quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A FORMAÇÃO E A DEFORMAÇÃO DOS LEITORES


Situação

Mesmo estando dentro da premissa do debate, concordo que este título pode soar um pouco pesado ou mesmo um tanto obtuso. Vão me refutar dizendo que a leitura, essa atividade nobre por excelência e tão enaltecida nos dias de hoje, sobretudo por aqueles que não a praticam, nunca pode ter uma ação deformadora; que deformação não é conceito, mas um efeito que dá sobre a matéria por uma relação de força e uma desigualdade de resistências; que precisaríamos de critérios claros para discernir o que seriam efeitos nocivos ou benéficos que ideias, obras ou autores determinados exerceriam sobre determinados leitores.
Mas na verdade essas objeções são circunstanciais, e não conseguem apreender o cerne do que podemos considerar como princípios-chave de alguns desdobramentos que essa interação suscita. Tampouco é necessária uma sociologia da leitora ou do público e da circulação das obras para conseguirmos pensar esse tema com certa objetividade. Muitas vezes, uma pesquisa sociológica o encobriria com mais névoas ainda do que desvendaria algumas de suas linhas de força.
Para começar, partamos da Literatura, mas sem defini-la em gêneros ou discursos. Tomemo-la no sentido mais abrangente possível, desde o seu aspecto ficcional e poético até as suas produções ensaísticas, filosóficas, históricas, entre outras. Num rápido lançar de olhos, percebemos que é impossível pensar nessa categoria chamada Literatura como uma massa de dados homogêneos, passível de ser assimilado tranquilamente por uma mente em estado de passividade; o primeiro traço que nos salta, é o aspecto heteróclito, diversificado, em alguns momentos até caótico, da Literatura. Pois bem: essa espécie de celeiro infinito de formas, chamado Literatura, esse tecido de tramas infinitas, como a descreveu Borges, só tem um valor positivo em si mesma quando se direciona a um Leitor genérico ou ao caráter genérico do Espírito, que contempla e armazena as produções humanas. À medida que afunilamos cada uma das obras e autores e os colocamos em relação com leitores concretos, já diminuímos, nesse simples movimento, muito da abrangência desse grande manancial. Os motivos são simples: ainda que vivamos muitas vidas dedicadas apenas à leitura, não esgotaríamos sequer uma pequena parte desse repositório.
Mais um giro, mais uma contrição: pensamos no interesse vital que cada leitor possa ter em cada um dos prismas dessa abstração, desse personagem que chamamos de Literatura. A espiral dá mais uma volta, e eis que uma nova ação centrípeta varre de nosso horizonte uma parte considerável das letras. Mais um movimento, e chegamos à leitura em seu teor crítico, ou seja, aquela que não só consome as obras, mas que as hierarquiza e as articula, discernindo o que é ou não de interesse vital para determinadas épocas ou valores. Em seguida, uma nova volta do parafuso: os critérios editoriais e as condições de edição de cada país e de cada língua. Por fim, as contingências de cada leitor, suas possibilidades e idiossincrasias, suas vontades e suas renúncias, sua preguiça e seu empenho.
Nesse movimento espiralado, o castelo de início foi pulverizado e praticamente se resumiu a umas tantas casas e cabanas habitadas. No interior das mesmas, os leitores, sem maiúsculas, precários, apenas ávidos às vezes por um pouco de sentido à falta sentido generalizada de muitas coisas deste mundo. Argumentar em benefício das grandes bibliotecas, com montanhas de livros, é esquecer a dificuldade física que a maior parte de leitores do mundo tem de acessá-las; defender a transposição dessas bibliotecas para a internet, o que felizmente já está sendo feito, é propor um paliativo ingênuo para os problemas de supressão das dificuldades de acesso linguístico a esse material babélico.
Pode-se agregar a isso certa ilegibilidade de traços, mais ou menos essenciais, das obras do passado; cada época parece estar ilhada em seus próprios valores, e a essa condição se soma o fato de o cronocentrismo ser uma das maiores doenças do século XX, que se prolonga e se aprofunda neste século que começa. Assim, podemos pensar que uma das funções da literatura é o diálogo com os mortos. Somos incapazes de compreender os autores do passado minimamente de acordo com o sentido que eles possam ecoar no presente, sem retirar a dignidade de sua condição de mortos, e, portanto, de seres inelutavelmente silenciosos. Apropriar-se de algo é a forma mais branda de matá-lo. A mais perversa forma de cultura é essa deliberação sobre os mortos que só visa os apetites e valores do presente, e nada mais. Essa atitude não só transforma o passado em uma sombra pálida do presente. Mais que isso: impede de preservar o futuro que os mortos nos mostraram e que não se realizou. E como diz muito bem Heiner Müller, tratando do teatro, esse diálogo não deve ser interrompido até que esses mesmos mortos nos desvelem o futuro que morreu com eles.
Isso para não falar dos diversos e matizados graus de analfabetismo, que nem computo aqui, para não destruir de vez qualquer idealização dessa bela atividade, a leitura. Nesse percurso, talvez não seja exagerado dizer que tenhamos mais perdas do que ganhos. E algo parece ficar visível, a despeito dos contornos mais ou menos enfáticos em determinados dados: a própria produção do conhecimento segue essas espirais precárias, esse ir e vir no escuro, titubeante, que é próprio do caminhar entre as obras do espírito. Nesse percurso, como diz Montaigne, quanto mais conhecemos, menos sabemos.

