domingo, 29 de novembro de 2009

FÍDIAS: DA CRIAÇÃO


SÓCRATES

O que você pensa enquanto cria, caro Fídias?

FÍDIAS

Ora, não penso em nada. Se pensasse não criaria. Aliás, talvez até pense em alguma coisa. Não propriamente eu, mas minhas mãos.

SÓCRATES

Isso é estúpido. Todos nós sabemos onde o pensamento se situa. O que quer dizer?

FÍDIAS

Mas é verdade. O hábito levou-as a agir de certa maneira, de acordo com certo passo da construção e as necessidades que ela demonstra. Elas efetivamente sabem o que é preciso fazer; desenvolvem um pensamento sem reflexão: elas não têm consciência do que fazem, mas sabem como fazê-lo, e isso é o fundamental. Se no meio de um trabalho começasse a refletir sobre os meus meios eu seria um artesão inapto e estragaria tudo. E, no fundo, essa pergunta não significa nada, Sócrates. O que eu quero dizer? Não sou eu que quero, as palavras que o querem. Assim também quando manuseio o alabastro e a argila, cada nova forma que vai se delineando pede uma outra que a complete e dê harmonia àquele todo que ainda está em processo. Podem me dizer: mas quando você esculpe, já tem um tema em sua mente. Sim. Mas trata-se apenas de uma ideia geral, e ideias gerais não são obras, são rascunhos e projetos. A arte não se faz com ideias. Dizer isso é o mesmo que dizer que a geração de um feto pode ser fruto de hipóteses e conjecturas.

SÓCRATES

Posso compreender melhor agora o que me diz, embora não esteja totalmente claro. A arte tem suas próprias regras, concordo. Até mesmo os materiais que você seleciona para compor um busto já trazem em si algumas limitações. Talhá-lo em mármore ou em madeira, ainda que partindo de uma mesma ideia e querendo uma mesma finalidade, já condiciona a expressão, e faz com que a matéria escolha, muitas vezes à sua revelia, o que ela quer dizer. Então todo o trabalho do artesão consiste em interceder, dar voz às coisas que, sem forma, são mudas? Quem cria em você quando você cria? Essa é a questão que me atormenta, caro Fídias. Quem é exatamente o autor das criações?

FÍDIAS

Não tenho muita certeza quanto a quem seja. A ideia que me parece mais plausível é a de que não seja alguém, mas algo. Afinal, não deixo de ser eu mesmo no momento em que lapido, e sabemos que as artes são formas privilegiadas de estarmos em nós mesmos, de sermos apenas nós mesmos sem ser nada mais. A arte nos livra de dois males: o de não sermos nós mesmos quando no convívio com os outros e o de não sermos nada quando no convívio único e exclusivo com nós mesmos. Os místicos e os sábios buscam coisa semelhante por outras vias, assim como o eremita. A linguagem, sendo produto coletivo, é um dos instrumentos de que dispomos para dialogar com os outros e com o mundo de uma forma particular e privada. Ou por acaso há quem acredite em criações coletivas? Um grupo só pode exercitar um engenho, nunca pode confeccionar uma obra. As regras de que disponho para criar podem ser anônimas e coletivas, mas no momento mesmo em que o faço não é possível que haja outros no meu encalço. Depois de prontas, as esculturas perdem a minha marca, se é que há alguma: voltam a pertencer à comunidade e aos indivíduos que as apreciem. Os espectadores são muito mais donos de minha obra do que eu, os leitores mais senhores dos versos do que o próprio poeta. Haveria como ser diferente? Os versos foram escritos uma única vez, mas lidos diversas. Às vezes penso, caro Sócrates, que a leitura e a apreciação parecem gestos mais nobres que a criação. Mas, voltemos ao assunto. Poderia definir esse movimento assim: a matéria escolhe boa parte das ações daquele que a escolheu. Mas, por que madeira e não alabastro, por que mármore e não bronze, por que um tipo de tinta e não outro? Se a obra é fruto de uma encomenda, o seu patrocinador é que terá o mérito de dar a última palavra, conforme o seu gosto e o material que ele suponha mais perene e rico, e vá, assim, imortalizá-lo de maneira mais tenaz e brilhante. Mas aqui estamos no âmbito do puro gosto e das convenções sociais, as duas formas mais cultivadas da idiotice. Temos que pensar além.

