mundo líquido, não é de se espantar que a liquidez dos corpos no mercado do amor seja desde há muitas décadas um fenômeno inexorável. Para usar a expressão do sociólogo polonês, é a era do amor líquido. Estaríamos hoje vivendo o ápice desse processo de fluidez em todas as instâncias de nossa vida, da qual a mais notável e, dir-se-ia, mais polêmica e fatídica, seria a das relações amorosas.
Ora, o amor líquido, ao contrário do que possa parecer, não é um manancial inesgotável de virtualidades e possibilidades de novos vínculos e de novas formas de amor. Pelo contrário, é a suspensão, a impossibilidade de todo vínculo, tido como obsoleto, a mesma suspensão reivindicada pela tão aclamada liberdade sexual, que hoje em dia só ilude idiotas. Por outro lado, vivamos ou não em um mundo de idiotas (há boas almas que acreditam que não), as estruturas que o regem são sustentadas na impermanência, na fugacidade, na transitoriedade, em uma palavra, na liquidez. Em uma constante luta pela legitimação da paixão em uma realidade dominada pela hipocrisia das formas sociais enrijecidas pelo hábito e pelas instituições, a modernidade flexibilizou as relações e, com elas, também o amor. Agora, entrincheirada, vitimada por sua própria criação, oscila indefinidamente entre o desespero pela substituição rápida de parceiros e a hipótese cosmética de uma vida a dois perfeita, moeda das mais correntes na mídia. Entre o real descartável, porque sempre insuficiente, e o ideal fraudulento, porque totalmente estéril em sua perfeição, nunca fomos tão críticos, nunca fomos tão livres em relação ao amor. E, ao mesmo tempo, nunca fomos tão solitários. Diante dessa situação, em meio a esse hiato, essa mesma vida moderna não consegue nos oferecer nada mais do que três saídas alternativas no que lhe diz respeito: o cinismo, a farsa ou a hipoteca.
No primeiro caso, temos a opção pelo hedonismo, como faz o personagem principal de 2046. Mas mesmo nele, vive-se no inferno. E não é necessária grande abstração filosófica nem recorrer a complicadas engenhocas metafísicas para entender que se a experiência não é passível de singularização, resulta daí que ela mesma se anule como experiência, perdendo sua espessura simbólica, e até mesmo sua própria definição ontológica. Reduzida a um caos amorfo de sensações que já não se distinguem, acaba por se transformar em um conjunto de realidades puramente nominais. Vive-se em um universo onde tudo se passa, mas nada acontece. É o spleen, o tédio, a massa das sensações, a liberdade total do sujeito diante do mundo que o circunda, mas que é igualmente desencantado e desinteressante em toda a parte. Em uma palavra, é o gosto da novidade.
Mas o filme de Kar Wai é fino nesse aspecto. Diz-nos que o prazer é, a um só tempo, liberdade e túmulo, ponto de fuga do imaginário e dilapidação de todo recurso amoroso. Nesse contexto, a vida do libertino, em tempos modernos e mais especialmente pós, como o nosso, não goza nem do benefício da ampliação das práticas como recurso para potencializar o prazer diante da sua inescapável neutralização, do incontornável esvaziamento da experiência tomada em si mesma, como seria em Sade, por exemplo. Porque hoje, mesmo a transgressão já vem prevista e prescrita pelo modelo que ela tente quebrar e, ao refutá-lo, o repropõe, em chave inversa. Toda novidade já vem prevista pelo cardápio que a assimilará, para que também ela possa ser trocada, aceita, consumida. Mesmo o que tenta se fixar, acaba por se desmanchar, no fluxo líquido dos valores e práticas que não se sustentam em nada e não sustentam nada. E nada é mais gritante nesse sentido do que a impossibilidade de se lidar com o amor em liberdade, vivida justamente por todos aqueles que mais padeceram das agruras dos limites e da rigidez. Dito em outras palavras, hoje em dia o perfeito cínico é aquele que pensa que o amor será redimido pelo hedonismo. É cínico porque quer transformar uma energia diáfana em algo quantificável, na estatística dos corpos que se encontram e se cruzam, para depois se dissiparem em uma forma qualquer de desprezo ou indiferença.
Na segunda hipótese, temos a manutenção das formas mais tradicionais dos relacionamentos. Sem pensar em qualquer positividade, em maneiras mais ou menos corretas de se viver no interior do rio mutável da história, ela também não deixa de apresentar suas dificuldades. Não que a história se repita como farsa, como queria Marx, mas a experiência mesma engendra suas formas históricas, em todos os quadrantes de nossa vida. Como eixo de sustentação, como âncora de um mundo líquido, a melhor saída seria o casamento, revisto e repensado como forma autêntica de viver o amor em toda a sua potência. Porém, mesmo ele se tornou uma miragem. Não como defesa de causa ou impossibilidade a priori, mas como uma realidade deslocada, excêntrica dentro de uma vigência histórica que age como um rio caudaloso: transborda, nos varre e arrasta consigo tudo em seu curso. É contra esse rio que se tem que lutar. E, nesse caso, mesmo a fixidez almejada por um sujeito isolado acaba redundando em idiossincrasia, deslocamento, desajuste. Exatamente o que o personagem de Kar Wai vive em relação àquelas mulheres que ele poderia potencialmente amar. Arritmia e distopia: o amor líquido, como valor coletivo, não desfaz apenas a fixidez do amor, mas engendra a própria impossibilidade desta fixidez no âmbito individual, produzindo, à sua revelia, a excentricidade e a marginalidade dos sujeitos que a queiram.
Por fim, temos a aposta lançada por Bauman: a hipoteca. A possibilidade do vínculo amoroso lançada ao acaso, já que apenas no acaso é possível a esperança. Um futuro previamente conquistado por nossa vontade, onde possamos viver o amor como amor, a despeito da transitoriedade ou da fixidez do mesmo, e não como um entorpecimento coletivo, seja ele regido pela pura experiência ou pela pura idealização, pelo mais cru hedonismo ou pela renúncia, na mais completa fixidez ou na mais eufórica dissolução. Também onde possamos vivê-lo à revelia dos códigos morais e, mais que isso, também de princípios imorais ou amorais que existam apenas para rompê-los. Que seja sempre visto como uma potência, no que essa palavra traz de mais profundo, ou seja, uma mescla de possibilidade e força. Mas tal transformação exige uma mudança das práticas, dos valores, das crenças. Em suma, de quase tudo. Parece que mesmo aqui estamos diante de uma visão do amor como algo virtual, algo que não é acessível ainda, que se desdobra como um horizonte tão almejado quanto intangível.


Sim. E talvez seja essa, em termos, a aparente (e pessimista) resposta de Kar Wai. Porque mesmo a substância mais “espiritual” do amor, que poderia por ventura sair ilesa desse combate, hoje em dia se nos afigura confiscada pela melancólica impossibilidade de ser equacionada com a fluidez do mundo. Este, em todas as suas instâncias, sejam simbólicas ou materiais, é sempre vazado pela luz fantasmal das estatísticas, da perfeição, das performances e do desempenho mensurável. Mais que isso: da possibilidade iminente de troca, que também permeia o imaginário e todas as relações sociais. Ao introjetar a ética da troca nas relações e o valor da perfeição, que regra a dinâmica do capitalismo, na parcela mais íntima de nossas vidas, ao fazê-los se espraiar em todas as suas capilaridades, o mundo moderno retirou a potência do amor. E o fez, paradoxalmente, porque dessa forma retirou a sua pobreza, como nos diz Platão na sua famosa definição do deus no Banquete. Amor é pobreza, não perfeição, e só o recurso pode saná-la provisoriamente. Quanto mais falta há, mais pleno ele é.
Elementar. Sabendo-se que, ao contrário da falta, que lhe é constitutiva, o caráter fluido da força em questão não é algo que nasça da prática amorosa, não é algo próprio do amor, mas sim a ele agregado, por um mecanismo mais amplo de trocas materiais, não há como sequer tocar a sua natureza mais primária sem antes ter que passar por uma longa jornada noite adentro, para lembrar aqui o belíssimo A Noite de Antonioni. Não há como redimi-lo, sem se despir das muitas e muitas camadas de preconceitos criados pela liberdade. E isso evidencia por que essa jornada culmina, cada vez mais, para a maior parte das pessoas e na maioria das vezes, não no erotismo ou no apogeu do sexo, como se espera. Mas sim na solidão dividida entre dois corpos numa mesma cama, numa mesma cidade, num mesmo país, no mesmo mundo. O princípio da esterilidade compartilhada é vivido em seu esplendor, quase como um resultado previsível. Trata-se da glorificação maior da modernidade, corolário natural de seu sonho de subverter todos os tabus.
Não espanta que o tema do amor, ele mesmo, não o da desilusão pequeno-burguesa de pequenos casais amuados em seu desespero e gigantes em sua insignificância, tenha ficado tanto tempo em suspenso. E principalmente passado à larga de boa parte da produção cinematográfica. Também é deveras compreensível que a era do amor líquido, a era do maior e mais efetivo liberalismo econômico, sexual, político, religioso e adjacentes, seja também a era do imaginário mais domesticado e a dos artistas mais covardes de que se tem notícia. Por seu turno, em sua forma histórica, as instituições mais tradicionais, como o casamento, têm dificuldade de dar conta do amor em sua nascente líquida. Estão contra a parede e muitas vezes ainda continuam sendo maneiras que a Igreja encontrou de se desintoxicar do amor, como queria Nietzsche. Já a realidade desse afeto potente, em nosso tempo, se transformou a ponto de ser identificada a práticas, meios, modos, usos, formas, gêneros, opções, fetiches, grupos, preferências, panfletos e toda uma sonolenta, insuportável lista que diz respeito apenas e exclusivamente às modalidades amorosas, mas que cala, estrategicamente, no que concerne à natureza do amor, ao seu mistério, ao seu enigma, ao seu milagre. Coisa tão previsível como o encontro físico de dois corpos. Porque os corpos querem apenas queimar e nós, consumir. Não há espaço aqui para reflexão, porque ela obsta a troca; muito menos para uma experiência que vise a essência, pois ela será, com toda certeza, contraproducente para a economia amorosa.
Pode-se objetar que o filme às vezes resvala no kitsch, sobretudo nas cenas de ficção científica, que mesclam alta passionalidade a um ambiente futurista de robôs. Mas tal transbordamento perde o aspecto negativo se o entendermos como um recurso mesmo que Kar Wai encontrou para mostrar o amor em sua pulsão mais primária, em seu grau passional mais elevado, e que por isso mesmo não pode (e não deve) evitar o excesso. Outra crítica seria à aparente fraqueza do universo feminino que é encenada na tela. Porém, aos poucos, ela se dilui nos contornos mais especificamente humanos dos personagens. E sentimos que todos estão na mesma sintonia, se equivalem na distância, na mesma arritmia que promove o encontro, mas impossibilita a união.
À guisa de parêntese, em um dado momento do filme somos informados que um andróide é incapaz do amor. Coisa a princípio óbvia. Mas que deixa de ser no momento seguinte, com a explicação do motivo, que é elucidativa. É incapaz, não por uma característica de seu sistema técnico, posto que já amara antes. Mas por uma impossibilidade ontológica do próprio afeto. Nossa miséria não é fruto da perda da sensibilidade por conta da tecnologia ou de uma perda de nossa humanidade diante da modernização, mas de uma perda da potência mesma da entrega, uma atrofia do próprio mecanismo sensível e de doação, seja ela vivida em um paraíso de máquinas ou no inferno solitário de um quarto escuro. Essa condição só nos evidencia uma coisa: somos reféns daquilo que nos liberta. E esperamos indefinidamente viver em plenitude aquilo que nos libertará. Quem sabe, um dia?
O amor absoluto de que falavam os surrealistas, entendido como o princípio mesmo da revolução, deixou de ser uma utopia e se transformou em uma miragem, em um completo fantasma. Se a anomia amorosa já nem se ocupa mais dos afetos, quem dirá de seu sentido político mais amplo. Porém, uma coisa é certa. Essa tão propalada revolução não virá pela economia, pela política, pela ideologia, nem por quaisquer dessas grandes abstrações com a qual o Ocidente vem se entorpecendo há séculos. Mas de algo bem mais diáfano e pouco palpável, algo tanto mais impossível quanto provável. Por ora, resta-nos o consolo dessa mulher fumando ao lado de uma grande placa de néon do Oriental Hotel, contra um céu simultaneamente absurdo e real. Ao fundo, a voz alienígena de Connie Francis cantando Siboney. Em 2046, o diretor chinês Wong Kar Wai fez algo muito mais insólito do que uma ficção científica e, a um só tempo, algo mais real que a própria realidade. Ele filmou o que efetivamente não existe: o amor.