A cadeia de anéis

No Íon, diálogo de Platão que trata da poesia, Sócrates ironiza o rapsodo que dá nome ao diálogo. Idólatra de Homero, para Íon a poesia nasce de uma única fonte: Homero. Na sutil teia argumentativa, Sócrates o enreda, ao demonstrar que a poesia é dom divino, coisa dos deuses, e que Homero, mesmo sendo enorme poeta, é apenas um medium da atividade poética que o transcende. Compara esta à cadeia de anéis que se ligam a um Ímã, que seria o doador poético original. A poiesis percorreria então Homero, primeira cadeia de anéis, passaria pelo rapsodo Íon, seu intérprete, e depois desaguaria no público, cuja emoção poética faria a poesia refluir para as suas nascentes, ou seja, poderia produzir novos Homeros ou minimamente novos poetas e intérpretes de poesia, que estariam conectados uns aos outros por mediações, mas todos, em menor ou maior grau, conectados ao Ímã.
Essa estrutura platônica pode nos servir para pensar a leitura. Desconsidero aqui as relações que cada um estabelece com o Ímã, fonte obscura e misteriosa, de difícil acesso, de definição ainda mais enigmática. Atenho-me aqui à outra concepção, a dos escritores entendidos como anéis que se conectam uns aos outros. Cada escritor teria, nesse caso, em maior ou menor grau, a virtude de remeter a outros escritores. Esse movimento estaria virtualmente posto em suas obras, variando de acordo com as inúmeras gradações de qualidade, de gênero, de inserção, de proposta, de ambiente, de língua, de época, que, em sua totalidade, comporia aquela república mundial das letras, de que fala Pascale Casanova. Colocando a questão nesses termos, não estou reivindicando aqui um enrijecimento do cânone, embora, nesse movimento, ele esteja pressuposto. Entretanto, quando nos concentramos no cânone, nos concentramos na produção e não na recepção e na reprodução da Literatura. O que proponho é um percurso inverso. Ou seja: pensar de que modo e por quais expedientes os escritores funcionam como meios para que o leitor galgue patamares artísticos e intelectuais cada vez mais sutis, ou seja, algo diferente de pensar de que modo esses mesmos escritores se inserem em determinada tradição. Nesse sentido, há escritores capazes de produzir aberturas, frestas, fissuras no tecido da Literatura, remetendo o leitor para outros níveis da arte verbal. Teríamos assim, parafraseando a grande cadeia do ser de Arthur Lovejoy, uma grande cadeia da leitura. Podemos chamar esses escritores de escritores de passagem. Não são escritores medianos, pois isso pressuporia uma valoração de suas obras, o que não vem necessariamente ao caso, e nem todo escritor mediano é um escritor de passagem. E aqui as coisas se complicam um pouco.
Boa parte dos obstáculos que temos na relação com a leitura, e que é um dos ingredientes principais para a deformação dos leitores, de que trata esta minha fala, consiste nessa grande camada de escritores e obras que, sendo destinada a um público relativamente grande, não produz passagens. São obras e autores isolacionistas, opacos à sinalização de qualquer coisa que os transcenda; sua escrita nasce de uma espécie de mesquinha geração espontânea; não dialogam com outros autores e obras, e, mais que isso, quando o fazem, não deixam vestígios desse diálogo. Por isso, uma das características que distinguem um escritor de passagem é essa: ele remete a um público variado, tenta escrever para um púbico amplo, mas coloca-se explicitamente na perspectiva de um continuador de outros escritores ou obras. Há certo grau de transparência entre ele e outros escritores; essa remissão vem sinalizada na obra, em maior ou menor grau, independente do valor artístico dessa mesma obra.