SÓCRATES

Fale, continue falando Fídias. Suas palavras me inebriam.

FÍDIAS

Se executo uma ação, qualquer que seja, ela nunca estará isolada, destacada dos outros acontecimentos que me rodeiam, muito menos – ai, como há pensamentos vulgares no mundo – é uma mera consequência de outras ações. A ação, nem a do louco nem a de um doente dos nervos, nunca está ilhada em si mesma, embora ela tenha certa autonomia. Resumindo, ela é contingente mas não é dependente. Ora, na criação parece que se dá algo parecido: nunca posso prever o resultado final exato de meu trabalho. Se me é dado representar Apolo, e Dafne transformada em loureiro, tenho que me reportar aos versos do ilustre Homero. O fato é que, por mais que eu me empenhe em meu ofício, nunca, e duvido que haja um artífice sobre a terra que o consiga, nunca terei domínio total sobre a minha matéria. Ao fim, teremos Apolo e Dafne. Mas, e os detalhes? Uma torção de músculos, os matizes de uma folha, a ondulação da bata: tudo isso não será obra minha, será obra do acaso – ou de Deus. Não há como prever com exatidão absoluta o resultado final, nem os meios técnicos de alcançá-lo em sua totalidade. Os detalhes nos escapam, assim como Deus.

SÓCRATES

Então essa força invisível que age na criação é algo que ultrapassa você? Está fora de você? O artífice é uma espécie de instrumento?

FÍDIAS

Não está fora nem dentro, mas simultaneamente dos dois lados. É contígua a mim, mas me escapa. Cerco-a, mas não a limito. Expresso-a, mas não a defino. O que seria isso, caro Sócrates? Você que lida com os fundamentos do próprio ser por intermédio de conceitos, responde-me se é capaz. Isso me fascina e confunde.

SÓCRATES

Percebo sua aflição, e também a compreendo. Não quero aqui pensar que as formas sejam passíveis de uma filosofia, pois essa ideia guarda algo de tolo. Partindo dessa visão teríamos que reconhecer que as obras são veículos dos conceitos, e assim transformá-las em servas das ideias, o que me parece um tanto quanto deprimente. Talvez tenhamos que pensar que a arte não traz em si pensamentos: ela mesma é uma espécie de pensamento. Uma estátua não é como um martelo, não é instrumento de nada. Após algumas marretadas, o prego é cravado e podemos então jogar a ferramenta no lixo, porque seu valor se reduz à sua função. Já o seu Apolo, além de uma função civil, tem sentido e beleza. E agora me sinto impelido a falar sobre essas duas qualidades.

FÍDIAS

Ó Sócrates! Não imagina a minha felicidade se pudesse me definir o que vêm a ser essas duas palavrinhas sob as quais se estende o abismo mais profundo do pensamento.

SÓCRATES

Se olho um pôr do sol, na limpidez de um céu sem nuvens, certamente ele me parecerá belo, e vou contemplá-lo até a sua extinção no horizonte, certo?

FÍDIAS

De acordo.

SÓCRATES

Ele traz em si uma proporção entre as suas partes, e um equilíbrio entre as cores e os tons da mesma cor que surpreende a nossa percepção, deleita e entretém o espírito. É como uma tela em tamanho natural cujo pintor desconhecemos e talvez não possamos nunca conhecer. Posso afirmar que ele tem beleza. Mas se eu me perguntar qual o seu sentido, não obterei resposta nenhuma. Todos os seus possíveis sentidos são atribuídos por mim. Se disser que esse pôr de sol me fala de melancolia, tristeza, nostalgia ou renascimento, estarei dando qualidades humanas a um produto e a um autor que não o são. Estarei falando de um pôr de sol hipotético, não efetivo. Ele tem beleza, mas não tem sentido, porque este, se é que podemos defini-lo assim, é a recuperação de um gesto original, uma certa condição de pensamento que deduzimos da forma. O sentido, Fídias, não está contido no que sentimos. A sensação é um primeiro passo para chegarmos a ele. Poderia dizer que o sentido é o processo que levou à conclusão de um objeto, e se encontra adormecido nele. A Criação não está acabada – vive em constante mutação – e é anônima: por isso ela não pode significar.