O LIVRO MUDO DO MUNDO

Marcelo Coelho


Não dá para postar na íntegra “Assinatura”, o belo poema que leio em Pedra de Luz, de Rodrigo Petronio, (editora A Girafa), mas as estrofes que reproduzo abaixo já são suficientes, acho, para dar idéia da grande imaginação poética do autor, nascido em 1975.

Ele não tem medo dos poemas longos, das palavras “nobres”, como “amaranto”, “vinhas”, “alfombra”, “safira”, nem dos versos que são bonitos, bonitos sozinhos, sonoramente, e antiquadamente, como

Âmbar diáfano que teu coração irriga
(“Música natural”)

ou

Em algumas carícias breves abatida

(“Estampas de Minas)

Rodrigo Petrônio também não procura esconder as influências variadas (Rilke, Augusto dos Anjos, Dora Ferreira da Silva, Augusto Frederico Schmidt) que retornam com freqüência aos seus poemas, e que muitas vezes são o ponto de partida para um diálogo explícito com algumas obras que lhe servem de inspiração. Assim, “Memórias de um Século” começa com uma menção a Apollinaire:

Está cansado desse mundo antigo (...)?

E o fantasma de Drummond é invocado repetidamente, por exemplo em “Quetzalcoátl” (“Sou apenas um homem americano...”), em “Sobre a folha de água corrente” (“Quem se lembra de dinamitar Manhattan?”), assim como em “Assinatura” (a lua “diurética”). Mas vamos às estrofes de “Assinatura”.

Olho no céu essa lua
Essa esférica bacia
Que molha todo esse mundo
Com sua prata derretida

Olho no céu essa lua
O que é que nela palpita?
Seria o sonho dos vivos
Que pra ela à noite migra?

Olho no céu essa lua
Poética e radioativa
A mesma que sobre Herodes
Pousou suas asas de brisa

Olho no céu essa lua
Que esparge sua bênção fria
Sobre todas as criaturas
Cospe sua ração líqüida

...

Olho no céu essa lua
Que ilumina São João
Com a cabeça separada
Do corpo em putrefação

...

Olho no céu essa lua
Esse disco de algodão
Que o discóbolo lançou
Há dois mil anos do chão

...

Olho no céu essa lua
Em seu alcoólico elixir
Seus mil dedos de anêmona
Afagam o que está por vir

...

Olho no céu essa lua
Não é aérea ou mineral
Sua compleição feminina
Sua coloração de hospital

Olho no céu essa lua
Canteiro de turmalina
Despeja luz sobre tudo
Com tinta branca se assina

No livro mudo do mundo.


Leia:
http://marcelocoelho.folha.blog.uol.com.br/arch2008-01-01_2008-01-31.html

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

NAS TRILHAS DE UM PAÍS SELVAGEM

Entrevista cedida a Victor del Franco

Editor da Revista Celuzlose

Celuzlose − A sua poesia dialoga bastante com temas e autores de natureza "mítica-mística". De que maneira surgiu essa aproximação? As suas leituras da adolescência já indicavam esse percurso?

Rodrigo Petronio − Gosto muito dessa relação da poesia com o mito e com a mística. No caso do mito, acredito que toda a poesia e toda a arte partam de uma abertura mítica. Esta é a raiz de onde nasce a criação. Para ser mais claro, acredito que o mito seja o princípio de inteligibilidade do mundo. O mito é a clareira que soma em si todas as perspectivas possíveis de acesso ao real, como aquela floresta de Ortega y Gasset, que uniria em si a soma de todas as veredas contidas nela. Por isso, a poesia é mítica e a sua realidade se mostra como um afastamento ou aproximação de uma perspectiva originária, espécie de nascente da linguagem. Mas para tratarmos disso, seria preciso uma digressão que não cabe neste diálogo. No caso da mística creio que seja uma modalidade de compreensão e da linguagem um pouco mais específica, e tenho me interessado muito por ela. Faço parte do Núcleo de Estudos de Mística e Santidade (Nemes), coordenado pelo Luiz Felipe Pondé, e que tem me trazido muitos ensinamentos valiosos nesse sentido. O interesse talvez tenha vindo de minhas primeiras leituras de Blake ou mesmo da ideia de uma mística da transgressão, contida em Bataille e em autores modernos que seriam, na expressão dele, místicos de um mundo sem Deus. Só fui compreender melhor Allen Ginsberg, por exemplo, quando percebi a sua conexão com a mística hassídica, e, do ponto de vista formal, o quanto Kaddish e O Uivo tinham a ver com a essa tradição judaica de cunho mais “profano” e popular. Porém, por mais aberta que possa ser a incorporação do termo mística pela arte e pela literatura, esse diálogo pode transbordar a pertinência da mística e acabar gerando meras mistificações e equívocos. Além disso, acabei criando algumas dúvidas em relação à primazia da transgressão na arte moderna, se ela não nos levaria inevitavelmente a um impasse. Por isso, de tempos para cá, tenho me afastado dessas concepções livres demais da mística, e me dedicado a estudar a tradição e a literatura da mística ortodoxa, se é que podemos dizer assim, sobretudo a chamada mística especulativa, derivada da teologia negativa ou teologia apofática. Nos primeiros padres da igreja grega, como Nemésio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, pelos quais tenho uma grande admiração, já encontramos uma teologia mística, que transcende os princípios racionais da filosofia que lhes serviu de base. Depois temos os neoplatônicos, como Porfírio, Jâmblico e, sobretudo, Plotino, e o Pseudo-Dioniso Areopagita, dos quais nascem os fundamentos da teologia negativa. A obra do Pseudo-Dioniso é uma maravilha, um épico do espírito em sua busca tateante da luz. É um ponto de clivagem tanto a ocidente quanto a oriente. E ela será de novo o elo perdido de união entre a filosofia e a teologia gregas e latinas no trabalho colossal de Scotus Erígena, que além de tudo faz também a ponte entre a mística antiga e toda a mística moderna, seja como tradutor do Pseudo-Dioniso, seja como um dos maiores representantes da teologia negativa no Ocidente. É desse eixo que nasce a mística da luz do século XII, sobretudo em Chartres, com Bernardo de Clairvaux e Hugo de Saint Victor, e, um século depois, São Boaventura. É desse eixo que floresce Ruysbroeck e a mística renana, com Tauler, Suso e o insuperável Mestre Eckhart. Deles se vai a San Juan de la Cruz, a Santa Teresa D’Ávila, a Silesius. Há também a tradição sufi da mística persa. Creio que Attar, Ibn Arabî e Rûmî estejam entre os maiores poetas de todos os tempos, além de terem escrito obra que tangencia os limites da compreensão e da linguagem, que singra sempre no limiar entre a consciência de si e a luz do mundo. E o caminho da mística não se esgota aí, não pode ser entendido como uma etapa superada do pensamento, como querem os positivistas de todas as latitudes. O exemplo de Simone Weil, no século XX, o demonstra, com proposta e forma muito distintas, mas ainda assim ancorada no fundo sem fundo da mística, bem como os de Heidegger e Wittgenstein, para mencionar casos extremos, na filosofia. A apophasis (impossibilidade de dizer), a kenosis (esvaziamento de si), a metanoia (transformação interna radical), as ideias do homo viator e do itinerarium mentis in Deum, o grau zero da consciência, a relação simétrica entre vazio da consciência e plenitude do mundo, a linguagem que busca uma excentricidade de si mesma, o fundo sem fundo (Ungrund) de que fala Eckhart, o desprendimento radical, no qual o próprio Deus se desprende de si e deixa de ser Deus: os temas da mística já são poesia em estado bruto.

Celuzlose − Aproveitando que você faz uma referência à teologia negativa, li um comentário seu sobre a obra de Augusto dos Anjos em que você desenvolve um conceito denominado “princípio de negatividade” ou “afirmação negativa”. Fale um pouco desse conceito.

Rodrigo Petronio - Augusto dos Anjos é um dos poetas brasileiros mais importantes para mim, embora sinta pouco a sua marca naquilo que escrevo. Às vezes temos admiração por um autor, ou até mesmo incorporamos elementos seus à nossa revelia, mas eles acabam não sendo centrais para o conjunto do que escrevemos ou para a nossa poética. O que gosto nele é a sua falta absoluta de definição, que é fruto de uma postura selvagem em relação à poesia, esta sim, mais moderna do que muitos modernismos. Sua forma é de cunho parnasiano; seus temas científicos poderiam ser tidos como naturalistas, ou como um enciclopedismo tardio, de almanaque, à moda do século XVIII, mas acabam sendo talhados em pinceladas grossas que se aproximam mais de alguns simbolistas excêntricos; algumas de suas paisagens são francamente baudelaireanas, mas ao mesmo tempo nada nele soa a spleen ou a tédio decadentista, estando mais próximo da podridão estelar e dos movimentos recônditos de pólipos e moneras do que de uma afetação finissecular de uma consciência crítica parisiense; por fim, em seus melhores momentos, creio que Augusto dos Anjos se aproxime de uma das poucas definições convincentes que lhe servem: um poeta expressionista. Um dos poucos, talvez o único expressionista brasileiro. Um expressionista sui generis que, obviamente, não chega aos voos de um Gottfried Benn nem à genialidade de um Trakl. Mas que assim mostra o seu lugar absolutamente excêntrico e, por isso mesmo, dos mais enraizados no imaginário brasileiro, com suas idiossincrasias e equívocos, com seus desenvolvimentos regressivos, plenos de contradições que, em arte, são um sinal de mais, não de menos. Quanto ao princípio de negatividade, é um conceito que tenho desenvolvido e que noto na arte sobretudo a partir do século XVII, especialmente a partir do Dom Quixote, mas que retroage ao século XII e até um pouco antes. Ele tem relação com um esvaziamento dos núcleos provisórios de sentido da realidade. Não é um conceito de ordem mística, pois a kenosis da mística acaba por reafirmar a transcendência divina. Esse conceito diz respeito, sim, aos níveis de articulação entre a linguagem e o mundo. Acredito que esse princípio negativo esteja no cerne da poesia de Augusto dos Anjos, e sinto que, em razão dessa especificidade, seja muito difícil vinculá-lo à mística sem forçar demais o que tradicionalmente se entende por mística, como eu disse anteriormente. Dos Anjos identifica o movimento de nossa consciência à vida infracelular e à pulsação cósmica, feita de geração e corrupção, de devir e de decomposição; em alguns poemas, faz desse movimento uma espécie de apostasia do sentido não manifesto do mundo. Mas essa sua visão nunca nos conduz a uma transcendência da consciência em relação à linguagem, da linguagem em relação ao mundo e de Deus em relação à consciência, à linguagem e ao mundo, como se propõe no horizonte da mística. Para Dos Anjos, esse percurso se dá como intensividade e extensividade da matéria; ele, entretanto (e essa é uma das ironias de sua obra), o simula como ato divino, como se Deus estivesse presente no drama cósmico da criação e também no verme, no esterco, na podridão, no húmus e em cada um dos órgãos e secreções de nosso corpo, sem metáforas holísticas e sem totalizações simbólicas, tão ao gosto da nossa Nova Era. Para o Mestre Eckhart, o Universo é o movimento de editus e reditus, ou seja, a respiração de Deus; para Dos Anjos, é a sístole e a diástole do corpo de um Deus morto, de um Deus de tal modo humilhado pela matéria e subjugado pela degradação que o constitui, que sua potência praticamente consiste em confessar seu fracasso, sua glória e seu corpo glorioso se reduzem à sua mais confessa, suja e irredimível materialidade. Nesse sentido, Dos Anjos é profundamente cristão, pois ele realiza, em uma lógica ad absurdum, a descensão do Verbo no corpo até a sua consumação, de modo que sequer a carne ressuscita. Já o movimento da mística é praticamente oposto. A impotência é sempre e em primeiro lugar do sujeito que conhece, do intelecto arrogante em seus disfarces e miserável em sua clara e distinta estupidez. E quando a impotência é de Deus, o é para revelar um mais-além, que não é nunca material, mas sempre um abismar-se no Nada que é Deus e que é o que está além de Deus. O movimento místico quer ultrapassar o Deus concebido como substância, acessar o que se encontra além de toda a substância, inclusive das substâncias divinas. Daí sua especulação chegar aos limites do compreensível e também do existente, ao abismo sem forma e aos fundamentos sem fundos da alma, que é o Nada divino. Em Dos Anjos, essa viagem da alma estanca na plenificação absoluta da matéria e em sua imanência, além da qual não há absolutamente nada.

