quinta-feira, 19 de novembro de 2009

EVOLUÇÃO

Em uma passagem tão instigante quanto polêmica, Ortega y Gasset sugere que a modernidade padece de um mal intransponível. Na medida em que ela instaura, como sua essência, a necessidade de superação de toda a etapa anterior, ela paradoxalmente funda para si a sua própria impossibilidade. Não estamos diante de um problema relativo à validade do conhecimento ou à sua fundamentação ontológica, mas sim de um erro meramente lógico, pois, nesses termos, o projeto moderno nunca conseguiria e sequer conseguirá ultimar a sua premissa. Afinal, propor-se superar a superação é algo que vai da falácia lógica à tautologia e ao mero truísmo.
Natimorta, a modernidade ambiciona ser sempre uma superação de si mesmo, sem, contudo, poder superar o coração dos valores a partir dos quais ela lança luzes sobre as coisas e acima de tudo sobre si mesma. Porque se eu instituo a superação como fundamento, atesto consequentemente a insuficiência intrínseca a meu projeto, que vem implícita na própria premissa que ele sustenta. Ora, ao contrário do que se imagina, essa identidade entre criação e miséria, entre transgressão e liberdade, entre arte e destruição é-nos bem conhecida, propalada por quase todos os teóricos da modernidade.
E ela não se espraia apenas na criação artística, muito pelo contrário. Diz respeito à dimensão axiológica em torno da qual giram todas as demais dimensões humanas. Ao fazer coincidir, no interior do meu projeto, o seu não-ser e o seu telos (finalidade), demonstro que a sua essência é a sua própria ruína. Porém, mais uma vez sob um ponto de vista lógico, essa ilação é algo tão paradoxal quanto dizer que a essência da vida é a morte, e não que há um duplo domínio incógnito, um umbral, uma película de fina tessitura onde esses dois inexplicáveis mistérios se tocam.
Entre uma concepção e outra há muita diferença. E para perceber isso, basta pensar no princípio de não-contradição de Aristóteles. É claro que os apologistas de certas concepções da modernidade sacarão da manga da camisa os seus ases e outros tantos blefes. Dentre eles, a síntese, proposta por Hegel, entre os princípios contraditórios que se resolvem em uma mútua assimilação que, temporalmente, se dá no Espírito e, conceitualmente, na Ideia, espelho do Absoluto. O fantasma recalcado sempre retorna, meu caro Hamlet. E sempre retornará, por toda a eternidade. Sinal de que as sínteses são sempre aparentes, fenomênicas, e, no plano da realidade, só ocorreriam em uma instância última, tangível, porém inatingível: Deus. Além disso, o termo negativo em jogo aqui não é uma mera palavra ou um conceito vazio. Pode ser uma vida, um objeto, todo um conjunto de seres vivos em sua luta elementar pelo sol. Seriam assimiláveis, também eles, um ao outro? Sombras, sombras. Fogos fátuos. Jogos de palavras.
Essas contradições já foram assinaladas por dezenas de teóricos, com base na evidente tradição da ruptura, sobre a qual o projeto moderno se baseia. Porém, em geral, enaltece-se o teor positivo (crítico) do mesmo, sem considerá-lo de fora, sem tomá-lo como uma fatalidade, uma liberdade inexorável, dentro da qual há matizes, nunca uma crítica radical dos seus pressupostos ou de sua estrutura. Dessa forma, ainda não seríamos absolutamente modernos? Apenas pela reversão drástica de todos os valores isso se daria? Apenas com a consumação? Quando a destruição retém em si essência de sua forma anterior? Em certo sentido, sim.
Porque, para que tal contradição de resolva, teríamos que empreender um salto qualitativo, uma quebra dialética. Dir-se-ia que seria preciso uma guinada no estatuto eidético do real. Essa consiste em uma crítica da crítica, em um reconhecimento da absoluta ruína da razão crítica ou da desrazão cética, enfim, por meio de uma mudança da perspectiva global sob a qual temos visto o mundo do nos últimos séculos, dir-se-ia quase no último milênio. Uma revolução em nossa experiência do mundo, do real, do pensamento.