FÍDIAS

Mas me diga uma coisa. Se desfiro uma estilingada em um pássaro e o abato, deixando-o caído, morto, sobre a folhagem de uma floresta, e um andarilho o encontra, ele poderá deduzir o ocorrido, e saberá que aquilo foi obra de um agente humano. Afinal, os pássaros não se estilingam entre si, o que é, por si só, uma curiosa lição de humanidade. O que isso tem a ver com a beleza? Não consigo entender.

SÓCRATES

Tudo o que ocorre no âmbito das criaturas humanas pode significar, e não precisa ser belo para tanto. Uma coisa não se atrela a outra. O defunto da pobre ave diz ao seu andarilho: há um caçador pelas imediações. Deduzindo o gesto que levou a um fim, ele desvendou o seu sentido. Agora, qual o sentido das estrelas e das marés? Qual o sentido da fera que abate a presa? A alimentação? Ora, mas isso não é um processo que é aos poucos construído, mas simplesmente um motivo. Devemos distinguir sentido e motivo. Este tem como motor a pura necessidade, e não consegue se desvencilhar dela, enquanto aquele não visa nenhum objetivo definido. Uma das idiotices correntes é achar que algo só tem sentido se comunicado. Um homem perdido no extremo da Ásia Menor, vagando por um deserto, não estabelece comigo nenhuma relação. E, no entanto, isso não diminui a sua realidade nem altera o seu valor. Isso é uma crença de plebeus do espírito, esses seres mesquinhos que acham que o universo foi criado para o seu usufruto e contemplação. Quando ignorantes sobre algo ou ignorados por algo, tratam logo de jogar a culpa no objeto que lhes recusa. Esquecem-se que são uma pequena parte, uma das peças da Criação, e que todas as demais criaturas vivem, amam e se movem à sua revelia.

FÍDIAS

Assim também se dá com as obras de arte, Sócrates. Querem sempre saber para que público esculpo. Respondo que não sei, e que talvez o público seja na verdade uma invenção das estatísticas e de homens de pouca fortuna mental. Quando lapido o mármore a última coisa em que penso é em um interlocutor. Não esculpo para pessoas, esculpo para a tradição – a partir dos mortos e para eles. Toda a criação é uma descida aos infernos e à ruína, mas sempre com o intuito de trazer de lá uma pérola e uma criança. Do contrário não se cria, se inventa. O artífice que despreza a tradição é como um sujeito que desse à luz uma nova língua: gera algo que tem realidade, mas que não tem consistência. Talvez essa crença cega e estúpida na comunicação é que nos faça viver em um mundo repleto de tagarelas que não dizem nada, e de pessoas que gesticulam e gesticulam e, no entanto, nunca se movem.

SÓCRATES

Disso tudo, Fídias, podemos aduzir que o sentido de suas estátuas é intrínseco a elas mesmas, embora tragam o eco daquele gesto inominável que os ultrapassa, a você e a elas. São como a serpente que morde o próprio rabo. Enquanto todo gesto corriqueiro remete a algo que está fora dele, a obra do artífice só se narra a si mesma. Ou seja, ela não quer comunicar nada, ela quer gerar. A arte é uma aparência que aspira ao ser, a mais pretensiosa e bela das mentiras. O artifício de artesãos como você é o único ponto da existência que ata beleza e sentido em proporções iguais. Tem sentido porque gera, movimenta sensações e afetos, e tem beleza porque nada nele é gratuito, e cada sensação e afeto nasce de uma forma criada especialmente para isto.

FÍDIAS

Ouvi você falar uma palavra muito importante: proporção. O artífice seria então aquele homem que tem e exercita o dom das proporções?

SÓCRATES

Sim.

FÍDIAS

Então a arte não pode em nenhum momento falar do feio e do deformado?

SÓCRATES

Claro que pode. Desde que isso seja um efeito criado e não uma reprodução e consequência. Se você pinta um corpo podre, uma paisagem nebulosa, um pântano ou um animal que acabou de ser esquartejado tendo em vista, e conseguindo, dar ao espectador a sensação de podridão, nebulosidade, viscosidade e morte, sua obra será perfeita. A proporção deve estar na representação, não no tema. Ultimamente só se pintam nuvens e neblinas, não porque isso apraz aos pintores, mas simplesmente porque são ineptos e não sabem pintar. E isso já não é nem proporção nem reprodução, mas deficiência.