Celuzlose – Este conceito também está presente em sua poética?

R.P. − Creio que sim, mas talvez em um sentido mais amplo. Este livro mais recente, Venho de um país selvagem, por exemplo, é um livro que ronda uma atmosfera de conflito entre o positivo e o negativo, entre a floresta e o deserto, entre a afirmação da terra e o exílio. Há nele uma abertura para a transcendência, mas ela parece que nunca se completa, pois há também um conflito de base em todos os poemas. Isso foi intencional. Mais que isso: foi involuntário. Precisava ser assim. Na verdade, esse é um dos pontos que gostaria de superar em um próximo livro. Precisava dar nome à abjeção, tocar a ferida, incorporá-la, vivê-la. As imagens de capa e quarta capa, do Farnese de Andrade, foram meticulosamente escolhidas. Quis incorporar a figura da vítima sacrificial. Falar dela em primeira pessoa, para depois ressuscitar, ao fim da travessia. Talvez meu próximo livro comece pelo fim deste. Tenho sentido necessidade de chegar a uma síntese de vivências e da linguagem. Não tenho dúvida de que para haver o milagre da vida é preciso que nos defrontemos com o Mal, que o incorporemos, que o conheçamos, cada vez mais. A passagem pelo Inferno para chegar ao Paraíso não é meramente nominal ou um simples epos literário. Tampouco é uma tola superação, entendida e catalogada em nossas cabeças quadradas, sejam elas católicas, iluministas, marxistas ou positivistas. Essa passagem é necessária, essencial. A Queda não foi um erro, mas a primeira etapa da salvação. Os místicos, os avatares, os santos, todos eles só foram o que foram porque perceberam o Mal, a abjeção, a miséria, a falta de sentido, o absurdo. E souberam amar o Mal, para poder transfigurá-lo. Cristo era espiritualizado? Pois bem: traduziu sua espiritualidade em chagas e pústulas pelo seu corpo. Foi pregado numa estaca entre dois bandidos. E ao fim abandonado pelo Pai. Tudo isso também faz parte da mensagem de Cristo, e não pode nunca ser ignorado. Buda só se iluminou quando se deu conta do nojo de existir, da infâmia que é estar vivo, do asco que é o sem-sentido da vida. Não adianta querermos ficar apenas com o lado compassivo de sua mensagem, de seu amor infinito pelas criaturas sofredoras. Teremos apenas metade de Buda. É preciso passar pelo Nada para chegar ao ser. Esse caminho não é reversível nem tem atalhos. Creio que em tempos de religiões de bidê, de holismo, de Nova Era, de sínteses de não sei o quê com não sei o quê, de massagens coletivas, em que o sagrado está cada vez mais sendo reduzido a funções terapêuticas, essa mensagem terrível das grandes religiões deve estar cada vez mais viva. Isso não quer dizer que não se busque a luz. Se não houver integração, os conflitos se transformam em espelhamentos. Viram miragens intelectuais. Repetições infernais e obsessivas. Como se acreditássemos no mundo das representações, como se as máscaras fossem a realidade última. Assim nos afastamos do Espírito e chegamos à psicanálise. E aí tudo se perde. Embora Venho de um país selvagem sinalize a morte das representações, tente tocar a inocência e atingir uma suposta nudez, há nele um conflito de fundo entre desgraça e redenção. Ao passo que para o Espírito, não há cisão. Agora estou num trânsito, tentando achar as sínteses possíveis depois da experiência do Nada.

Celuzlose – Nesse contexto, a poesia está mais relacionada com uma forma de revelação ou de loucura?

RP – Há uma frase de que gosto, segundo a qual há apenas uma diferença entre o poeta e o louco. Ambos vão em direção ao abismo, mas o poeta desvia, enquanto o louco cai. Essa frase é um pouco descritiva demais; na vida, as coisas não são tão nítidas. Algumas vezes o poeta pode cair... Mas há uma distinção, sim, entre o delírio da criação e a autodestruição. Embora o poeta possa em momentos de fúria ou de possessão ser tomado por esta última. A loucura é uma das coisas de que mais tenho medo. Algumas vezes já me senti prestes a enlouquecer. Isso não chega assim de uma hora pra outra; a loucura vai se infiltrando, percebendo o ambiente, convive contigo, bebe do teu copo, come da tua comida. Quando mal percebemos, o pensamento está prestes a perder o prumo, e os valores, a verdade, a moral, o hábito, o medo, as convenções, enfim, tudo isso parece irremediavelmente ridículo. Por isso, muitas vezes temos a sensação perigosa de que a loucura é uma hiperlucidez. Bom, toda a literatura, de Orfeu a Sófocles e a Shakespeare, de Cervantes a Dostoiévski e a Kafka, não é nada mais do que uma variação gigantesca em torno desse tema, nada mais do que jogos e espelhamentos entre o avesso e o direito, vistos sob um olhar que vem de fora.

Celuzlose – Você também atua como editor, professor, pesquisador e ensaísta. Como essas atividades se relacionam entre si e como elas interferem (ou não) na sua criação poética?

R.P. – Sinto que são todas atividades complementares. Tenho gostado cada vez mais dos trabalhos de edição. Eles nos colocam em contato com a feitura material do livro, que é muito bonita. Há uma série de detalhes um pouco chatos, mas que também lançam outra luz sobre o livro, e pode-se dizer mesmo sobre o texto, entendidos como fenômeno cultural. Isso também me interessa. A pesquisa e as aulas também são algo que me alimentam muito. Tenho gostado de trabalhar com cursos livres, pois assim tenho a possibilidade de criá-los, sobre temas e autores que gosto, e para os quais haja um público interessado. Desse modo consigo me realizar de diversas formas, seja do ponto de vista intelectual, por estar em contato com esses temas e autores, seja ao sentir que assim faço circular as ideias nas quais acredito. O ensaio é o complemento literário do estudo e da pesquisa. Toda aula é um ensaio, até certo ponto. Às vezes tenho um ímpeto reflexivo que pode, num certo sentido, contaminar a poesia. Preciso estar atento a isso. Mas ao mesmo tempo gosto muito do ensaio e da reflexão filosófica, entendidos como literatura. Ultimamente estou um pouco afastado da poesia, sinto que com a publicação de Venho de um país selvagem preciso ficar um pouco quieto. Ando em silêncio, não estou escrevendo. Percebo que estou maturando uma nova fase, uma nova escrita, que minha percepção da poesia tem mudado. E creio que seja melhor ficar recolhido por um tempo. Também, um dos motivos desse silêncio é que estou estudando e recolhendo material para escrever um trabalho ensaístico de mais fôlego. Além do que, tenho pesquisado e estudado alguns assuntos para criar novos cursos. O que me enriquece como leitor, e isso é o fundamental.

Celuzlose – Esse trabalho ensaístico de mais fôlego ao qual você se refere é uma continuidade do livro Transversal do Tempo, ou você vai por outros caminhos?

RP – Não. Vou por outros caminhos. O Transversal do Tempo é um livro mais monográfico e mais centrado na literatura. Um livro pouco autoral, de um sujeito de vinte e poucos anos. Cada capítulo é sobre um escritor, e eles acabam dialogando superficialmente entre si a partir de um pano de fundo que une todos eles. Mas essa unidade não chega a ser explicitada. Estou com um novo livro de ensaios inéditos no qual tento abrir mais o esquadro, e propor uma visão mais temática, na qual a unidade existente entre as obras se sobressaia, se destaque da leitura focada de cada uma delas. Algo mais aberto, mais temático, mais amplo. Primeiro pensei em criar uma linha que amarrasse todos esses ensaios já escritos, um horizonte comum no qual eles se inscrevam; creio que farei isso. Mas esse trabalho ensaístico que estou preparando é mais ambicioso e talvez consiga reunir nele todas as minhas leituras e interesses desenvolvidos até agora. Gostaria de escrever uma história da alma. Que no fundo seria uma história da imortalidade. Tenho me convencido de que a invenção da imortalidade foi uma das maiores, talvez a maior revolução operada pela humanidade. Maior que a invenção do fogo, da roda ou do alfabeto. Muito maior do que a da filosofia. Excepcionalmente maior do que a da imprensa. Até mesmo o nascimento da consciência é subsidiário ao nascimento da imortalidade, porque a alma é muito mais abrangente do que consciência. Sinto que nos desenvolvemos em um movimento centrípeto, em espiral, sempre em virtude da proximidade e do afastamento desse eixo. Alguns filósofos atuais têm tentado sínteses interessantes, mas partindo de outros núcleos de sentido. Peter Sloterdijk propõe algo semelhante em Esferas, obra monumental, em três tomos, que traça o percurso imaginário, filosófico, político e artístico da esfera na história da representação. No caso, me interessa rastrear quando a concepção de imortalidade nasce, as principais mudanças em seu sentido e, sobretudo, quando ela começa a declinar, até chegar à sua quase completa extinção nos dias de hoje. E as implicações disso. Trata-se de uma crença, compartilhada por todos os homens, não de um conceito filosófico ou de um assunto universitário. Sendo assim, é o tipo de núcleo que gera outros núcleos periféricos, que produz práticas e valores, orienta formas de vida e de organização da sociedade, da sexualidade, do imaginário. Intuo que a mutação nessa crença produziu uma alteração antropológica das mais significativas. É um trabalho muito difícil, cheio de ciladas e abismos, que vai levar alguns anos. É preciso um diálogo entre filosofia, antropologia, história, teoria da literatura, história das religiões, até arqueologia. Como o assunto é muito grande, se conseguir dar uma pequena contribuição para ele já me darei por satisfeito. Isso é o que mais tem me motivado ultimamente.

Celuzlose – Em relação a sua atividade de editor, fale um pouco sobre as Edições Rumi. Qual é a proposta editorial?

RP – Por enquanto a Edições Rumi ainda é uma empresa que tenho e com a qual presto serviços a outras editoras. Publiquei há pouco uma antologia de poemas da Maiara Gouveia, Pleno Deserto, em uma edição simples e de tiragem pequena, que me deu muita alegria fazer. Além de ótima poeta, ela é minha mulher, o que dá uma dupla realização. Projetos editoriais não faltam. Gostaria de publicar principalmente poesia e ensaio. Mas por ora não tenho estrutura pra isso. Quem sabe em breve? Vamos ver como as coisas andam.

Celuzlose – Atualmente a Biblioteca Brasiliana do José Mindlin está passando por um processo de digitalização que é realizado na USP e algumas obras já estão disponíveis na Internet (http://www.brasiliana.usp.br). Da mesma forma, outras iniciativas semelhantes são realizadas ao redor do mundo. Como você vê essa transferência do conteúdo impresso para o meio digital?