Na definição das obras de passagem não está posta uma questão valorativa, mas sim uma capacidade de abertura e uma situação estratégica. O auto de passagem não é propriamente um autor que podemos dizer canônico, pois há outros que em termos artísticos foram além dele. Mas ele é preciso e muito precioso, à medida que se propõe e consegue falar para um número grande de leitores, na maioria das vezes muito maior do que o dos leitores concretos atingidos por um escritor clássico ou canônico. Uma das maiores dificuldades que o Brasil enfrenta na formação de um público leitor, e que chega a ser quase caracterizada como um problema de saúde pública, não é o fato de termos poucos escritores grandes, pensando-se em termos da história da literatura ocidental, mas sim a falta de escritores de passagem. Diria a sua ausência quase absoluta. Isso apenas mimetiza o abismo social que marca tão bem a sociedade brasileira, e está posto nas figuras dos rabugentos e parasitas sociais de Machado de Assis, aqueles sujeitos sempre cindidos entre a genialidade e a estupidez, sem nunca chegar à dimensão propriamente humana de um diálogo com seus semelhantes. Entre a grandiloquência canônica e a imbecilidade, parece não haver negociação possível; esse fosso é o melhor alimento para que doutores e analfabetos continuem tranquilos, proliferando-se em paz, em seus respectivos lugares.
Para falar de literatura brasileira, Jorge Amado e Vinicius de Moraes, por exemplo, são grandes autores de passagem. Não creio que possamos comparar Jorge Amado à complexidade humana de Guimarães Rosa ou de Machado; também não tem o prodígio da forma e da linguagem, como o encontramos em Osman Lins; não chega às dimensões da experiência do abismo interior que temos em Clarice Lispector, Lucio Cardoso ou Cornélio Penna; não chega à vertigem e à linguagem encarnada de Hilda Hilst; não tem a dimensão metafísica e negativa de um Murilo Rubião; tampouco chega à travessia mítica de um Ariano Suassuna. Malgrado as críticas bem-vindas ao modernismo paulista, o Macunaíma é uma obra que consegue compor uma rapsódia das matrizes culturais brasileiras, sob um ponto de vista de fábula, coisa que em Jorge Amado acaba sempre redundando em uma dimensão algo folclórica.
Mas seu papel, não no cânone da literatura brasileira ou mundial, mas sim na formação de leitores, foi e continua sendo enorme, muito maior do que muitos autores tidos como canônicos; sua obra nos faz empenhados em estabelecer um compromisso ficcional com as verdades que ele nos oferece; transita em diversas camadas sociais e culturais; coloca problemas políticos e sociais em um nível de acessibilidade a um público diversificado. Mais que isso: leva-nos a Hemingway e à literatura realista, ao interesse pela antropologia, pela literatura de costumes e religiosa, pelos relatos históricos sobre a Bahia e a fundação do Brasil.
Há uma espinha dorsal da poesia que está ligada aos poetas que a concebem nem como jogo verbal, nem como mediação de sentidos externos, indo colher seu enigma no próprio mistério órfico de sua origem. De Paz a Lezama, de Dylan Thomas a Kaváfis, de Rilke a Montale, de Bonnefoy a Saint-John Perse, de Eliot a Pound, de Akhmátova e Mandelstam a Drummond, Jorge de Lima e Murilo Mendes. Comparar Vinicius com esses poetas é quase uma piada de mau gosto. Todos eles estavam em busca de uma fundamentação da linguagem nos limites mesmos da nossa percepção e compreensão de mundo, ao passo que Vinicius é uma espécie artesão de formas prévias aplicadas a eventos circunstanciais da vida prosaica. Porém, nesses termos, foi um mestre. E mais que isso, abriu caminhos para a leitura de poesia e para a ampliação de sua irradiação.
