domingo, 29 de novembro de 2009

NO DORSO CLARO DO TEMPO

Coleção de Poesia Canto do Bem-Te-Vi

Ao Léu, de André Luiz Pinto. Prefácio de Antonio Carlos Secchin. Editora Bem-Te-Vi. 79 pág. 19,00
Ante-Sala, de Astrid Cabral. Prefácio de Igor Fagundes. Editora Bem-Te-Vi. 89 pág. 20,00
A Estalagem do Som, de Elisabeth Veiga. Editora Bem-Te-Vi. 79 pág. 19,00
Tempo Inteiro, de Paula Padilha. Editora Bem-Te-Vi. 79 pág. 19,00
Tectônicas, de Solange Casotti. Editora Bem-Te-Vi. 71 pág. 19,00

O fim das demarcações de território foi uma das melhores coisas que aconteceram para a poesia nas últimas décadas. Ele possibilitou o aparecimento da multiplicidade de vozes que temos hoje em dia. A Coleção Canto do Bem-Te-Vi dá uma boa amostra da diversidade desse começo de século XXI.
Porém, mesmo sendo múltiplas, há algumas linhas de força presentes nas obras. Uma delas pode ser definida como filosófica e existencial. Ela caracteriza os três melhores títulos desta coleção: “Ao Léu”, de André Luiz Pinto, “Ante-Sala”, de Astrid Cabral, e “Tempo Inteiro”, de Paula Padilha. Ao léu significa à deriva, mas no sentido empregado no livro também conota a idéia de abandono.
E é justamente esse exílio metafísico que o olhar do poeta capta, pois “embora selvagem”, ele é também “ínfimo” diante da totalidade. E a partir desse sentimento ele percorre lugares poéticos (a finitude, o amor, a revolta, a culpa, a morte, a impotência e o próprio lugar do poeta) e reais, como bairros e a situação social do Rio de Janeiro, registrando sua desilusão quanto a uma união positiva com o mundo.
Luiz Pinto percorre o itinerário da res derelicta, o tema heideggeriano do ente jogado no mundo, decaído, refém dessa “hora canina do abandono”, para a qual os sonhos obstruem a felicidade, e que tem a morte como horizonte, pois a “melhor ternura é morrer”. Mas que o leitor não se iluda. Não há condescendência com esse destino, e sim fricção, embate, confronto. Se “abrir os olhos é o lugar do homem”, é essa abertura inaugural, esse primeiro olhar lançado às coisas, que nos devolve a inocência, e, portanto, a possibilidade de mudança.
Embora a “fossa negra da vida” amanheça “sempre limpa”, essa ocultação facciosa não é eterna, tampouco inamovível. Em “Ao Léu”, a poesia está aquém da vida, a fábula é insuficiente diante do real, pois “não há estória que dê conta do mistério que queremos”, constatação que aprofunda temas de seus livros anteriores, como “Primeiro de Abril” e “Flor à Margem”. Entretanto, a palavra pode criar uma clareira para esse homem (nós mesmos) que percorre as ruas como um exilado.
Por isso, o tempo, a transformação em seus vários sentidos, é uma marca poética desses autores. Marca essa que vem impressa da primeira à última página de “Ante-Sala”. Como no livro de Luiz Pinto, a ante-sala de Astrid Cabral não é um espaço físico, mas ontológico. Para a poeta, ela seria uma metáfora da própria vida, preparação para a verdadeira sala, o além-mundo, a morte. É esse gesto de “atravessar o ser” e dar “na outra margem” que os poemas encenam.
O livro segue um tom elegíaco, é certo. Mas se é “preciso morrer para alcançar as estrelas”, não se pode dizer que seja estritamente pessimista. Partilha sim de uma visão desenganada da existência, onde tudo está em completo devir, nada permanece, nada dura. Nota-se tal inclinação nos títulos de muitos poemas: Passagem, O Derradeiro Instante, Transitória. O horizonte do livro de Cabral é esse “espelho metafísico”, esse “outro lado” infinito que margeia nossas vidas, mas do qual apenas intuímos a presença. Aqui também estamos jogados no mundo, “perplexos”, porque nele “fomos lançados”. De novo o tema da impotência e da derelicção.
Mas há outras teias tecidas pelas mãos do tempo. E essa nova face que ele nos apresenta aparece no livro de Paula Padilha. O seu próprio título, “Tempo Inteiro”, sinaliza uma experiência não-fraturada da existência. Ou seja, a possibilidade de união entre percepção e devir, entre ser e fenômeno.
Não à toa, as seções do livro vêm abertas com epígrafes de Rilke e Celan. O teor existencial desse tipo de poesia, ao invés de colocar o indivíduo como centro de tensões não resolvidas, apresenta-o como consciência doadora de sentido, em um mundo inóspito. Por isso, “pelos dedos” passa o “nó da eternidade”, cada “instante” está “inteiro no tempo” e a “vida inteira” está “lançada no presente”.
Padilha opta pela experiência original. Tendo o “espanto como morada”, ou seja, o mesmo espanto de onde nasce a poesia, o poeta “trilha um labirinto”, não está alheio à perdição. Mas há uma saída: “sabe que carrega a própria chave”. Há ferida, há dor. Também há morte, esse “motor subterrâneo de cada gesto”. Mas se elas estão escondidas, a noite está aberta, e somos empurrados “para o centro da vida”. O eclipse não oculta tudo. Apenas aponta para a margem, não aquela que a transcende, mas sim a que deve ser conquistada.
Já a poesia de Elisabeth Veiga e de Solange Casotti seguem rumos distintos. “A Estalagem do Som” dialoga com uma experiência de Deus, enfatizando a insuficiência humana, especialmente a do poeta. Ao passo que “Tectônicas”, em tom que oscila entre o jocoso e a sátira, propõe novos contatos entre nós e a natureza, seja ela humana ou física.
Por fim, vale a pena chamar a atenção para uma constante em todos os livros: a ênfase pouco recomendada no prosaísmo. Isso ocorre tanto no nível temático quanto formal. Às vezes a idéia cede à tentação do motivo fácil. Em outras, o próprio tema é escolhido tendo em vista um repertório estreito.
A despeito da inclinação metafísica dos melhores momentos da Coleção, vale a pena refletirmos sobre essa insistência da poesia brasileira nos vôos rasantes e no mundo sublunar. Talvez seja o momento propício para desbravar novos territórios. De preferência, no céu.