RP – Vejo com otimismo e com muitos bons olhos. Faz pouco tempo houve a polêmica envolvendo o projeto da Google, de disponibilizar material digitalizado das bibliotecas e de centralizar as compras de livros pela internet. O ponto delicado está em definir a diferença entre ter acesso a um livro físico em uma biblioteca pública e baixá-lo de um site. São espaços públicos distintos e maneiras distintas de apropriação de um material, concordo. Mas quase sempre esses pruridos morais relativos à propriedade intelectual e às patentes estão mais ligados aos interesses das corporações do que aos produtores e ao valor cultural objetivo das obras. Também se desconsidera a possibilidade bastante realista de convivência pacífica das obras em dois suportes diferentes. Imagino que apenas um masoquista leria Proust na tela do computador ou imprimiria a Busca do tempo perdido em sua HP. Essas mídias vão forçosamente mudar. Seu valor, seu sentido, sua acessibilidade. Mas não haverá superação de uma pela outra. Por isso, se disponibilizarem todas as obras do planeta na internet, eu apoiarei.

Celuzlose – Você esteve recentemente no México e participou de alguns encontros literários. Como foi esse intercâmbio?



RP – Foi uma das melhores viagens que já fiz, um intercâmbio muito rico. Fiz leituras em Puebla, uma pequena cidade próxima da Cidade do México, na qual há a Casa do Escritor, um espaço público que recebe escritores de vários lugares do mundo. Fui para Mérida, uma das cidades mais antigas da América, ao sul, na Península de Yucatán, que é uma zona maia, e ali fiz alguns dias de oficinas e leituras. Depois voltei ao DF e participei de um bate-papo e leitura na Unam (Universidade Nacional Autônoma do México). Por fim dei um breve curso sobre Guimarães Rosa na Fundación para las Letras Mexicanas, antiga Fundação Octavio Paz. Além de ter conhecido o país, a cultura mexicana e os mexicanos, um povo que adorei, e de ter conversado muito e conhecido um pouco mais da sua literatura, voltei com uma série de ideias e projetos concretos de estreitamento de relações entre os dois países. A poesia mexicana é acintosamente desconhecida no Brasil. E vice-versa. Isso decorre da posição insular que o Brasil assume frente aos demais países hispânicos, que nos faz mais próximos dos EUA e de outros países europeus do que dos nossos vizinhos e da Península Ibérica. Curiosamente, o mesmo descaso se passa com relação à poesia portuguesa, que é de nossa mesma matriz cultural e da mesma língua, além de ser uma das melhores poesias do mundo. E, no entanto, a ignoramos ostensivamente. Nunca saímos de Fernando Pessoa. A cultura popular brasileira tem traços medievais, com expressões, símbolos e vocabulário que vêm do século X e foram se transformando e se sedimentando com o tempo. Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, João Cabral e Ariano Suassuna perceberam isso muito bem. É uma linha evolutiva, uma das mais fortes e longas tradições culturais europeias que ainda se preservam sem se romper. Mas os meios intelectuais brasileiros são muito afrancesados. Isso parece ter removido do horizonte essa nossa herança ibérica, que é riquíssima. E demonstra que a Missão Francesa de fato foi vitoriosa. Com relação ao México, chegamos em Octavio Paz e paramos. Sendo que eles têm uma poesia de muita qualidade, tanto nas gerações anteriores a Paz, como a do grupo Contemporâneos (Xavier Villaurrutia, Carlos Pellicer, Jorge Cuesta, José Gorostiza), quanto nas gerações um pouco posteriores, com nomes como Eduardo Lizalde e Eduardo Langagne, entre outros. E isso não só no que diz respeito ao México. Enquanto esse isolamento brasileiro perseverar, nossa poesia se empobrecerá, pois se manterá alheia às experiências artísticas mais interessantes que há em países cuja expressão cultual, linguística e política é muito semelhante à nossa. E tampouco saberá o que fazer com a herança ibérica, que é o coração de tudo o que chamamos de Brasil.

Leia:
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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A EXUBERÊNCIA E O REQUINTE

2º post deste link http://maiaragouveia.blogspot.com/search/label/Dirceu%20Villa



cantiga 353 - Afonso X



Publicado em 2006, no suplemento cultural do Jornal da Paraíba, O Augusto, editado na ocasião por Astier Basílio, o seguinte artigo aborda alguns elementos da poética de Rodrigo Petronio e Dirceu Villa, respectivamente. Procurei frisar aquilo que considero mais patente no trabalho de ambos. Ressaltei o fato de serem dois poetas jovens, produzindo literatura consistente, com linguagens muito distintas.



A Exuberância & o Requinte






RODRIGO PETRONIO. O exílio na carne e a luz que vem do chão. Os signos da natureza e o exterior em sua vastidão inconsciente. Rodrigo Petronio nos coloca diante do movimento que constantemente nos une e nos separa; da mudança incessante que não nos permite crer em nenhuma permanência, pois está imerso nos sentidos e estes só oferecem fluxo, reviravolta, enigma. A natureza não procura resposta alguma, a natureza é cega e sua força aniquila tudo o que inventa e recupera tudo o que aniquila. Através de imagens singulares e da exuberância da escrita, o poeta reflete essa premissa em variedade de formas que se deformam, se transformam e se mesclam umas às outras na vertigem causada por um mundo cujo cerne é a ausência de sentido.
A fusão entre o próprio corpo e a pulsão do tempo nos coloca, reiteradamente, diante do abismo. Mergulho em um corpo sem verbo, diz no poema de abertura do livro Pedra de Luz (Girafa, 2005), “No sentido da terra”. E mais adiante: Não projeto um mundo fora do mundo/ Apenas rumo para o deus viscoso. Ao vazio da lua sou enfim entregue. A aderência ao interior, ao vórtice profundo do corpo. A aderência à carne e sua realidade opaca leva à convulsão dos sentidos, ponto de contato com a voragem da existência. O corpo é a fronteira entre o ser e o mundo, fronteira e aparato vivo com o qual absorvemos, sentimos, tocamos o que nos rodeia. Ao mesmo tempo distanciamento e aproximação do outro, o que nos define, e, por nos definir, nos espolia da totalidade. E se a fronteira se dissolve, por um instante, naquele ponto em que a presença da morte nos sopra aos ouvidos o segredo da comunhão entre os seres, mais clara se torna a precariedade e o valor desse reino. O corpo: tudo o que temos.

DIRCEU VILLA. A ironia: sim, ela surge no trabalho do poeta sobre o qual discorremos nessas poucas linhas. Mas nosso comentário não ficará em torno desse artifício utilizado tão bem pelo autor de poemas como “Ninho de Vespas”, em Descort (Hedra, 2000) e “angst brasileira I” do livro curiosamente inédito Icterofagia, no qual lemos: Ceci tinha só/ o sêmen de orvalho/ que passava em Peri/ por caralho, entre outros versos não menos desconcertantes. Na verdade, iniciamos desse modo para chegarmos ao seguinte: “a ironia recobre a ferida”, como diz Octavio Paz em Sade - Um mais além Erótico (Mandarim, 1999), e a ferida é estar num mundo em que as sutilezas, tão caras à linguagem poética, são raridade tanto nos homens quanto nesses livros que andam pelas estantes das livrarias: a tinta, fresca. E é disso que eu quero falar, embora sem poder me deter muito à análise, por enquanto.
Bem, Dirceu Villa nos brinda muitas vezes com poemas delicados, por exemplo, “Cosméticos para o corpo”, que inicia do seguinte modo: que perfume prefiro/esta noite?/resina, madeira/o dulçor de um floral. Em “Lyra aragonesa: refram de abril”, temos uma bela canção de amor, e vai buscá-la na fonte, quero dizer, na fonte do amor como o conhecemos (e apenas essa afirmação é assunto para um ensaio), mas enfim, acreditem: nas formas provençais estão as bases do amor modus hodierno, e ele (o poeta) nos canta daquele que não pode/ mal fazer/nenhum.
Fruição da beleza oferecida a quem está disposto a entregar-se.
Maiara Gouveia, 2006.


*


domingo, 29 de novembro de 2009

A EXUBERÂNCIA & O REQUINTE

Maiara Gouveia
Ambos nascidos em 1975, Dirceu Villa e Rodrigo Petronio são dois poetas jovens, com poéticas distintas, produzindo literatura consistente.

RODRIGO PETRONIO. O exílio na carne e a luz que vem do chão. Os signos da natureza e o exterior em sua vastidão inconsciente. Rodrigo Petronio nos coloca diante do movimento que constantemente nos une e nos separa; da mudança incessante que não nos permite crer em nenhuma permanência, pois está imerso nos sentidos e estes só oferecem fluxo, reviravolta, enigma. A natureza não procura resposta alguma, a natureza é cega e sua força aniquila tudo o que inventa e recupera tudo o que aniquila. Através de imagens singulares e da exuberância da escrita, o poeta reflete essa premissa em variedade de formas que se deformam, se transformam e se mesclam umas às outras na vertigem causada por um mundo cujo cerne é a ausência de sentido.
A fusão entre o próprio corpo e a pulsão do tempo nos coloca, reiteradamente, diante do abismo. No mergulho em um corpo sem verbo, diz no poema de abertura do livro Pedra de Luz (Girafa, 2005), "No sentido da terra". E mais adiante: Não projeto um mundo fora do mundo/ Apenas rumo para o deus viscoso. Ao vazio da lua sou enfim entregue . A aderência ao interior, ao vórtice profundo do corpo. A aderência à carne e sua realidade opaca leva à convulsão dos sentidos, ponto de contato com a voragem da existência. O corpo é a fronteira entre o ser e o mundo, fronteira e aparato vivo com o qual absorvemos, sentimos, tocamos o que nos rodeia. Ao mesmo tempo distanciamento e aproximação do outro, o que nos define, e, por nos definir, nos espolia da totalidade. E se a fronteira se dissolve, por um instante, naquele ponto em que a presença da morte nos sopra aos ouvidos o segredo da comunhão entre os seres, mais clara se torna a precariedade e o valor desse reino. O corpo: tudo o que temos.

DIRCEU VILLA. A ironia é uma mordida na testa, mas um bom autor faz desse recurso uma forma de marcar a testa do outro, e certamente arderá (onde houver substância). Sim, ela surge no trabalho do poeta sobre o qual discorreremos nessas poucas linhas. Mas nosso comentário não ficará em torno desse artifício utilizado tão bem pelo autor de poemas como "Ninho de Vespas", em Descort (Hedra, 2003) e "angst brasileira I-" do livro curiosamente inédito Icterofagia, no qual lemos: Ceci tinha só/ o sêmen de orvalho/ que passava em Peri/ por caralho, entre outros versos não menos desconcertantes. Na verdade, iniciamos desse modo para chegarmos ao seguinte: "a ironia recobre a ferida", como diz Octavio Paz em Sade - Um mais além Erótico (Mandarim, 1999), e a ferida é estar num mundo em que as sutilezas, tão caras à linguagem poética, são raras tanto nos homens quanto na literatura. E é disso que eu quero falar, embora sem poder me deter muito à análise por ora. Bem, Dirceu Villa também nos brinda com poemas delicados, por exemplo, "Cosméticos para o corpo", que inicia do seguinte modo: que perfume prefiro/esta noite?/resina, madeira/o dulçor de um floral. Em "Lyra aragonesa: refram de abril", temos uma bela canção de amor, e vai buscá-lo na fonte, quero dizer, na fonte do amor como o conhecemos (e apenas essa afirmação é assunto para um ensaio), mas enfim, acreditem: nas formas provençais estão as bases do amor moderno, e ele (o poeta) nos canta daquele que não pode/ mal fazer/nenhum. A fruição da beleza oferecida a quem, por ela, está disposto a entregar-se.