Muito se repisa a importância da imanência, do devir, princípio dessas singelas contradições que enumerei acima. Se algo passa, passa sempre e sempre deve passar em relação a algo distinto. Para que eu defina que todo o universo muda e sua essência é exatamente essa (mudar), então preciso de um imperativo metafísico que me demonstre a permanência, em contraste com a qual possa afirmar a minha proposição. Sem esta, sequer posso pensar a ideia de mudança; sem qualquer contraste parcial, eu acabaria por reduzir o mundo a uma completa anomia, feito de devir e devires que sequer podem ser postulados como tal. Não se pode medir uma diferença com outras diferenças, indefinidamente, pois não é possível haver um valor absoluto da mesma, uma Diferença, o que seria um paradoxo tolo, pois redundaria em uma destruição sumária e suicida da própria e maravilhosa heterogeneidade do Universo.
Essa impossibilidade se deve também a algo que concerne à teoria da percepção, que lhe é solidária. Por exemplo, a ordem dos termos de um enunciado não nasce de uma superação dos elementos anteriores. Tampouco o todo é uma justaposição, síntese ou soma das partes, por mais coesa que seja essa síntese. É a gradação de suas ocorrências que mostra o sentido daquilo que se nos oferece. A substância daquilo que se transforma é que define os graus parciais de transformação decorridos sobre o transformado e os modos de transformar operados por aquele ou aquilo que exerce a força de transformar. Sim, leitor, por mais que isso possa parecer óbvio, um cachorro não é a soma de uma orelha de cachorro, de um focinho de cachorro, de patas e rabo de cachorro, de tórax e órgãos de cachorro, procedendo assim ad infinitum até termos, por fim, o cachorro em sua cachorridade. A consecução mesma dos termos ao infinito já nos demonstra a vacuidade da soma dos termos isolados, como o enigma de Zenão, para o qual a subdivisão quantitativa dos segundos resultaria inadvertidamente no próprio infinito.
Esse etapismo escatológico que caracteriza a própria concepção moderna de tempo e de história tem consequências graves, tanto para o nível da nossa relação com o passado quanto para a organização da cultura e da vida psíquica em geral. Uma das coisas mais diretas que ele acarreta é a perda da dimensão transcendente da vida. Esse primeiro fator é o responsável pela assunção de uma paulatina transparência científica, acompanhada de uma proporcional opacidade simbólica da mesma. Posso macaquear um sem-número de fórmulas que descrevem o interior da matéria, mas não consigo ver a relação de contiguidade que existe entre Aristóteles, Avicena, Tomás de Aquino, Heidegger e eu. Entendidos como etapas sucessivas e superadas da dialética histórica, o que é vivo do passado não o é mais de maneira estrutural e estruturante do presente, mas como resíduo arqueológico de uma forma mentis há tempos superada e abolida. Aproprio-me dela, mas a neutralizo ao isolá-la do centro de interrogação que lhe deu vida. Dessa maneira, o próprio passado que recuperamos, recuperamo-lo deformado, pois lançamos luz sobre os restos materiais e apagamos a consciência interrogadora a partir da qual esse mesmo passado se produziu.
Não é por outro motivo que um exegeta de Platão ou de Duns Scott, em seu trabalho, pode produzir algo que esteja a milhares de quilômetros do núcleo duro da filosofia de Platão e Duns Scott. Isso não se dá por incompetência, falta de erudição ou inépcia. Mas apenas porque a nossa época, sendo materialista, reduziu os sujeitos concretos da história e do pensamento a resíduos materiais. Boa parte da exegese crítica, dos trabalhos acadêmicos, das propostas filosóficas e das análises históricas, neste contexto, acabam por se tornar edificações residuais do passado. Destacado da motivação interna que lhe deu origem, a obra do espírito diz mais daquela que disserta sobre ela do que sobre ela mesma ou sobre aquele que a criou. Assim, ruína de ruína, a incapacidade de apreender o movimento interno do pensamento em um ir e vir que é o fluxo e o refluxo entre a tradição e o futuro, a análise racional do passado não faz nada mais do que antecipar a morte do porvir e produzir a sua própria destruição, apoiada nas camadas ocultas e visíveis da história. Aquele presente pleno e puro de que fala Santo Agostinho é o oposto simétrico da presentificação obtusa da vida e do pensamento modernos, pois estes consistem em reduzir o passado a uma ruína e em confiscar o futuro como antecipação do que ele poderia não ser. Esse é o resultado natural e previsível de uma mentalidade e de formas de vida guiadas pela mística da evolução, da superação e do desenvolvimento.