De Vinicius vamos a Neruda, que é um autor criticável, mas que escreveu o Canto General. De Vinicius vai-se ao Lorca, a Whitman, a Claudel, a Fitzgerald, a Baudelaire, a Verlaine. De Vinicius vai-se a Camões, à tradição do soneto e à própria tradição da lírica de língua portuguesa, de Sá de Miranda a Camilo Pessanha e a Pessoa. Sob um ponto de vista do cânone, colocarmos Whitman e Vinicius numa mesma balança é disparate. Mas do ponto de vista da grande cadeia da leitura, que proponho aqui, sem borrar as distinções valorativas, pode-se pensar em autores como Vinicius como autores de passagem, autores que nos levam a outros, que mantém viva a força atrativa do Ímã, mas que sinalizam as outras vozes ocultas sob a sua voz, e, por isso, a despeito da grandeza ou pequenez de suas obras, são autores que têm uma importância infinitamente maior para a formação de leitores do que um Mallarmé, por exemplo.
Há autores que têm uma função de passagem tão destacada que acabam nos conduzindo até mesmo a outras regiões do conhecimento. Lembro, por exemplo, a importância que Aldous Huxley e George Orwell na minha adolescência. Levaram-me à filosofia, à física, à história, à política, à mística. Tudo por conta dos mundos inabitáveis de ambos e das experiências psíquicas do primeiro. Os escritores beats, que têm momentos de genuína grandeza literária, como em Ginsberg, em outros funcionam como escritores de passagem. Penso em Kerouac, por exemplo. Que ele tenha momentos de lirismo, como em Viajante solitário, em On the Road e em Os subterrâneos, é indiscutível. Que a proposta de libertação social que os beats encabeçaram possa ser minimizada também é algo discutível. Mas deixando de lado o fenômeno sociológico, literariamente quase toda a obra de Kerouac não passa de uma etapa da linguagem que vai da adolescência à vida adulta. Porém, foi ele que me abriu, aos quinze anos, para Nietzsche e, deste, para Espinosa, Blake e alguns místicos. Foi ele quem me conduziu a Thoreau, a Emerson e a Whitman. Foi ele que, em suas listas de escritores transgressores, tão ao gosto dos adolescentes, me levou a Baudelaire, aos simbolistas e até mesmo a Schopenhauer.
Na contramão da escalada da cadeia da leitura, não raras vezes há grandes autores que podem deformar o leitor. Isso depende do momento em que eles lhe forem apresentados, e da maneira que o leitor chega a esses mesmos autores. Uma leitura de Montaigne, de Proust ou de Raul Pompeia feita por um garoto pode levá-lo a abandonar definitivamente a literatura. Por seu lado, o cânone oficial eleito pelas histórias da literatura não apresenta empecilhos menores à formação do leitor. A velha e inconcebível eleição canônica de obras e autores tendo em vista os critérios linguísticos e político-nacionais já destruiu muitas gerações de leitores. E se continuar, com o atual andamento da velocidade dos meios de comunicação e com a multiplicidade dos acessos possíveis à informação, vai acabar matando outras tantas gerações ainda no berço. O motivo é tão claro como a luz do dia, mas os expedientes ideológicos que corroboram os critérios canônicos parecem ser mais luminosos do que qualquer obviedade.
Para a formação de um leitor, Milton é muito mais importante do que o padre Manuel Bernardes, Tasso é muito mais importante do que Basílio da Gama, os trovadores toscanos e provençais, mais importantes do que quase toda a poesia galego-portuguesa, e Dante, mais importante do que todos eles juntos. Stendhal é muito mais importante do que Camilo Castelo Branco, Laurence Sterne e Xavier de Maistre são muito mais importantes do que Fagundes Varela e Casimiro de Abreu. Faulkner é muito mais necessário para se conhecer literatura do que Oswald de Andrade. Rimbaud é infinitamente mais central e urgente do que Joaquim Manuel de Macedo, e Baudelaire, um autor decisivo diante da palidez do dispensável Anchieta.