A MORTE DE UM CONTINENTE


Se a transfiguração da história em forma artística, no sentido mais profundo deste termo, é um dos imperativos de toda grande obra, isso raramente se deve aos argumentos fornecidos pela crítica, que procura em vão demonstrar a pertinência de uma obra por meio de suas implicações sociológicas ou formais, ou seja, seus hipotéticos compromissos, seja com o que for. A grande arte é irresponsável. E só assim pode angariar o posto que lhe cabe, não como corolário de experiências formais nem como antídoto ou sintoma de nossas mazelas, mas sim como salto livre no abismo. Devemos a seu suicídio a nossa salvação.
Nesses termos, é legítimo ver no romance Zama (Editora Globo, 2006) do argentino Antonio di Benedetto, publicado originalmente em 1956, um dos marcos importantes da moderna ficção hispano-americana. E isso porque ele questiona essas premissas justamente a partir de sua própria estrutura. Sendo um romance ambientado no século XVIII, guarda pouco ou quase nada do modelo convencional dos romances históricos. Nele a perspectiva léxica, embora rica, é secundária, e se fôssemos pensar em sua paternidade estilística, teríamos que concordar com o que diz Juan José Saer no prefácio: ela se liga mais à prosa do Siglo de Oro do que aos padrões setecentistas. Mesmo o dado histórico imediato não ressoa nele como seria de se esperar. E esse assessor letrado do governador do Paraguai chamado dom Diego de Zama, à espera de retornar para uma cidade mais importante do continente, está mais próximo do emblema do destino e da decadência de um homem do que do modelo exemplar de uma época, seja ele tópico ou típico.
Também em termos políticos o lugar de Zama é híbrido e de difícil localização. Não há heroísmo ou anti-heroísmo em suas linhas. Muito menos acidentes pícaros ou aventuras para além do real, sejam elas maravilhosas ou fantásticas, embora ao longo do seu andamento a fronteira entre delírio e realidade tenda a se atenuar gravemente. Porém, diferente da tradição do realismo mágico, o ar que se respira aqui é opressivo, mais próximo de um enquadramento de tipo existencial, cuja ação está eternamente em vias de se realizar. Nesse ambiente, nem mesmo o amor pode superar a zona de interdição que nos cerca, pois a paixão que impulsiona dom Diego a Luciana ou sua dívida abstrata para com a sua esposa só servem para fortalecer o caráter inconcluso, dir-se-ia inviável, da existência. Em meio a esse andamento sonâmbulo, irrompem aqui e ali pequenas alegorias e metáforas. São elas que conferem ao real o teor discrepante que lhe caracteriza além da mera constatação e moldam a especificidade da situação americana, em contraste com a Europa, contraste simultaneamente velado e desvelado pelo romance.
É assim que a sua abertura forte, com a cena de um macaco morto boiando no ir-e-vir das águas de um píer, já nos lança em seu horizonte imaginário. Seria essa a chave de nossa condição e mesmo da condição humana? São muitas as alegoreses que se seguem como pontos luminosos na trama da narrativa: a mulher que foi ceifada (morta) pelo homem que sonhou seu corpo como se ele fosse a asa de um morcego, as aranhas que aparecem em momentos os mais imprevistos, a reflexão ociosa sobre o deus criador que Zama realiza ao lado de sua nova esposa, as duas mulheres enigmáticas da sua nova hospedagem, essa insólita expedição de guerra em busca desse igualmente insólito Vicuña Porto, em um clima de delírio e de entorpecimento coletivo, e o seu desfecho: a reaparição fantasmal do menino loiro, que pontua diversos momentos do livro.
Em vão o leitor procurará semelhanças entre Zama e outras obras hispano-americanas. Não há nele o transbordamento admirável do senhor barroco Lezama Lima, tampouco a frieza cínica dos contos de Virgilio Piñera. Não estamos nos meandros intelectuais de Borges, nos labirintos frondosos de Cabrera Infante ou no campo efabulador de García Márquez. E, se não há espaço aqui para o engajamento político explícito, tampouco há para o culto à forma romanesca, ecoando nouveau roman. Talvez sua remissão mais direta seja, ao contrário, mais longínqua, e lance raízes em dois precursores de toda a tradição americana: Horacio Quiroga e Juan Rulfo.
Dividido em três partes, Zama compõe um diagrama de três datas: 1790, 1794 e 1799. Nada mais vazio e, no entanto, mais esclarecedor. Pois sua radicação histórica, ao transcender o espírito de época, devolve a história do continente ao presente. E se a América Latina é mesmo uma ficção, como queria Borges, a recusa ao fechamento ideológico que reverbera em Zama diz-nos algo mais profundo do que mera renúncia ou pessimismo. Dedicada às vítimas da espera, por esse mesmo motivo a obra de Di Benedetto pode ser lida em todos os seus níveis possíveis, sejam eles políticos, históricos ou existenciais. E assim, mais do que compor a sinfonia patética de nossas ilusões, faz sim é agravar o sentido vivo e pulsante de nosso desespero.

VAZIO PLENO


Ímpar, de Renato Rezende. Editora Lamparina. 96 págs. 29,00

Muitos são os caminhos que unem poesia e mística, todos eles difíceis. Pois neles não se exige do poeta apenas uma posição diante da linguagem, mas sim uma experiência da linguagem como sendo a vida do mundo. Em um pólo de claridade esse itinerário pode se dar como rarefação: a palavra se desprende de sua possibilidade de dizer as coisas, e seguimos o caminho de uma teologia negativa. Adentramos uma dimensão apofática da linguagem, cuja estrutura está sempre aquém dos seres e da possibilidade de nomeá-los.
Pelo oposto dessa concepção chegamos a algo semelhante. O mergulho no corpo, na matéria, na sua mais silenciosa viscosidade também pode ser uma redenção da consciência. Seu aniquilamento consentido e até planejado é nossa oferenda ao ser que a aniquila, e só aniquilando-a nos enraizamos no corpo para transcendê-lo rumo a uma síntese inaudita. Habitamos o intervalo: não somos um puro espírito, mas a aderência do pensamento ao mundo nos retira de toda contingência. É a experiência interior de que fala Bataille: tanto mais pertos do divino, quanto mais mergulhados no animal que há em nós.
Novo livro do poeta, tradutor e pintor Renato Rezende, Ímpar aspira ser o ponto de contato desses dois elos entre mística e poesia. Conduz-nos pelas vias conflituosas desse itinerário, no que ele tem de mais legítimo, ou seja, em seu confronto com o mysterium tremendum e com o absurdo da existência. Portanto, travessia que passa pelo niilismo, que dialoga com o jogo ambivalente de violência e esplendor do sagrado, não coroação pacífica de nossa insuficiência enfim domesticada.
Não por acaso, o livro se abre com o poema Espelho, propondo-nos uma despedida de nós mesmos, e se fecha com Encontro e com o epílogo que congrega toda a criação em um ponto azul habitado pelo amor. Em Passeio, seu livro anterior, a ligação entre poesia e travessia já tinha sido sugerida. Como um misto de flâneur e anjo caído, o poeta atravessa os espaços do Rio de Janeiro recolhendo a paisagem com seus olhos recém-saídos da Queda. Temos a viagem como metáfora e também como via, e a diluição do eu na paisagem se dá pelo contato com uma realidade que nos é familiarmente estranha. Vide os belos poemas Paraíso Perdido, Sono, O Balde e Asas.
Essa perspectiva da viagem reaparece em Ímpar, mas sutilizada pelo componente iniciático. Como vis mystica, ela de saída já abandona qualquer exterioridade. Percurso plenamente interno, a kenosis, o esvaziamento do eu, é a mola propulsora de toda a sua poética. Porém, esse processo não nasce de uma ascensão do espírito, mas sim de sua ruína, de sua descida até o mais obscuro.
Falência, surdez, mutismo, fratura, cegueira, sujeira, miséria, como lemos em poemas como Ruínas, Desconstrução da Amada, Dejetos, Corpo, Combustão. Esses componentes que em qualquer outro contexto seriam negativos aqui são a pólvora com que se acende a plenitude do ser. São eles que desagregam a vida do eu para que fale nele a alteridade radical, por isso a menção a Rimbaud em Corte. São eles que arruínam a matéria para que a luz possa vazar por seus poros. Há alguns poucos poemas cuja eficácia formal fica aquém da capacidade de sugerir ao leitor essa pulverização do ser, como Oco, Júbilo e Serviço de utilidade pública. Coisa menor, diante da ambição consumada da maior parte deles, que não é só de ordem estética, mas filosófica, existencial e dir-se-ia religiosa.
Je est un autre: o eu é um outro. Falam nele inúmeras vozes quando ele se extingue. E é basicamente de sua extinção que vive a poesia. Por isso, o livro de Rezende não raro toca ou mesmo vai fundo na abjeção, na negatividade, na escatologia, como os poemas da seção O Mundo Iluminado. Mas aqui também a guinada mística: é preciso passar pelo nada para chegar ao ser, é preciso tocar o ponto mais fundo do corpo para que o mundo se ilumine.
Aparente paradoxo, ele se resolve com a união de vida e morte em um constante pulsar de êxtase. Cada ser é singular, cada ser é ímpar, porque nada retém o devir e, no interior do nosso coração, não somos nem homem, nem mulher, nem planta, nem cachorro, nem anjo, nem demônio. Essas são abstrações de nossa matéria-prima, por meio das quais os homens confiscam seu esplendor em nome da civilização ou de qualquer outro conceito miserável.
Nós, pelo contrário, habitamos o espaço do meta-humano, morada da poesia e dos deuses. O ponto azul do amor que congrega todos os seres depois de sua última agonia, e mostra-nos assim a participação da vida cósmica. É preciso ser Deus para morrer, diria Bataille. Como homens, somos condenados a ser eternos. Não é a alma. Mas sim a matéria é que é indestrutível. E com ela toda a vida.

SOB O CÉU QUE PASSA

A poesia de Emily Dickinson
Alguns Poemas, de Emily Dickinson. Tradução de José Lira. Prefácio de Paulo Henriques Britto. Editora Iluminuras. 319 págs. 44,00.

