domingo, 29 de novembro de 2009

A MORTE DE UM CONTINENTE


Se a transfiguração da história em forma artística, no sentido mais profundo deste termo, é um dos imperativos de toda grande obra, isso raramente se deve aos argumentos fornecidos pela crítica, que procura em vão demonstrar a pertinência de uma obra por meio de suas implicações sociológicas ou formais, ou seja, seus hipotéticos compromissos, seja com o que for. A grande arte é irresponsável. E só assim pode angariar o posto que lhe cabe, não como corolário de experiências formais nem como antídoto ou sintoma de nossas mazelas, mas sim como salto livre no abismo. Devemos a seu suicídio a nossa salvação.
Nesses termos, é legítimo ver no romance Zama (Editora Globo, 2006) do argentino Antonio di Benedetto, publicado originalmente em 1956, um dos marcos importantes da moderna ficção hispano-americana. E isso porque ele questiona essas premissas justamente a partir de sua própria estrutura. Sendo um romance ambientado no século XVIII, guarda pouco ou quase nada do modelo convencional dos romances históricos. Nele a perspectiva léxica, embora rica, é secundária, e se fôssemos pensar em sua paternidade estilística, teríamos que concordar com o que diz Juan José Saer no prefácio: ela se liga mais à prosa do Siglo de Oro do que aos padrões setecentistas. Mesmo o dado histórico imediato não ressoa nele como seria de se esperar. E esse assessor letrado do governador do Paraguai chamado dom Diego de Zama, à espera de retornar para uma cidade mais importante do continente, está mais próximo do emblema do destino e da decadência de um homem do que do modelo exemplar de uma época, seja ele tópico ou típico.
Também em termos políticos o lugar de Zama é híbrido e de difícil localização. Não há heroísmo ou anti-heroísmo em suas linhas. Muito menos acidentes pícaros ou aventuras para além do real, sejam elas maravilhosas ou fantásticas, embora ao longo do seu andamento a fronteira entre delírio e realidade tenda a se atenuar gravemente. Porém, diferente da tradição do realismo mágico, o ar que se respira aqui é opressivo, mais próximo de um enquadramento de tipo existencial, cuja ação está eternamente em vias de se realizar. Nesse ambiente, nem mesmo o amor pode superar a zona de interdição que nos cerca, pois a paixão que impulsiona dom Diego a Luciana ou sua dívida abstrata para com a sua esposa só servem para fortalecer o caráter inconcluso, dir-se-ia inviável, da existência. Em meio a esse andamento sonâmbulo, irrompem aqui e ali pequenas alegorias e metáforas. São elas que conferem ao real o teor discrepante que lhe caracteriza além da mera constatação e moldam a especificidade da situação americana, em contraste com a Europa, contraste simultaneamente velado e desvelado pelo romance.
É assim que a sua abertura forte, com a cena de um macaco morto boiando no ir-e-vir das águas de um píer, já nos lança em seu horizonte imaginário. Seria essa a chave de nossa condição e mesmo da condição humana? São muitas as alegoreses que se seguem como pontos luminosos na trama da narrativa: a mulher que foi ceifada (morta) pelo homem que sonhou seu corpo como se ele fosse a asa de um morcego, as aranhas que aparecem em momentos os mais imprevistos, a reflexão ociosa sobre o deus criador que Zama realiza ao lado de sua nova esposa, as duas mulheres enigmáticas da sua nova hospedagem, essa insólita expedição de guerra em busca desse igualmente insólito Vicuña Porto, em um clima de delírio e de entorpecimento coletivo, e o seu desfecho: a reaparição fantasmal do menino loiro, que pontua diversos momentos do livro.
Em vão o leitor procurará semelhanças entre Zama e outras obras hispano-americanas. Não há nele o transbordamento admirável do senhor barroco Lezama Lima, tampouco a frieza cínica dos contos de Virgilio Piñera. Não estamos nos meandros intelectuais de Borges, nos labirintos frondosos de Cabrera Infante ou no campo efabulador de García Márquez. E, se não há espaço aqui para o engajamento político explícito, tampouco há para o culto à forma romanesca, ecoando nouveau roman. Talvez sua remissão mais direta seja, ao contrário, mais longínqua, e lance raízes em dois precursores de toda a tradição americana: Horacio Quiroga e Juan Rulfo.
Dividido em três partes, Zama compõe um diagrama de três datas: 1790, 1794 e 1799. Nada mais vazio e, no entanto, mais esclarecedor. Pois sua radicação histórica, ao transcender o espírito de época, devolve a história do continente ao presente. E se a América Latina é mesmo uma ficção, como queria Borges, a recusa ao fechamento ideológico que reverbera em Zama diz-nos algo mais profundo do que mera renúncia ou pessimismo. Dedicada às vítimas da espera, por esse mesmo motivo a obra de Di Benedetto pode ser lida em todos os seus níveis possíveis, sejam eles políticos, históricos ou existenciais. E assim, mais do que compor a sinfonia patética de nossas ilusões, faz sim é agravar o sentido vivo e pulsante de nosso desespero.