FÍDIAS

O que é proporcional é belo.

SÓCRATES

E o que é belo é bom.

FÍDIAS

Oxalá Sócrates! E quem me dá o senso, a medida do que seja proporcional ou não e, em consequência disso, bom ou não?

SÓCRATES

Quem você acha?

FÍDIAS

Vou narrar uma história. Outro dia me encontrei com um escultor cita, procedente da Babilônia. Uma pessoa muito afável, de traços delicados e um semblante firme. Levei-o à minha oficina. Percebi que ele olhou todas as peças ali dispostas sem dizer nenhuma palavra; desfilava entre as molduras num silêncio que já me enervava, pois parecia similar ao desprezo. Tomou um pequeno naco de barro, se concentrou e se pôs a tirar formas das mais estranhas em gestos rápidos e precisos. Devo confessar, Sócrates, que as figuras esgarçadas que vi ali, cabeças gordas e levemente tortas, olhos enormes e penduricalhos na garganta, não me convenceram nem um pouco, para não dizer coisa pior. Em seguida, o seu próprio autor começou a me falar da sua terra e de seu povo, e a dizer como era a vida e qual o significado de seus pares em sua terra natal. Emudeci, perplexo diante dos fatos que me contava. Percebi que não só os nossos sensos de proporção e medida, até mesmo do tempo e do espaço, eram diferentes, como a própria concepção do que era e representava o nosso ofício era radicalmente diversa. Toda escultura produzida no seu país tem uma função e um significado religiosos, enquanto para nós, excetuando as narrativas dos deuses olímpicos, ela se reduz a uma convenção e a uma função políticas. Toda a produção filosófica do seu povo é revertida para os avatares, a quem rendem sacrifícios, enquanto para nós essa mesma produção tenta, embora muitas vezes não consiga, ser o resultado e estar a serviço simplesmente dos homens. E assim por diante. Ao me despedir dele, senti uma calma feliz, misto de mal-estar, contemplação e dúvida, que só me levou a desempenhar com mais tenacidade o meu ofício, seguindo os moldes da nossa tradição e seus costumes, o legado dos mestres e dos antigos, e deixando de lado qualquer reflexão sobre o assunto, pois toda ela me pareceu, naquele momento, inútil. E então, Sócrates, como ficamos?

SÓCRATES

Ficamos no mesmo lugar onde estávamos antes. Você tem que entender, querido Fídias, que as diferenças não produzem nada além de tédio e sono. A concepção e a situação do seu amigo cita é bastante diferente da sua, concordo. No entanto, aquela força invisível que age em vocês enquanto vocês criam não é nunca igual em suas várias manifestações, mas é sempre semelhante nas diversas contingências de que se reveste e sempre idêntica a si mesma onde quer e como quer que se revele. Ou por acaso você acha que ele não pertença ao gênero humano? Se você me dissesse que passou a noite dialogando com uma lesma, e que ela persuadiu você de que vivem em universos diferentes e sob regras artísticas distintas, aí o caso seria preocupante, mais pela sua saúde mental, meu amigo, do que pela questão filosófica que possamos tirar daí. Essa estória que acabou de me contar só evidencia que o homem dá modulações diferentes a uma mesma constante. A expressão se produz sob a diversidade, enquanto a manifestação quer, exige e nasce da unidade. Qualquer um pode exprimir-se, até os mais patetas, por meio de cartas ou declarações de amor. Isso estará numa esfera privada, dirá respeito apenas ao seu protagonista, não acrescentará nada à totalidade dos conhecimentos humanos nem ao Espírito. Estaremos ainda no âmbito das simples circunstâncias, das modas e dos costumes de época; não teremos assim sequer entrevisto a forma de pensamento que se situa além dessas barreiras tênues e ilusórias. Só ao sábio, e você é um deles, é dado manifestar algo que está latente na matéria e que, ao mesmo tempo, a transcende. Seria um pouco tolo da nossa parte dizer que a pedra, o animal, a água e o vegetal manifestam forças diferentes; estaríamos assim reduzindo o que está fora deles, e que os une, à suas formas. Seria o mesmo que dizer que Deus está no homem, e não que ele participa no homem, que ele está nas criaturas e não que ele fundamenta as criaturas. A forma de nossa existência guia o nosso pensamento, mas não o doma. Hoje, mais do que nunca, é preciso exterminar, aniquilar o culto à forma, esse deus às avessas. É preciso, Fídias, encontrar uma ordem que não seja sinônimo de paz e harmonia. A unidade não deve oprimir, nem a diferença, diluir. Resumo isso em uma parábola. Um sábio via em cada fenômeno que lhe era oferecido aos olhos e à razão um algoz e um anjo. O algoz queria provar que ele era, como tal, único e incomparável, pois essa é a única estratégia possível para alguém que vive da morte alheia – é a única forma efetiva de poder que lhe resta. O anjo dizia que, malgrado sua constituição aérea, podia dar conselhos às vidas terrenas, e queria provar que todos são iguais diante da eternidade e das trevas. Um o puxava para baixo, o outro muito para cima. O sábio, depois de uma lenta reclusão, decidiu que ambos deveriam morrer, pois, do contrário, nunca saberia o que vinha a ser a liberdade. Matou-os; e desde então passou a ver cada fenômeno como uma ponte.