Na pequena cidade de Amherst, no Massachusetts, ao revirar o quarto de sua irmã após o seu falecimento, em 15 de maio de 1886, Lavinia não supunha a surpresa que lhe esperava. Em um baú, depara-se com pilhas e pilhas de papéis escritos à mão, dispostos em forma de livros, os famosos fascicles, que computavam ao todo cerca de 1800 poemas.
Mais do que uma questão de cânone ou de marginalização artística, esse anonimato quase absoluto daquela que viria a ser considerada uma das mais importantes poetas da língua inglesa nos revela que estamos diante de algo que toca o coração mesmo da poesia.
Pois se o poeta é aquele que abre uma clareira na noite do mundo, como queria Heidegger, cabe a ele sustentar a poesia como sacerdócio, não como uma ocupação utilitária. Só assim é possível, contra o mundo e em benefício da poesia, descobrir um horizonte habitável. Só assim o seu poder de desvelamento será proporcional à sua capacidade de se eclipsar enquanto indivíduo.
Se os deuses se foram e só nos resta esse ninho à sua sombra para sustentarmos leveza e abismo, é no adeus a toda vaidade terrena que o poema se faz mais necessário e violento. Nesse sentido, independente do valor maior ou menor de cada poema, poucos poetas foram tão dignos desse nome e deram tanta dignidade ao ofício da poesia quanto Emily Dickinson. A publicação de “Alguns Poemas”, belo trabalho de tradução, seleção e introdução de José Lira, precedido de prefácio do poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, é uma ótima porta de entrada no seu imaginário.
O livro traz uma seleção de 245 poemas e, sendo a mais extensa publicação da poeta no Brasil, oferece um painel bastante significativo dessa tapeçaria feita de silêncio, música e delicadeza. Além disso, é um oportuno exercício de tradução de poesia, à medida que Lira, não contente em adotar abordagens mais literais ou mais criativas, lançou mão de três modalidades possíveis: as recriações, constantes da primeira parte, A Áurea Presença, e as imitações e invenções, dispostas na segunda e terceira partes do livro, intituladas, respectivamente, Uma Arma Carregada e O Outro Céu.
Escasseiam informações sobre a vida da poeta, e diz-se que ela nos deixou apenas uma foto. Independente de especulações biográficas sobre possíveis frustrações amorosas que teriam contribuído para a sua reclusão, que acabam subscrevendo a obra ao mito, é importante notar na própria fatura de sua poesia um movimento contrativo simbólico. Seu eixo é o espelhamento de céu e alcova. Às vezes, Cova, quando toca o tema da existência e da morte.
Não se trata de uma poesia erótica, como quis Camille Paglia, mas de poemas cujo signo maior é a finitude da carne e a redenção diáfana oferecida pelo céu, única testemunha de toda nossa vida e, portanto, ápice da criação artística para Dickinson. Por isso, embora em seus versos célebres ela diga “fugir do céu” e “buscar o inferno”, só o afirma como movimento descendente do espírito, tantas vezes tematizado em diversos poemas, não como aspiração última do ser.
No fundo, temos aqui um dos mais bem acabados modelos de poesia alegórica. E que bebe na alegoria a sua chaga e o seu paraíso, pois é por meio dela que Dickinson descreve os finos movimentos de sua consciência e de seu contato o Outro, flagrado em gestos cotidianos. Casa, Porta, Prazer, Alegria, Desgraça, Amigo, Morte, Mundo, Vida, Graça, Pão Celeste, Dupla Perda, Sol, Coração, Primavera: não estamos diante de uma enumeração mecânica que evita captar a vida pulsante do mundo, mas no cerne teatral de uma poesia que quer fazer de sua radicação terrena o palco para o desfile da Eternidade, em todas as suas máscaras mais efêmeras.
Tal ambição não lhe conferiu obscuridade. Deu-lhe, pelo contrário, o quê de etéreo de todo gesto inconcluso. E se a poesia de Dickinson pode muitas vezes soar monocórdica, ela o faz à custa de sua própria renúncia e em prol de sua obsessão de não ser deste mundo e não ser de seu tempo. Assim, não obseda o leitor com a repetição diversificada de uma modernidade veloz e em tudo entediante. Segue os ritmos da alma, não os desígnios caducos de uma cidade sempre em construção e sempre em ruínas.
Tivemos a revanche da exceção nas obras dos grandes obscuros em vida, de Sade e Pessoa a Kafka e Kaváfis. Emily Dickinson, que ficou conhecida como a Grande Reclusa, também exerceu sua vocação para a sombra. Ela é que a reconduziu à poesia em seu estado puro, dir-se-ia à sua nascente, a quilômetros de distância do burburinho pedante, pantanoso e desprezível dos literati. A atmosfera de sonho que se respira em sua poesia deve muito à sua condição, o que significa que fez bem em renegar a glória. Afinal, para quem escreve da e para a eternidade, os leitores e a vaidade são apenas um mero acidente.


NO DORSO CLARO DO TEMPO

Coleção de Poesia Canto do Bem-Te-Vi

Ao Léu, de André Luiz Pinto. Prefácio de Antonio Carlos Secchin. Editora Bem-Te-Vi. 79 pág. 19,00
Ante-Sala, de Astrid Cabral. Prefácio de Igor Fagundes. Editora Bem-Te-Vi. 89 pág. 20,00
A Estalagem do Som, de Elisabeth Veiga. Editora Bem-Te-Vi. 79 pág. 19,00
Tempo Inteiro, de Paula Padilha. Editora Bem-Te-Vi. 79 pág. 19,00
Tectônicas, de Solange Casotti. Editora Bem-Te-Vi. 71 pág. 19,00

O fim das demarcações de território foi uma das melhores coisas que aconteceram para a poesia nas últimas décadas. Ele possibilitou o aparecimento da multiplicidade de vozes que temos hoje em dia. A Coleção Canto do Bem-Te-Vi dá uma boa amostra da diversidade desse começo de século XXI.
Porém, mesmo sendo múltiplas, há algumas linhas de força presentes nas obras. Uma delas pode ser definida como filosófica e existencial. Ela caracteriza os três melhores títulos desta coleção: “Ao Léu”, de André Luiz Pinto, “Ante-Sala”, de Astrid Cabral, e “Tempo Inteiro”, de Paula Padilha. Ao léu significa à deriva, mas no sentido empregado no livro também conota a idéia de abandono.
E é justamente esse exílio metafísico que o olhar do poeta capta, pois “embora selvagem”, ele é também “ínfimo” diante da totalidade. E a partir desse sentimento ele percorre lugares poéticos (a finitude, o amor, a revolta, a culpa, a morte, a impotência e o próprio lugar do poeta) e reais, como bairros e a situação social do Rio de Janeiro, registrando sua desilusão quanto a uma união positiva com o mundo.
Luiz Pinto percorre o itinerário da res derelicta, o tema heideggeriano do ente jogado no mundo, decaído, refém dessa “hora canina do abandono”, para a qual os sonhos obstruem a felicidade, e que tem a morte como horizonte, pois a “melhor ternura é morrer”. Mas que o leitor não se iluda. Não há condescendência com esse destino, e sim fricção, embate, confronto. Se “abrir os olhos é o lugar do homem”, é essa abertura inaugural, esse primeiro olhar lançado às coisas, que nos devolve a inocência, e, portanto, a possibilidade de mudança.
Embora a “fossa negra da vida” amanheça “sempre limpa”, essa ocultação facciosa não é eterna, tampouco inamovível. Em “Ao Léu”, a poesia está aquém da vida, a fábula é insuficiente diante do real, pois “não há estória que dê conta do mistério que queremos”, constatação que aprofunda temas de seus livros anteriores, como “Primeiro de Abril” e “Flor à Margem”. Entretanto, a palavra pode criar uma clareira para esse homem (nós mesmos) que percorre as ruas como um exilado.
Por isso, o tempo, a transformação em seus vários sentidos, é uma marca poética desses autores. Marca essa que vem impressa da primeira à última página de “Ante-Sala”. Como no livro de Luiz Pinto, a ante-sala de Astrid Cabral não é um espaço físico, mas ontológico. Para a poeta, ela seria uma metáfora da própria vida, preparação para a verdadeira sala, o além-mundo, a morte. É esse gesto de “atravessar o ser” e dar “na outra margem” que os poemas encenam.
O livro segue um tom elegíaco, é certo. Mas se é “preciso morrer para alcançar as estrelas”, não se pode dizer que seja estritamente pessimista. Partilha sim de uma visão desenganada da existência, onde tudo está em completo devir, nada permanece, nada dura. Nota-se tal inclinação nos títulos de muitos poemas: Passagem, O Derradeiro Instante, Transitória. O horizonte do livro de Cabral é esse “espelho metafísico”, esse “outro lado” infinito que margeia nossas vidas, mas do qual apenas intuímos a presença. Aqui também estamos jogados no mundo, “perplexos”, porque nele “fomos lançados”. De novo o tema da impotência e da derelicção.
Mas há outras teias tecidas pelas mãos do tempo. E essa nova face que ele nos apresenta aparece no livro de Paula Padilha. O seu próprio título, “Tempo Inteiro”, sinaliza uma experiência não-fraturada da existência. Ou seja, a possibilidade de união entre percepção e devir, entre ser e fenômeno.
Não à toa, as seções do livro vêm abertas com epígrafes de Rilke e Celan. O teor existencial desse tipo de poesia, ao invés de colocar o indivíduo como centro de tensões não resolvidas, apresenta-o como consciência doadora de sentido, em um mundo inóspito. Por isso, “pelos dedos” passa o “nó da eternidade”, cada “instante” está “inteiro no tempo” e a “vida inteira” está “lançada no presente”.
Padilha opta pela experiência original. Tendo o “espanto como morada”, ou seja, o mesmo espanto de onde nasce a poesia, o poeta “trilha um labirinto”, não está alheio à perdição. Mas há uma saída: “sabe que carrega a própria chave”. Há ferida, há dor. Também há morte, esse “motor subterrâneo de cada gesto”. Mas se elas estão escondidas, a noite está aberta, e somos empurrados “para o centro da vida”. O eclipse não oculta tudo. Apenas aponta para a margem, não aquela que a transcende, mas sim a que deve ser conquistada.
Já a poesia de Elisabeth Veiga e de Solange Casotti seguem rumos distintos. “A Estalagem do Som” dialoga com uma experiência de Deus, enfatizando a insuficiência humana, especialmente a do poeta. Ao passo que “Tectônicas”, em tom que oscila entre o jocoso e a sátira, propõe novos contatos entre nós e a natureza, seja ela humana ou física.
Por fim, vale a pena chamar a atenção para uma constante em todos os livros: a ênfase pouco recomendada no prosaísmo. Isso ocorre tanto no nível temático quanto formal. Às vezes a idéia cede à tentação do motivo fácil. Em outras, o próprio tema é escolhido tendo em vista um repertório estreito.
A despeito da inclinação metafísica dos melhores momentos da Coleção, vale a pena refletirmos sobre essa insistência da poesia brasileira nos vôos rasantes e no mundo sublunar. Talvez seja o momento propício para desbravar novos territórios. De preferência, no céu.

A AVE, O MERGULHO E O FOGO

Homenagem à Poeta Dora Ferreira da Silva
Centro Cultural São Paulo – 03/04/2007


Aos amigos do Cavalo Azul
Travessia

Os olhos grandes e redondos, embaixo o sorriso meio maroto, abrem-me a porta. Por trás dela uma legião de mitos antiqüíssimos toma vida, se infiltra em nossas veias. Ecoam agora, em meus ouvidos, os belos primeiros versos do livro Retratos da Origem:

Arco etrusco,
lanterna alta,
aldrava,
bato à porta da origem.

