domingo, 29 de novembro de 2009

A AVE, O MERGULHO E O FOGO

Homenagem à Poeta Dora Ferreira da Silva
Centro Cultural São Paulo – 03/04/2007


Aos amigos do Cavalo Azul
Travessia

Os olhos grandes e redondos, embaixo o sorriso meio maroto, abrem-me a porta. Por trás dela uma legião de mitos antiqüíssimos toma vida, se infiltra em nossas veias. Ecoam agora, em meus ouvidos, os belos primeiros versos do livro Retratos da Origem:

Arco etrusco,
lanterna alta,
aldrava,
bato à porta da origem.

Lembro-me que na sala de aula, sentava-me bem em frente da foto de uma porta vazada de luz, feita por ela, emoldurando a rugosidade da parede. É como se a porta se desmanchasse, a luz dissolvia seus contornos, macerava-os. Restava um vestígio da matéria, diagrama invisível. Às vezes eu a atravessava, transpunha-a enquanto falava. Viajávamos todos.
Entrar na casa da Rua José Clemente sempre foi uma espécie de ritual de iniciação, de descida órfica a um mundo sempre muito antigo e inesgotável, algo que existisse desde sempre, sem tempo. Parece que um umbral era transposto, e logo estávamos em outro tempo, numa miscelânea de tempos sobrepostos, um lugar fora do mundo, clareira densa de vida e de linguagem. Lembro-me da bela frase de Hugo von Hofmannsthal: “para o espírito, todos os tempos são presentes”. Tateio, tento traduzir essa entrada. Tento resgatar a vida em pinceladas grossas, transpor o espelho. Hesito. As palavras escapam. São insuficientes. Talvez isso: um espaço fora do tempo. O puro espaço. Uma nova quarta dimensão.
Ao fundo, ouço os pombinhos italianos arrulharem. Cheiro de jasmim, dama-da-noite, as rosas se interpõem em nosso caminho. Sigo Dora pelo jardim da frente da casa normanda, os caminhos se bifurcam, mas ficam cada vez mais abertos. Acho que essa é a palavra que traduz muita coisa e que agora me toca com o mesmo frescor de antes: aberto. Tudo ali é aberto. Tudo é claro, translúcido. Transparência, por todos os poros. Dentro da sala, ao lado da lareira, a parede cheia de ícones. Os bizantinos sabiam conservar um tipo de relação direta com o sagrado, que se perdeu. Hieráticos, solenes, mas cheios de humanidade, todos os ícones. Ao fundo, o São Francisco em tapeçaria, enorme. Abre as asas. O Espírito Santo em madeira. Voa.
Os ícones nos olham – quase digo. Mas não é preciso. O semblante de Dora demonstra que ela sabe disso, por isso os deixa ali, em silêncio, observando o movimento do mundo. “São as coisas que nos observam”, lembro-me de sua frase, quase sussurrada. E depois complementava: “As coisas têm sede de serem vistas e querem ser ditas como nunca imaginaram ser”, arremata, comentando uma passagem de Rilke. O ser: um diálogo silencioso entre nós e o mundo. Observadores, observados. Ao lado, uma tela do pintor Odriozola, de que ela gostava. “São restos do mar, que ele reaproveita na pintura”. A res derelicta que o mar joga de volta à praia, o artista colhe, com ela comunga, transforma. “Estamos jogados no mistério”, ela insistia, tecendo um paralelo, para definir nossa condição, nossa existência.
Os encontros do grupo Cavalo Azul iluminados pela figura de Dora são pra mim uma das experiências mais emocionantes de diálogo e doação. Falávamos no Aberto, a clareia do ser e a noite do mundo, a fuga dos deuses, o risco e a vontade, a eclosão do ser que ilumina a palavra, luz e legibilidade do mundo, a linguagem que se torna transparente, capta todas as coisas. A poesia, demiurgia. O mundo, obra do Fascinator, o grande deus impessoal, modelador, erótico. Seguíamos as trilhas do pensamento de Vicente Ferreira da Silva, um inquestionável gênio. “O poema é anterior ao poeta”, sentenciava Maurice Blanchot em um livro que eu lhe emprestara e com o qual ela ficou fascinada. Se não me engano, pelas nossas conversas, esse livro foi uma das faíscas que detonaram a escrita dos Transpoemas, série de peças poéticas ainda inédita. E tudo fluía. E tudo se imantava. Os próprios conceitos flutuavam, não tinham origem ou destino certo. Linguagem apofática, hierofania, ôntico, pático, arquétipo, sombra, máscara, aórgico: essas pedras teóricas eram lapidadas e ganhavam vida, viravam pequenos amuletos, cristais, uniam-se ao nosso próprio cotidiano. Tudo isso, que em um contexto de estudos poderia soar como mero aparelho crítico, engenharia de conceitos, técnicas sutis para domesticar a inteligência, ali ganhava uma vida diferente. A palavra de fato fundava o mundo. E quando digo isso, não uso uma metáfora. Não é uma força de expressão, descrição ou dissecação. A linguagem era nossa própria existência. A poesia, seu coração compartilhado.
