

A frivolidade teórica de nosso tempo, que não consegue produzir quase nada que extrapole o ramerrão de uma hermenêutica da suspeita; que quer ver em tudo relações de poder e camadas discursivas; que quer reduzir o homem a uma espécie de micróbio político cercado de política por todos os lados; que pretende entronizar um Universo que, também ele, não seja nada mais do que uma bolha política, não uma noosfera (esfera do Espírito), mas uma polisfera. Pois bem, a frivolidade teórica de todos os tempos, sobretudo o nosso, provavelmente verá nesses dois filmes, com sorrisos nos lábios, uma crítica à religião. O primeiro, pelas disputas entre protestantes e católicos e pela burocracia da instituição religiosa que ignora a fé e a santidade verdadeiras, travestindo-as de loucura. O segundo, pela perseguição da Igreja, que quer assassinar aquela que teve uma revelação legítima.

Nada mais equivocado. Em nenhum momento o foco de Dreyer são essas dimensões históricas, contingentes. Sua arte vai em uma direção muito diferente, joga-nos de cabeça na vertente estrutural do homem, cerceado, impelido pelo chamamento divino. Não existe homem natural; não há humanidade fora da transcendência. Por isso, ele não nos apresenta o negativo da fé, uma hipotética razão autossuficiente que esquadrinha as coisas. Toma, sim, a fé em sua fonte, em seu estado puro, em sua luz mais intolerável e em sua mais comovente lucidez. A obra de Dreyer é um dos maiores monumentos erguidos à infinitude da fé.

O teólogo judeu Joshua Heschel, formado na escola teológica e fenomenológica de Marburg, desenvolveu uma abordagem fenomenológica da consciência mística que pode ser classificada como teologia das profundezas. Ao estudar o texto dos profetas bíblicos, Heschel se ateve à estrutura profunda do profeta, tentando depreender o estado de consciência daquele que profere no momento mesmo em que executa a sua mistagogia. Nessa descida em busca da primeira voz que antecede as vozes da alma, Heschel identificou uma diferença marcante entre a mística e a profecia. A mística, em sua concepção, seria quando o homem vê o mundo pelos olhos de Deus. Na profecia, Deus é que vê o mundo pelos olhos dos homens. God is search of man. Há nessa mudança algo muito mais sério do que uma inversão de vetores ou um jogo de palavras. O que ele quer nos fazer compreender é que a profecia torna o profeta um possuído, ao passo que a metanoia mística, em última instância, faz do místico um amoroso; na profecia não há união amorosa e contemplativa com Deus, não há um abandono de si, uma consciência da finitude das coisas criadas, que nos devolve ao seio do Criador. Há, ao contrário, algo que se assemelha ao aniquilamento da consciência individual. Como se a água divina brotasse no interior da consciência finita do homem, e praticamente a arrebentasse. Isso é a profecia.
E é por isso que, segundo Heschel, o objetivo da profecia é lançar ao mundo um grande Não. Voz que se eleva do abismo da consciência, da transcendência mais radical, o profeta aniquila a estupidez de nossas sombras e simulacros, esmaga o nosso “humanismo ridículo”, como diz o filósofo Luiz Felipe Pondé, que quer dimensionar a vida a partir da luz fosca de nossa razão demasiadamente humana. Esse é o sentido de crise estabelecido pelo profeta, crise global, que abrange em si todos os demais setores da sociedade e do pensamento, pois é uma crítica das raízes, que atinge os fundamentos mesmos do mundo. Essa é a relação vertical de Deus com os homens. Esse é o olhar que os personagens de Dreyer nos lançam. 
É a partir da perspectiva do possuído pelo divino que Renée Falconetti, interpretando Joana D’Arc, nos lança o seu olhar convulsivo, em um dos “monólogos” mais brilhantes da história do cinema, e que Joahannes passeia pelos cômodos da casa se dizendo filho de Deus. A câmera que rola sobre os trilhos e nos embevece com tomadas cada vez mais marcantes; os jogos de luzes e sombras, dos mais equilibrados do cinema em preto e branco; o texto e os jogos cênicos e de linguagem entre os atores. Tudo isso ainda parece ser apenas a atmosfera que Dreyer cria em A Palavra para dar por fim seu golpe de mestre. E esse golpe está alocado justamente na gravidade de sua mensagem. No fundo, Dreyer apenas nos diz a maior de todas as obviedades: a vida é um milagre. Mas com isso praticamente reinventa a roda. Estamos lançados no sobrenatural, e nunca sairemos dele, nem em vida nem na morte. O mistério da ressurreição não é mais miraculoso e inexplicável do que o fato de eu ter duas mãos, cinco dedos em cada uma delas, o céu ser azul e de haver chuva e espaço onde nos movemos, por mais que há cinco séculos não façamos nada mais do que explicar exaustivamente o porquê de todas essas coisas. E o porquê da impossibilidade da ressurreição. É a perda desse sentido milagroso e, portanto, absolutamente indevassável de tudo o que existe que criou o niilismo racional moderno e transformou o milagre em uma espécie de excrescência do funcionamento “normal” das coisas. A normalidade é o Paraíso dos psicóticos.


É a partir da perspectiva do possuído pelo divino que Renée Falconetti, interpretando Joana D’Arc, nos lança o seu olhar convulsivo, em um dos “monólogos” mais brilhantes da história do cinema, e que Joahannes passeia pelos cômodos da casa se dizendo filho de Deus. A câmera que rola sobre os trilhos e nos embevece com tomadas cada vez mais marcantes; os jogos de luzes e sombras, dos mais equilibrados do cinema em preto e branco; o texto e os jogos cênicos e de linguagem entre os atores. Tudo isso ainda parece ser apenas a atmosfera que Dreyer cria em A Palavra para dar por fim seu golpe de mestre. E esse golpe está alocado justamente na gravidade de sua mensagem. No fundo, Dreyer apenas nos diz a maior de todas as obviedades: a vida é um milagre. Mas com isso praticamente reinventa a roda. Estamos lançados no sobrenatural, e nunca sairemos dele, nem em vida nem na morte. O mistério da ressurreição não é mais miraculoso e inexplicável do que o fato de eu ter duas mãos, cinco dedos em cada uma delas, o céu ser azul e de haver chuva e espaço onde nos movemos, por mais que há cinco séculos não façamos nada mais do que explicar exaustivamente o porquê de todas essas coisas. E o porquê da impossibilidade da ressurreição. É a perda desse sentido milagroso e, portanto, absolutamente indevassável de tudo o que existe que criou o niilismo racional moderno e transformou o milagre em uma espécie de excrescência do funcionamento “normal” das coisas. A normalidade é o Paraíso dos psicóticos.



O olhar silencioso de Joana não responde. Mais indaga do que responde. É uma navalha atravessando essas inúteis indagações. Como dizem os místicos ortodoxos gregos, “o homem é um animal visitado”. Sim. Visitado por Deus. Ela não se sabe livre, mas sim eternamente cativa. E é justamente essa ciência que a liberta, não da prisão ou do desejo ou do poder ou da religião ou do machismo ou da má consciência ou da depressão ou dos medicamentos ou das injustiças sociais ou da política ou das ideologias ou da libido ou dos complexos ou de sua classe social ou do capitalismo ou do subdesenvolvimento ou do inconsciente ou da simples e cândida maldade. Isso a liberta do mundo, devolve-a ao Reino.

Leia: http://maiaragouveia.blogspot.com/2009/11/carl-dryer-mestre-de-mestres.html