Lembro-me que na sala de aula, sentava-me bem em frente da foto de uma porta vazada de luz, feita por ela, emoldurando a rugosidade da parede. É como se a porta se desmanchasse, a luz dissolvia seus contornos, macerava-os. Restava um vestígio da matéria, diagrama invisível. Às vezes eu a atravessava, transpunha-a enquanto falava. Viajávamos todos.
Entrar na casa da Rua José Clemente sempre foi uma espécie de ritual de iniciação, de descida órfica a um mundo sempre muito antigo e inesgotável, algo que existisse desde sempre, sem tempo. Parece que um umbral era transposto, e logo estávamos em outro tempo, numa miscelânea de tempos sobrepostos, um lugar fora do mundo, clareira densa de vida e de linguagem. Lembro-me da bela frase de Hugo von Hofmannsthal: “para o espírito, todos os tempos são presentes”. Tateio, tento traduzir essa entrada. Tento resgatar a vida em pinceladas grossas, transpor o espelho. Hesito. As palavras escapam. São insuficientes. Talvez isso: um espaço fora do tempo. O puro espaço. Uma nova quarta dimensão.
Ao fundo, ouço os pombinhos italianos arrulharem. Cheiro de jasmim, dama-da-noite, as rosas se interpõem em nosso caminho. Sigo Dora pelo jardim da frente da casa normanda, os caminhos se bifurcam, mas ficam cada vez mais abertos. Acho que essa é a palavra que traduz muita coisa e que agora me toca com o mesmo frescor de antes: aberto. Tudo ali é aberto. Tudo é claro, translúcido. Transparência, por todos os poros. Dentro da sala, ao lado da lareira, a parede cheia de ícones. Os bizantinos sabiam conservar um tipo de relação direta com o sagrado, que se perdeu. Hieráticos, solenes, mas cheios de humanidade, todos os ícones. Ao fundo, o São Francisco em tapeçaria, enorme. Abre as asas. O Espírito Santo em madeira. Voa.
Os ícones nos olham – quase digo. Mas não é preciso. O semblante de Dora demonstra que ela sabe disso, por isso os deixa ali, em silêncio, observando o movimento do mundo. “São as coisas que nos observam”, lembro-me de sua frase, quase sussurrada. E depois complementava: “As coisas têm sede de serem vistas e querem ser ditas como nunca imaginaram ser”, arremata, comentando uma passagem de Rilke. O ser: um diálogo silencioso entre nós e o mundo. Observadores, observados. Ao lado, uma tela do pintor Odriozola, de que ela gostava. “São restos do mar, que ele reaproveita na pintura”. A res derelicta que o mar joga de volta à praia, o artista colhe, com ela comunga, transforma. “Estamos jogados no mistério”, ela insistia, tecendo um paralelo, para definir nossa condição, nossa existência.
Os encontros do grupo Cavalo Azul iluminados pela figura de Dora são pra mim uma das experiências mais emocionantes de diálogo e doação. Falávamos no Aberto, a clareia do ser e a noite do mundo, a fuga dos deuses, o risco e a vontade, a eclosão do ser que ilumina a palavra, luz e legibilidade do mundo, a linguagem que se torna transparente, capta todas as coisas. A poesia, demiurgia. O mundo, obra do Fascinator, o grande deus impessoal, modelador, erótico. Seguíamos as trilhas do pensamento de Vicente Ferreira da Silva, um inquestionável gênio. “O poema é anterior ao poeta”, sentenciava Maurice Blanchot em um livro que eu lhe emprestara e com o qual ela ficou fascinada. Se não me engano, pelas nossas conversas, esse livro foi uma das faíscas que detonaram a escrita dos Transpoemas, série de peças poéticas ainda inédita. E tudo fluía. E tudo se imantava. Os próprios conceitos flutuavam, não tinham origem ou destino certo. Linguagem apofática, hierofania, ôntico, pático, arquétipo, sombra, máscara, aórgico: essas pedras teóricas eram lapidadas e ganhavam vida, viravam pequenos amuletos, cristais, uniam-se ao nosso próprio cotidiano. Tudo isso, que em um contexto de estudos poderia soar como mero aparelho crítico, engenharia de conceitos, técnicas sutis para domesticar a inteligência, ali ganhava uma vida diferente. A palavra de fato fundava o mundo. E quando digo isso, não uso uma metáfora. Não é uma força de expressão, descrição ou dissecação. A linguagem era nossa própria existência. A poesia, seu coração compartilhado.
Pois bastava dizer poço e passávamos pela palavra poço, recolhíamos sua água antiga, bebíamos dela. Se alguém dissesse floresta, atravessávamos a Floresta Negra, estávamos ali, imersos, mergulhados em um misto de sonho e sentido que às vezes vinha à tona, deambulava, via a luz do sol, para depois mergulhar de novo, cada vez mais fundo, na força noturna. E era nessa atmosfera onírica que agora retiro a matéria-prima do semblante de Dora, e o esculpo em minha retina, mente, coração. Quando fala, Dora mescla gestos vagarosos a outros mais incisivos, os longos dedos sempre faziam o desenho da coisa pensada, depois o olhar ia para o vazio, se ampliava, grande e redondo, dentro do infinito. Isso: olhar e infinito se cruzavam. Seu olhar sempre me chamou a atenção. Poucas pessoas lançam aquele olhar que perfura tudo para chegar à quintessência. Não o que está além das coisas, mas o cerne de uma totalidade, que as une. O círculo, o centro em toda parte, a circunferência em parte alguma.
Dora, figura das águas, como eu. Isso nos identificava. Lunática, das mais intensas. Cada lunação, uma série de poemas novos. Fonte inesgotável. Manancial, luz, sopro, água. A vida, “naufrágio no azul”, diz um de seus versos. Sempre a água. Rio de Heráclito e tensão de opostos a que chamamos: mundo. O belíssimo título Talhamar traz em sua capa a não menos bela imagem de um afresco descoberto entre ruínas, na região da Possidônia, século V a. C. Ficou conhecido como Túmulo do Mergulhador. O corpo delgado do mergulhador grego está na perpendicular. Entre o céu e a origem, ele flutua. Acho que essa imagem traduz Dora. Pelo menos uma parte importante desse mosaico de mitos que leva seu nome. Entre o céu e a origem, a água, a palavra, a substância precária e milagrosa dos dias. Ela, escafandrista do mistério. Entre ânforas e hídrias, barcos e mares, rios e rios, água e vida, sinônimos. Elas é que movem o dia a dia vivido no único tempo que importa, aquele, “contemporâneo do eterno”, nas palavras de seu querido amigo Agostinho da Silva. “Contemporâneo dos deuses”, diria Dora, diriam os poetas. Mas acima de tudo, mergulho, mergulhadora.
Também os jardins, os esconderijos, a reclusão, a floresta na qual o anjo músico se abre, síntese de natureza e espírito, na capa de Cartografia do Imaginário. O ouro de uma descoberta que passa despercebida aos olhos de todas as épocas. Caberia comunicar um enigma? O mais precioso da vida seria comunicável? O maior de todos os sacrilégios e o mais indecoroso dos atos? Talvez sabê-lo seja o suficiente. A reclusão tem um nome: Itatiaia. A pletora de poemas escritos em Itatiaia só demonstra a proximidade dos deuses. Árvore e montanha, signos cósmicos, silêncio e luz solar, céu e terra se unem. Recolhimento, abrangência. Na solidão, somos o mundo inteiro. Apenas o mais profundo solitário pode viver todas as vidas, amar sozinho todos os homens e mulheres. Se minha memória não falha, acho que isso é de Proust. Mas também é (poderia ser) de Dora.
Do outro lado, o movimento complementar. Poemas em fuga, tendas, nômades, ciganos: todas as formas da migração a compõem. No centro de tudo, a música. A alma migra, o espírito migra, o corpo acompanha. Ventilado, comunicativo. Os três, um só, numa só graça. O universo resumido em um acorde branco, como no poema As Garças. Tudo é movimento, não há vida sem ele. Por isso sua ligação com o pneuma dos antigos padres gregos, o sopro, spiritus. Dora, peregrina. Leio em Angelus Silesius um de seus versos prediletos, que ela traduziu: “Não pertences ao todo se fixo é teu ser”. Sim, alma peregrina. Sim: a água. Mas também e, sobretudo, o ar, o diáfano, que toca céu e terra e os transforma, varre, venta, comove.
Vontade natural de síntese, comunhão. Não no sentido protocolar das religiões, esses “mercados de consolo”, como dizia Rilke, como repetia Dora. Mas no sentido místico, como unio mystica. A síntese se deu com os antigos, nos mitos gregos, etruscos, fenícios, mas também cristãos. Não gostava de ser chamada de poeta pagã. “O mito do Cristo também está inscrito em mim”, dizia. “O conhecimento não está nos livros, está incrustado dentro de nós, na memória coletiva”, arrematava. Para ela, o essencial dos mitos não era a fronteira que demarcavam, mas sim o horizonte que nos abriam. Daí seu verdadeiro amor e sua devoção intelectual por Jung. É a fissura que os mitos produzem no real o que mais importa. Somos um vitral de mitologemas, afrescos vivos de deuses, mosaicos de imagens e arquétipos. Todo acorde, composto. Toda claridade, impura, mista, híbrida. “Todos eles estão em nosso coração”, nos conformam, nos formam, nos fundam, nos fundem em seu amálgama antigo.
Uma via de ver as coisas, um caminho, um rastro, uma demanda, uma busca. Em uma palavra: travessia. Agora, leio as dedicatórias em meus livros, a letrinha trêmula, miúda, inacreditavelmente mais ilegível que a minha. Em todas elas uma constante: travessia. Para o Rodrigo, “companheiro de travessia”. Sempre me comoveu muito saber que eu estava no mesmo barco que Dora. O barco dos etruscos e dos egípcios, aquele que corre pela morte, circula nas águas da vida e da morte, atravessa o Duplo Domínio, mas chega à outra margem, a terceira margem, banhada de luz. Transfiguração, renascimento. Depois da morte, a vida. Depois da vida, a vida. Nada lhe é alheio ou estrangeiro. Apenas uma soberana e terrível onipotência ou a mais cruel indiferença poderia nos apartar do que existe. Deus, se quiserem. Só Ele pode morrer.
Por isso, a terra. Elemento concreto, parte italiana de Dora? Às vezes agreste, às vezes difícil. Porque Dora quer dizer dádiva, e, permitindo-me uma liberdade poética, também quer dizer dura e difícil. Os dons não nos são dados. São conquistados a duras penas, trabalhos incansáveis, provações, secretas alquimias de dor e plenitude, que ela realizou, em seu íntimo. Nós, inquilinos da vida, pastores do ser, não senhores dos entes. Mas a terra, a despeito da aridez, sempre renasce. Nós é que não percebemos. Não a alma, mas a matéria é que é imortal. Sim, algumas divergências. Ela, mais diáfana, mais otimista. Eu, mais terreno, mais negativo. Mas o otimismo não seria a maior realização da coragem? E o pessimismo, talvez um disfarce verbal para a minha imaturidade. Por isso também a terra: “tocar a terra para levantar vôo”. Eis uma de suas frases preferidas. Tantas vezes a repetia, que não me lembro se era dela ou se era uma citação. Não importa. Podemos dizer que era ambas as coisas. Pois sempre somos nós e o que nos ultrapassa. Tudo é coletivo, unânime, uníssono, para os deuses e para o inconsciente. Para o espírito, todas as coisas são presentes. Nós, imago Dei, imagens do divino, argila, modelos peremptos que se dissipam com o correr da água. Terra soprada pelo espírito, criação, miragem, essência nômade, rostos transitórios. Também a terra origina o Cavalo Azul. Na mitologia etrusca, ele é psicopompo, o condutor das almas, que une vida e morte, céu e terra. Emblema do Duplo Domínio da vida e da morte, que tanto a fascinava.
Quanto maior meu amor à vida, maior o meu desespero de perdê-la. Essa é a formulação trágica de Nietzsche. Por isso, e por fim, o quarto elemento: o fogo que enlaça tudo. Quer abraçar tudo. Abranger a vida e a morte, o nascimento e o repouso, a abjeção e a glória, a finitude e a transcendência, o limite e o ilimitado. Essa é a afirmação, de quem quis viver tudo de uma única maneira, a mais intensa. O amor banha tudo, movimenta as criaturas. Por isso, a última palavra será sempre a primeira: Appassionata. “Todo o universo e todas as criaturas são dignas de paixão”, diz o canto, a palavra necessária de um transcurso, testemunha de uma existência. Nesse enlace amoroso entre tudo e tudo, de todos com todos, não há vazio, não há morte, não há mais miséria. Superada toda contingência, o fogo tudo consome e tudo anima. O universo enfim unido e redimido, não pela física ou pela metafísica, não pela alma ou pelo espírito, não por Deus ou pelo seu contrário. O universo todo, fogo e chama, em um abraço.

A AVE, O MERGULHO E O FOGO


Homenagem à Poeta Dora Ferreira da Silva
Centro Cultural São Paulo – 03/04/2007


Aos amigos do Cavalo Azul

Travessia

Os olhos grandes e redondos, embaixo o sorriso meio maroto, abrem-me a porta. Por trás dela uma legião de mitos antiqüíssimos toma vida, se infiltra em nossas veias. Ecoam agora, em meus ouvidos, os belos primeiros versos do livro Retratos da Origem:

Arco etrusco,
lanterna alta,
aldrava,
bato à porta da origem.