Pois bastava dizer poço e passávamos pela palavra poço, recolhíamos sua água antiga, bebíamos dela. Se alguém dissesse floresta, atravessávamos a Floresta Negra, estávamos ali, imersos, mergulhados em um misto de sonho e sentido que às vezes vinha à tona, deambulava, via a luz do sol, para depois mergulhar de novo, cada vez mais fundo, na força noturna. E era nessa atmosfera onírica que agora retiro a matéria-prima do semblante de Dora, e o esculpo em minha retina, mente, coração. Quando fala, Dora mescla gestos vagarosos a outros mais incisivos, os longos dedos sempre faziam o desenho da coisa pensada, depois o olhar ia para o vazio, se ampliava, grande e redondo, dentro do infinito. Isso: olhar e infinito se cruzavam. Seu olhar sempre me chamou a atenção. Poucas pessoas lançam aquele olhar que perfura tudo para chegar à quintessência. Não o que está além das coisas, mas o cerne de uma totalidade, que as une. O círculo, o centro em toda parte, a circunferência em parte alguma.
Dora, figura das águas, como eu. Isso nos identificava. Lunática, das mais intensas. Cada lunação, uma série de poemas novos. Fonte inesgotável. Manancial, luz, sopro, água. A vida, “naufrágio no azul”, diz um de seus versos. Sempre a água. Rio de Heráclito e tensão de opostos a que chamamos: mundo. O belíssimo título Talhamar traz em sua capa a não menos bela imagem de um afresco descoberto entre ruínas, na região da Possidônia, século V a. C. Ficou conhecido como Túmulo do Mergulhador. O corpo delgado do mergulhador grego está na perpendicular. Entre o céu e a origem, ele flutua. Acho que essa imagem traduz Dora. Pelo menos uma parte importante desse mosaico de mitos que leva seu nome. Entre o céu e a origem, a água, a palavra, a substância precária e milagrosa dos dias. Ela, escafandrista do mistério. Entre ânforas e hídrias, barcos e mares, rios e rios, água e vida, sinônimos. Elas é que movem o dia a dia vivido no único tempo que importa, aquele, “contemporâneo do eterno”, nas palavras de seu querido amigo Agostinho da Silva. “Contemporâneo dos deuses”, diria Dora, diriam os poetas. Mas acima de tudo, mergulho, mergulhadora.
Também os jardins, os esconderijos, a reclusão, a floresta na qual o anjo músico se abre, síntese de natureza e espírito, na capa de Cartografia do Imaginário. O ouro de uma descoberta que passa despercebida aos olhos de todas as épocas. Caberia comunicar um enigma? O mais precioso da vida seria comunicável? O maior de todos os sacrilégios e o mais indecoroso dos atos? Talvez sabê-lo seja o suficiente. A reclusão tem um nome: Itatiaia. A pletora de poemas escritos em Itatiaia só demonstra a proximidade dos deuses. Árvore e montanha, signos cósmicos, silêncio e luz solar, céu e terra se unem. Recolhimento, abrangência. Na solidão, somos o mundo inteiro. Apenas o mais profundo solitário pode viver todas as vidas, amar sozinho todos os homens e mulheres. Se minha memória não falha, acho que isso é de Proust. Mas também é (poderia ser) de Dora.
Do outro lado, o movimento complementar. Poemas em fuga, tendas, nômades, ciganos: todas as formas da migração a compõem. No centro de tudo, a música. A alma migra, o espírito migra, o corpo acompanha. Ventilado, comunicativo. Os três, um só, numa só graça. O universo resumido em um acorde branco, como no poema As Garças. Tudo é movimento, não há vida sem ele. Por isso sua ligação com o pneuma dos antigos padres gregos, o sopro, spiritus. Dora, peregrina. Leio em Angelus Silesius um de seus versos prediletos, que ela traduziu: “Não pertences ao todo se fixo é teu ser”. Sim, alma peregrina. Sim: a água. Mas também e, sobretudo, o ar, o diáfano, que toca céu e terra e os transforma, varre, venta, comove.