Os tempos da literatura

Nas polarizações propositais que fiz acima, apenas cotejei autores de outras línguas com autores de língua portuguesa. Mas a partir delas é possível vermos quanto o ideal da formação de leitores tem sido sabotado desde os bancos escolares. Se fizéssemos uma revisão drástica do cânone de língua portuguesa, teríamos que revolver e rever muita coisa, a começar pela eleição dos autores da própria língua. Sob um pretexto formativo, de cunho sociológico e histórico, cujo objetivo é mostrar-nos as etapas da formação de uma hipotética consciência nacional, a história da literatura faz dos autores peças dessa engrenagem. Se esse discurso é vigente desde o ensino fundamental, com livros didáticos e histórias da literatura, pode-se ter a dimensão de quanto a leitura já foi e continua sendo empobrecida.
Para sanar esse problema, teríamos que rever os pressupostos que organizam a eleição dos autores canônicos, abrindo a premissa para o estudo da língua portuguesa por meio também de suas traduções, e não apenas das obras originalmente escritas nesta língua por cidadãos da lusofonia, mais precisamente, por brasileiros e portugueses. Mas talvez seja exatamente esse o ideal de uma cultura literária das mais sólidas, e o primeiro passo para o desenvolvimento de um amor autêntico pela arte verbal. Sem isso, todo o resto se perde, seja a circunstância política, seja o contexto histórico, seja o próprio passado que, enquanto passado, está morto.
As implicações dos autores de passagem podem ser grandes. Mas há outros tipos de passagens literárias, que não se fazem de obra a obra, mas de leitor a leitor, e que tem no ensaio e na crítica suas formas privilegiadas. Não trato delas aqui, pois não cabem nesta exposição e tal diálogo já pressupõe em si leitores formados, diferente do que vinha tratando até agora, isto é, das maneiras pelas quais há autores rigorosamente populares ou que gozam de prestígio junto a leitores os mais variados, e mesmo assim funcionam como condutores rumo ao desconhecido terreno do novo, que brota do horizonte do passado ou dos interlocutores do presente. O diálogo entre leituras já não diz respeito à formação de novos leitores, mas ao refinamento de leitores já convertidos. Mesmo assim, é de grande importância, pois é ele que nos leva à ascensão na cadeia de anéis, rumo a formas cada vez mais genuínas de expressão e, se for realizado de maneira consciente, a obras cada vez mais endereçadas à realidade plena de nossa vida e de nosso espírito. Não é preciso recorrer a Auden, a Valéry, a Borges, a Calvino ou ao clássico Talento individual e tradição, de Eliot, para saber o papel desse diálogo para a trama da literatura.