Lembro-me que na sala de aula, sentava-me bem em frente da foto de uma porta vazada de luz, feita por ela, emoldurando a rugosidade da parede. É como se a porta se desmanchasse, a luz dissolvia seus contornos, macerava-os. Restava um vestígio da matéria, diagrama invisível. Às vezes eu a atravessava, transpunha-a enquanto falava. Viajávamos todos.
Entrar na casa da Rua José Clemente sempre foi uma espécie de ritual de iniciação, de descida órfica a um mundo sempre muito antigo e inesgotável, algo que existisse desde sempre, sem tempo. Parece que um umbral era transposto, e logo estávamos em outro tempo, numa miscelânea de tempos sobrepostos, um lugar fora do mundo, clareira densa de vida e de linguagem. Lembro-me da bela frase de Hugo von Hofmannsthal: “para o espírito, todos os tempos são presentes”. Tateio, tento traduzir essa entrada. Tento resgatar a vida em pinceladas grossas, transpor o espelho. Hesito. As palavras escapam. São insuficientes. Talvez isso: um espaço fora do tempo. O puro espaço. Uma nova quarta dimensão.
Ao fundo, ouço os pombinhos italianos arrulharem. Cheiro de jasmim, dama-da-noite, as rosas se interpõem em nosso caminho. Sigo Dora pelo jardim da frente da casa normanda, os caminhos se bifurcam, mas ficam cada vez mais abertos. Acho que essa é a palavra que traduz muita coisa e que agora me toca com o mesmo frescor de antes: aberto. Tudo ali é aberto. Tudo é claro, translúcido. Transparência, por todos os poros. Dentro da sala, ao lado da lareira, a parede cheia de ícones. Os bizantinos sabiam conservar um tipo de relação direta com o sagrado, que se perdeu. Hieráticos, solenes, mas cheios de humanidade, todos os ícones. Ao fundo, o São Francisco em tapeçaria, enorme. Abre as asas. O Espírito Santo em madeira. Voa.
Os ícones nos olham – quase digo. Mas não é preciso. O semblante de Dora demonstra que ela sabe disso, por isso os deixa ali, em silêncio, observando o movimento do mundo. “São as coisas que nos observam”, lembro-me de sua frase, quase sussurrada. E depois complementava: “As coisas têm sede de serem vistas e querem ser ditas como nunca imaginaram ser”, arremata, comentando uma passagem de Rilke. O ser: um diálogo silencioso entre nós e o mundo. Observadores, observados. Ao lado, uma tela do pintor Odriozola, de que ela gostava. “São restos do mar, que ele reaproveita na pintura”. A res derelicta que o mar joga de volta à praia, o artista colhe, com ela comunga, transforma. “Estamos jogados no mistério”, ela insistia, tecendo um paralelo, para definir nossa condição, nossa existência.
Os encontros do grupo Cavalo Azul iluminados pela figura de Dora são pra mim uma das experiências mais emocionantes de diálogo e doação. Falávamos no Aberto, a clareia do ser e a noite do mundo, a fuga dos deuses, o risco e a vontade, a eclosão do ser que ilumina a palavra, luz e legibilidade do mundo, a linguagem que se torna transparente, capta todas as coisas. A poesia, demiurgia. O mundo, obra do Fascinator, o grande deus impessoal, modelador, erótico. Seguíamos as trilhas do pensamento de Vicente Ferreira da Silva, um inquestionável gênio. “O poema é anterior ao poeta”, sentenciava Maurice Blanchot em um livro que eu lhe emprestara e com o qual ela ficou fascinada. Se não me engano, pelas nossas conversas, esse livro foi uma das faíscas que detonaram a escrita dos Transpoemas, série de peças poéticas ainda inédita. E tudo fluía. E tudo se imantava. Os próprios conceitos flutuavam, não tinham origem ou destino certo. Linguagem apofática, hierofania, ôntico, pático, arquétipo, sombra, máscara, aórgico: essas pedras teóricas eram lapidadas e ganhavam vida, viravam pequenos amuletos, cristais, uniam-se ao nosso próprio cotidiano. Tudo isso, que em um contexto de estudos poderia soar como mero aparelho crítico, engenharia de conceitos, técnicas sutis para domesticar a inteligência, ali ganhava uma vida diferente. A palavra de fato fundava o mundo. E quando digo isso, não uso uma metáfora. Não é uma força de expressão, descrição ou dissecação. A linguagem era nossa própria existência. A poesia, seu coração compartilhado.
Pois bastava dizer poço e passávamos pela palavra poço, recolhíamos sua água antiga, bebíamos dela. Se alguém dissesse floresta, atravessávamos a Floresta Negra, estávamos ali, imersos, mergulhados em um misto de sonho e sentido que às vezes vinha à tona, deambulava, via a luz do sol, para depois mergulhar de novo, cada vez mais fundo, na força noturna. E era nessa atmosfera onírica que agora retiro a matéria-prima do semblante de Dora, e o esculpo em minha retina, mente, coração. Quando fala, Dora mescla gestos vagarosos a outros mais incisivos, os longos dedos sempre faziam o desenho da coisa pensada, depois o olhar ia para o vazio, se ampliava, grande e redondo, dentro do infinito. Isso: olhar e infinito se cruzavam. Seu olhar sempre me chamou a atenção. Poucas pessoas lançam aquele olhar que perfura tudo para chegar à quintessência. Não o que está além das coisas, mas o cerne de uma totalidade, que as une. O círculo, o centro em toda parte, a circunferência em parte alguma.
Dora, figura das águas, como eu. Isso nos identificava. Lunática, das mais intensas. Cada lunação, uma série de poemas novos. Fonte inesgotável. Manancial, luz, sopro, água. A vida, “naufrágio no azul”, diz um de seus versos. Sempre a água. Rio de Heráclito e tensão de opostos a que chamamos: mundo. O belíssimo título Talhamar traz em sua capa a não menos bela imagem de um afresco descoberto entre ruínas, na região da Possidônia, século V a. C. Ficou conhecido como Túmulo do Mergulhador. O corpo delgado do mergulhador grego está na perpendicular. Entre o céu e a origem, ele flutua. Acho que essa imagem traduz Dora. Pelo menos uma parte importante desse mosaico de mitos que leva seu nome. Entre o céu e a origem, a água, a palavra, a substância precária e milagrosa dos dias. Ela, escafandrista do mistério. Entre ânforas e hídrias, barcos e mares, rios e rios, água e vida, sinônimos. Elas é que movem o dia a dia vivido no único tempo que importa, aquele, “contemporâneo do eterno”, nas palavras de seu querido amigo Agostinho da Silva. “Contemporâneo dos deuses”, diria Dora, diriam os poetas. Mas acima de tudo, mergulho, mergulhadora.
Também os jardins, os esconderijos, a reclusão, a floresta na qual o anjo músico se abre, síntese de natureza e espírito, na capa de Cartografia do Imaginário. O ouro de uma descoberta que passa despercebida aos olhos de todas as épocas. Caberia comunicar um enigma? O mais precioso da vida seria comunicável? O maior de todos os sacrilégios e o mais indecoroso dos atos? Talvez sabê-lo seja o suficiente. A reclusão tem um nome: Itatiaia. A pletora de poemas escritos em Itatiaia só demonstra a proximidade dos deuses. Árvore e montanha, signos cósmicos, silêncio e luz solar, céu e terra se unem. Recolhimento, abrangência. Na solidão, somos o mundo inteiro. Apenas o mais profundo solitário pode viver todas as vidas, amar sozinho todos os homens e mulheres. Se minha memória não falha, acho que isso é de Proust. Mas também é (poderia ser) de Dora.
Do outro lado, o movimento complementar. Poemas em fuga, tendas, nômades, ciganos: todas as formas da migração a compõem. No centro de tudo, a música. A alma migra, o espírito migra, o corpo acompanha. Ventilado, comunicativo. Os três, um só, numa só graça. O universo resumido em um acorde branco, como no poema As Garças. Tudo é movimento, não há vida sem ele. Por isso sua ligação com o pneuma dos antigos padres gregos, o sopro, spiritus. Dora, peregrina. Leio em Angelus Silesius um de seus versos prediletos, que ela traduziu: “Não pertences ao todo se fixo é teu ser”. Sim, alma peregrina. Sim: a água. Mas também e, sobretudo, o ar, o diáfano, que toca céu e terra e os transforma, varre, venta, comove.
Vontade natural de síntese, comunhão. Não no sentido protocolar das religiões, esses “mercados de consolo”, como dizia Rilke, como repetia Dora. Mas no sentido místico, como unio mystica. A síntese se deu com os antigos, nos mitos gregos, etruscos, fenícios, mas também cristãos. Não gostava de ser chamada de poeta pagã. “O mito do Cristo também está inscrito em mim”, dizia. “O conhecimento não está nos livros, está incrustado dentro de nós, na memória coletiva”, arrematava. Para ela, o essencial dos mitos não era a fronteira que demarcavam, mas sim o horizonte que nos abriam. Daí seu verdadeiro amor e sua devoção intelectual por Jung. É a fissura que os mitos produzem no real o que mais importa. Somos um vitral de mitologemas, afrescos vivos de deuses, mosaicos de imagens e arquétipos. Todo acorde, composto. Toda claridade, impura, mista, híbrida. “Todos eles estão em nosso coração”, nos conformam, nos formam, nos fundam, nos fundem em seu amálgama antigo.
Uma via de ver as coisas, um caminho, um rastro, uma demanda, uma busca. Em uma palavra: travessia. Agora, leio as dedicatórias em meus livros, a letrinha trêmula, miúda, inacreditavelmente mais ilegível que a minha. Em todas elas uma constante: travessia. Para o Rodrigo, “companheiro de travessia”. Sempre me comoveu muito saber que eu estava no mesmo barco que Dora. O barco dos etruscos e dos egípcios, aquele que corre pela morte, circula nas águas da vida e da morte, atravessa o Duplo Domínio, mas chega à outra margem, a terceira margem, banhada de luz. Transfiguração, renascimento. Depois da morte, a vida. Depois da vida, a vida. Nada lhe é alheio ou estrangeiro. Apenas uma soberana e terrível onipotência ou a mais cruel indiferença poderia nos apartar do que existe. Deus, se quiserem. Só Ele pode morrer.
Por isso, a terra. Elemento concreto, parte italiana de Dora? Às vezes agreste, às vezes difícil. Porque Dora quer dizer dádiva, e, permitindo-me uma liberdade poética, também quer dizer dura e difícil. Os dons não nos são dados. São conquistados a duras penas, trabalhos incansáveis, provações, secretas alquimias de dor e plenitude, que ela realizou, em seu íntimo. Nós, inquilinos da vida, pastores do ser, não senhores dos entes. Mas a terra, a despeito da aridez, sempre renasce. Nós é que não percebemos. Não a alma, mas a matéria é que é imortal. Sim, algumas divergências. Ela, mais diáfana, mais otimista. Eu, mais terreno, mais negativo. Mas o otimismo não seria a maior realização da coragem? E o pessimismo, talvez um disfarce verbal para a minha imaturidade. Por isso também a terra: “tocar a terra para levantar vôo”. Eis uma de suas frases preferidas. Tantas vezes a repetia, que não me lembro se era dela ou se era uma citação. Não importa. Podemos dizer que era ambas as coisas. Pois sempre somos nós e o que nos ultrapassa. Tudo é coletivo, unânime, uníssono, para os deuses e para o inconsciente. Para o espírito, todas as coisas são presentes. Nós, imago Dei, imagens do divino, argila, modelos peremptos que se dissipam com o correr da água. Terra soprada pelo espírito, criação, miragem, essência nômade, rostos transitórios. Também a terra origina o Cavalo Azul. Na mitologia etrusca, ele é psicopompo, o condutor das almas, que une vida e morte, céu e terra. Emblema do Duplo Domínio da vida e da morte, que tanto a fascinava.
Quanto maior meu amor à vida, maior o meu desespero de perdê-la. Essa é a formulação trágica de Nietzsche. Por isso, e por fim, o quarto elemento: o fogo que enlaça tudo. Quer abraçar tudo. Abranger a vida e a morte, o nascimento e o repouso, a abjeção e a glória, a finitude e a transcendência, o limite e o ilimitado. Essa é a afirmação, de quem quis viver tudo de uma única maneira, a mais intensa. O amor banha tudo, movimenta as criaturas. Por isso, a última palavra será sempre a primeira: Appassionata. “Todo o universo e todas as criaturas são dignas de paixão”, diz o canto, a palavra necessária de um transcurso, testemunha de uma existência. Nesse enlace amoroso entre tudo e tudo, de todos com todos, não há vazio, não há morte, não há mais miséria. Superada toda contingência, o fogo tudo consome e tudo anima. O universo enfim unido e redimido, não pela física ou pela metafísica, não pela alma ou pelo espírito, não por Deus ou pelo seu contrário. O universo todo, fogo e chama, em um abraço.