Vontade natural de síntese, comunhão. Não no sentido protocolar das religiões, esses “mercados de consolo”, como dizia Rilke, como repetia Dora. Mas no sentido místico, como unio mystica. A síntese se deu com os antigos, nos mitos gregos, etruscos, fenícios, mas também cristãos. Não gostava de ser chamada de poeta pagã. “O mito do Cristo também está inscrito em mim”, dizia. “O conhecimento não está nos livros, está incrustado dentro de nós, na memória coletiva”, arrematava. Para ela, o essencial dos mitos não era a fronteira que demarcavam, mas sim o horizonte que nos abriam. Daí seu verdadeiro amor e sua devoção intelectual por Jung. É a fissura que os mitos produzem no real o que mais importa. Somos um vitral de mitologemas, afrescos vivos de deuses, mosaicos de imagens e arquétipos. Todo acorde, composto. Toda claridade, impura, mista, híbrida. “Todos eles estão em nosso coração”, nos conformam, nos formam, nos fundam, nos fundem em seu amálgama antigo.
Uma via de ver as coisas, um caminho, um rastro, uma demanda, uma busca. Em uma palavra: travessia. Agora, leio as dedicatórias em meus livros, a letrinha trêmula, miúda, inacreditavelmente mais ilegível que a minha. Em todas elas uma constante: travessia. Para o Rodrigo, “companheiro de travessia”. Sempre me comoveu muito saber que eu estava no mesmo barco que Dora. O barco dos etruscos e dos egípcios, aquele que corre pela morte, circula nas águas da vida e da morte, atravessa o Duplo Domínio, mas chega à outra margem, a terceira margem, banhada de luz. Transfiguração, renascimento. Depois da morte, a vida. Depois da vida, a vida. Nada lhe é alheio ou estrangeiro. Apenas uma soberana e terrível onipotência ou a mais cruel indiferença poderia nos apartar do que existe. Deus, se quiserem. Só Ele pode morrer.
Por isso, a terra. Elemento concreto, parte italiana de Dora? Às vezes agreste, às vezes difícil. Porque Dora quer dizer dádiva, e, permitindo-me uma liberdade poética, também quer dizer dura e difícil. Os dons não nos são dados. São conquistados a duras penas, trabalhos incansáveis, provações, secretas alquimias de dor e plenitude, que ela realizou, em seu íntimo. Nós, inquilinos da vida, pastores do ser, não senhores dos entes. Mas a terra, a despeito da aridez, sempre renasce. Nós é que não percebemos. Não a alma, mas a matéria é que é imortal. Sim, algumas divergências. Ela, mais diáfana, mais otimista. Eu, mais terreno, mais negativo. Mas o otimismo não seria a maior realização da coragem? E o pessimismo, talvez um disfarce verbal para a minha imaturidade. Por isso também a terra: “tocar a terra para levantar vôo”. Eis uma de suas frases preferidas. Tantas vezes a repetia, que não me lembro se era dela ou se era uma citação. Não importa. Podemos dizer que era ambas as coisas. Pois sempre somos nós e o que nos ultrapassa. Tudo é coletivo, unânime, uníssono, para os deuses e para o inconsciente. Para o espírito, todas as coisas são presentes. Nós, imago Dei, imagens do divino, argila, modelos peremptos que se dissipam com o correr da água. Terra soprada pelo espírito, criação, miragem, essência nômade, rostos transitórios. Também a terra origina o Cavalo Azul. Na mitologia etrusca, ele é psicopompo, o condutor das almas, que une vida e morte, céu e terra. Emblema do Duplo Domínio da vida e da morte, que tanto a fascinava.
Quanto maior meu amor à vida, maior o meu desespero de perdê-la. Essa é a formulação trágica de Nietzsche. Por isso, e por fim, o quarto elemento: o fogo que enlaça tudo. Quer abraçar tudo. Abranger a vida e a morte, o nascimento e o repouso, a abjeção e a glória, a finitude e a transcendência, o limite e o ilimitado. Essa é a afirmação, de quem quis viver tudo de uma única maneira, a mais intensa. O amor banha tudo, movimenta as criaturas. Por isso, a última palavra será sempre a primeira: Appassionata. “Todo o universo e todas as criaturas são dignas de paixão”, diz o canto, a palavra necessária de um transcurso, testemunha de uma existência. Nesse enlace amoroso entre tudo e tudo, de todos com todos, não há vazio, não há morte, não há mais miséria. Superada toda contingência, o fogo tudo consome e tudo anima. O universo enfim unido e redimido, não pela física ou pela metafísica, não pela alma ou pelo espírito, não por Deus ou pelo seu contrário. O universo todo, fogo e chama, em um abraço.