Das leituras ao mundo

Por fim, e para finalizar, um pouco de polêmica. Diz respeito não tanto à leitura e aos leitores, mas à legibilidade. Além da formação de leitores, é preciso prestarmos atenção a um fenômeno cada vez mais gritante, de consequências graves, que tem contribuído para a deformação de leitores: a especialização e a burocratização da leitura. Em geral, esses sintomas ocorrem em graus desenvolvidos de leitura, não necessariamente em uma mesma pessoa, mas quase sempre entre pessoas de cultura elevada e não raro de certa erudição. Entretanto, por mais legítimo que seja a finalidade de uma tal especialização, do ponto de vista estrito da leitura, que tratamos aqui, caso o leitor não domine também algumas obras e autores fundamentais e não consiga estabelecer uma visão orgânica de conjunto das obras e dos autores, no tempo e no espaço, ele estará forçosamente em um processo de leitura degenerativa.
Em outras palavras, o isolamento de partes de obras ou de discursos em outras partes de obras e discursos que não encontram mais ressonância com o contexto de onde foram extraídos, é o começo de um divórcio entre conhecimento e erudição, entre a experiência concreta de minha vida e a plenitude da vida do espírito. Comprometer esse percurso que vai do fragmento ao todo, e que, segundo Ortega y Gasset, é o princípio da própria inteligibilidade do mundo, é o mesmo que instituir em campos separados o meu coração e a minha mente, a minha circulação sanguínea e a minha coordenação motora, o meu sexo e a minha visão, destruindo as sutis formas de comunicação que essas instâncias estabelecem entre si. Sob o nome de cultura, de pesquisa, de erudição ou qualquer outro adjetivo principesco, não é nada mais do que própria ruína da cultura que vislumbramos nesse desmembramento, o canto de cisne dessas partes isoladas e exiladas, não de uma hipotética totalidade universal, mas sim do contexto vivo no qual nasceram.
Nessa cultura da especialização, torna-se cada vez mais difícil englobar alguns campos de conhecimento, dentre os quais alguns que são nucleares para se compreender a própria essência do homem. Por exemplo, me parece praticamente impossível conhecer os motivos que nos conduziram até o estágio atual da humanidade sem recorrer aos textos básicos daquela fase que Karl Jaspers definiu como Era Axial, conceito fecundo utilizado por Toynbee na sua morfologia histórica e que recentemente serviu de base de A grande transformação, bela obra da historiadora das religiões Karen Armstrong. Há muitas controvérsias quanto às datas, mas em linhas gerais formação da Era Axial vai de 900 a 200 a.C., remontando, entretanto, às origens arianas dos povos das estepes da Eurásia e à sua descida, a leste e a oeste, em direção ao Mediterrâneo e ao Indo, a partir de 1600 a.C. Um dos primeiros profetas a deflagrar as mudanças que adviriam dessa transformação espiritual teria sido Zoroastro, por volta de 1200 a.C.
Trata-se, em linhas gerais, do período onde brotaram todas as ideias seminais que serão espinha dorsal de todo o desenvolvimento espiritual, social, religioso, histórico, moral, legal, filosófico, artístico, científico e militar, tanto do Ocidente quanto do Oriente. Essa nascente comum teria engendrado Sócrates, Buda, Lao Tze, Deutero-Isaías, Confúcio e Cristo. Esses nomes, articulados, constituíram: a base socrático-filosófica do Ocidente, que miraculosamente se transfigura em Cristo, assumindo a dimensão de verdade revelada, e recebe a racionalização grega, judaica e alexandrina, da teologia posterior; as bases do budismo, que, mesclado ao hinduísmo, o alterará radicalmente; o taoísmo e o confucionismo, que definirão, respectivamente, as concepções esotéricas e exotéricas, a espirituais e as políticas, do Oriente e do Extremo Oriente; o legado de Zoroastro que teria sido retomado por Mani, e, por meio dos maniqueus, ter-se-ia transfigurando e consumando muito depois com Maomé; a mensagem do Deutero-Isaías, que servirá de fundamento, tanto à preservação e desenvolvimento do judaísmo, quanto à configuração de uma cultura judaico-cristã, além do próprio Cristo, cuja mensagem e efeito ulterior dispensam maiores comentários.
Ora, essa guinada na quadratura espiritual da humanidade, levada a cabo no intervalo de cerca de sete séculos e que tem motivações internas profundas, não foi fruto de um mero acúmulo material (como quereriam historiadores materialistas, sendo aqui historiador materialista um mero truísmo), nem fatos totalmente isolados uns dos outros, como linhas que corressem paralelamente, tampouco um desprezível acaso ou um imperativo Destino. Em outros termos, quero dizer que a motivação profunda que ocasionou a mudança operada pela Era Axial não é acessível ao especialista. Ela só pode ser entendida em termos espirituais, ou seja, se abordada, a um só tempo, verticalmente e em conjunto. Dado que a prática de uma leitura do conjunto ou de uma leitura orgânica do movimento da história, que devolva os textos à totalidade de sentido da qual eles provêm, está há tempos em declínio, esse acesso às formas globais de sentido e da própria vida humana nos está sendo paulatinamente confiscado. É preciso restituir o sentido oculto da leitura, ou seja, não mais uma leitura de livro a livro, mas sim uma leitura do texto ao mundo, que seria uma concepção da leitura como uma chave privilegiada para adentrar os mistérios do Espírito, capaz de juntar as suas peças aparentemente desconexas. Só assim elas poderão falar, miraculosamente, sobre o seu devir e sobre o nosso futuro.

Do mito ao mito

Por seu lado, podemos nos perguntar: a tão criticada vertente da “espiritualidade” contemporânea, com sua literatura de gosto e valor tão duvidosos quanto populares, seria de fato a besta apocalíptica do fim dos tempos, como querem os intelectuais? Ou, a despeito do evidente artificialismo das buscas “sagradas” e de suas interrogações “religiosas”, tão em voga nos dias de hoje, estaria se desenhando um movimento de sensibilização para os textos sagrados, que são a base centrípeta para uma compreensão genuína da história? Até que ponto o interesse “espiritual” dos dias de hoje, entre a publicidade e a frivolidade, não pode operar um salto qualitativo, e nos conectar, não a uma cadeia que ligue a literatura à literatura, nem o autor ao autor, nem a obra à obra, mas produzir uma nova legibilidade das origens e das destinações humanas? A retomada, em outra chave de leitura, dos textos dos avatares, pode vir a ser um meio para o homem eleger um novo caminho para si, como alternativa a tantos outros caminhos de miséria, angústia e desespero? É algo que só a história dirá. Isso, porém, já são leis não escritas. Não pertencem a nosso domínio nem ao domínio deste texto. Ou seja, o limite e o ponto final das leituras e dos leitores, de que tratei até aqui, chegou ao fim.

Texto escrito originalmente para o debate:
Coordenação da mesa: Maiara Gouveia