quarta-feira, 18 de novembro de 2009

UMA VEZ − E BASTA: AS VIDAS E MORTES DE EMPÉDOCLES E DE HÖLDERLIN


HÖLDERLIN, Friedrich. A morte de Empédocles. Introdução e Tradução Marise Moassab Curioni. São Paulo: Iluminuras, 2009.


A obra e o mito

“Eu caminho entre vós como um deus imortal, não mais como mortal”. Por mais estranha que essa frase possa soar aos ouvidos modernos, ela parece explicar a situação de Empédocles de Agrigento, sua vida e sobretudo a sua morte. Pois foram as causas fantásticas desta última que o transformaram em mito. Em uma das versões, perseguido pelos sacerdotes de Agrigento, desapareceu nas proximidades do Etna. Em outra, teria se atirado nas lavas do vulcão, gesto que é entendido como corolário de sua ascese filosófica. Em todo caso, essa condição de “íntimo da divindade”, e, ao mesmo tempo, de “exilado dos deuses”, é que gerou o antagonismo cósmico de sua filosofia, a tragédia elementar dos ciclos da vida, do mundo e da transmigração das almas.
O poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843) não só fundou as bases do mito de Empédocles em um drama em versos que é, do início ao fim, encantamento da linguagem e do pensamento unidos em um só acorde, como forneceu aquela que talvez seja a leitura mais dramática da vida do filósofo e, de saída, da vida e da obra dele próprio, Hölderlin. Esse verdadeiro testamento poético que é A morte de Empédocles (Editora Iluminuras, 2009) chega às mãos do leitor brasileiro por meio de Marise Moassab Curioni, em uma tradução impecável, com frequentes laivos de brilhantismo, fruto de anos de dedicação. Nela Marise conseguiu o milagre de preservar o sentido, a música e, acima de tudo, o mito e os conceitos do poeta. Não por acaso, a obra acaba de receber o 1° Lugar do Prêmio Jabuti − 2009, na categoria Tradução.
Como nos adverte a tradutora, embora tenha ficado inacabada, a obra foi composta em três versões, cada uma lançando luzes sobre uma de suas facetas. Por mais difícil que seja definir o seu núcleo, talvez ele esteja no conflito entre a possibilidade e a impossibilidade de reconciliação. Ainda que o filósofo diga que está “reconciliado” com “mortais e deuses”, acredito que essa reconciliação seja apenas parcial; não é efetiva, mas simbólica. Ela se dá no nível do indivíduo, não no nível coletivo, ou seja, naquilo que constitui o essencial da tragédia enquanto tragédia. Hölderlin tinha plena noção disso. E o poeta assim o quis para que nós arquemos com metade de sua arte. Em outras palavras, para que nós finalizemos a transformação em nós mesmos.
Mesmo conhecido como “amigo dos deuses” e como “homem semelhante aos deuses”, “tão divino e próximo”, para quem é tão “íntima a Natureza”, o destino demasiadamente humano de Empédocles o coloca como “anátema sagrado”. Nas contrações e distensões da Discórdia e do Amor no movimento da Esfera, o Empédocles criado por Hölderlin nos mostra que estamos tão próximos das “Fontes da Vida” quanto da “fuga dos deuses”, pois mesmo o “divino conhece o ocaso”. Até mesmo o divino se furta ao comércio com os homens e, quando se mostra a eles, macula-os com sua marca sacrílega.
Ainda que a “Natureza seja sagrada”, vivemos em “tempos carentes de heróis”. Para Empédocles, os “deuses pátrios” não correspondem mais à sua verdade íntima, ou seja, não são suficientes para legitimar nem o humano como humano nem o divino, como divino. É em razão desse processo de isolamento que, nas palavras do sacerdote Hermócrates, o filósofo acaba “virando um estrangeiro”. Não estrangeiro da pátria e do plano temporal, mas um estrangeiro da existência atemporal, apartado primeiro dos deuses, e, por conseguinte, dos homens, por não mais compartilhar das crenças que os enraízam.

A cena mundana

Em A morte de Empédocles, Hölderlin conseguiu captar a dinâmica do sagrado em toda a sua plenitude e complexidade, por meio da qual a filosofia assume as dramatis personae do poeta. Ao lê-la, somos induzidos a retirar essa máscara, chamada Empédocles, e nos vemos diante de um rosto: Hölderlin. Poeta solar, da loucura mais cristalina que já se concebeu, ele soube intuir a pulsação cósmica que subjaz à enantiodromia e ao jogo infinito dos contrários. Sendo também, não poeta de poetas, mas um “poeta da poesia”, nas palavras de Heidegger, coube a Hölderlin fundar sua própria tradição, o que equivale, para o Espírito, a fundar-se a si mesmo, como poeta e como homem, o que é o mesmo que se desvelar como ser existente (Dasein).
Assim, sua efígie parece dizer-nos que desde que saímos da Esfera, desde que saímos do Um e nos arrojamos à constante transformação, não há outra saída senão esta. Uma só vez. E “uma vez mais” − e tudo está determinado. Uma só vez. E basta. Esse é o sentido da vida. Essa é sua beleza, que sempre será trágica, pois ambas as palavras no fundo são uma coisa só.