FÍDIAS

Realmente, a minha estória parece ser bem mais simples. Mas sinto que compreendo o que quer dizer. E sentir isso é um sinal de que de fato já compreendemos.

SÓCRATES

Se você se guiasse por ideias relativas, aposto que não seria o escultor exímio que é. A propósito, diga-me Fídias: quando você observa uma escultura você quer saber se ela é boa ou se ela o agrada?

FÍDIAS

Digo sempre, e aí não entram apenas as obras de arte, que algo é bom ou ruim, bem feito ou mau feito, eficiente ou ineficaz. O gosto se esgota em si mesmo; com ele não há diálogo, e nós praticamente não existiríamos. Ele me parece um patrimônio de gente vulgar, que acredita demais nos próprios instintos. E sabemos muito bem que os instintos são o que há de menos humano no homem. O homem que se guia pelos instintos se assemelha a um velho cego que fosse guiado por uma criança cega. Dizer que gostamos de algo ou que algo nos desgosta é fazer um mero relato de um sentimento, não estaremos assim informando nada sobre a realidade ou sobre o valor daquilo a que nos referimos. O gosto é apenas uma variante ornamentada da ignorância. E ela, quando maquiada, chega até a parecer benevolência. Pior: é uma ignorância que não quer se reconhecer como tal. Por trás dele há sempre um tirano e um covarde. Como tirano, o gosto acredita piamente em si mesmo, tem uma concepção das coisas como sendo legítimas única e exclusivamente pelo intermédio de uma força irracional e bela que as unge, e que brota dele. Ou seja, ele é totalizador, porque reduz as suas relações com o mundo a uma extremidade, e, daí em diante, por que não dizer – totalitário? É covarde porque não assume nada de falível em si mesmo: o inferno são sempre os outros.

SÓCRATES

Você está cheio de verdade, Fídias! Seu semblante parecia em chamas enquanto falava. Isso deve ser uma das marcas da revelação divina na pobre carcaça humana que somos. O problema é que vivemos em uma era de gostos. Ele se tornou uma espécie de imperativo, um princípio metafísico de organização da vida, quem sabe? Você sabe por que todos têm medo de negá-lo?

FÍDIAS

Não me ocorre uma resposta.

SÓCRATES

Porque há muito se confunde bom e ruim com bem e mal, e nunca queremos, nem nos sentimos capazes, de questionar evidências morais, porque cremos que elas venham antes de nós e estejam fora do nosso arbítrio. O homem é um tipo singular de escravo: não é uma besta que apanha para trabalhar, ainda que isso muitas vezes ocorra, nem está preso por uma corrente a um toco de madeira. Ele é escravo das próprias ideias que criou para si. O homem ainda está longe de ter uma percepção puramente humana dos fatos. Ele teme efetuar um juízo das coisas que o cercam porque acha que estará assim fazendo um julgamento moral das mesmas, quando simplesmente terá feito um julgamento do seu valor, o que é bastante diferente. Estamos, e aqui não falo de fora pois nunca é possível falar de fora, acostumados à escravidão, e não hesito em dizer que nos comprazemos com ela. Estamos presos a uma coleira que parece inamovível, e consiste em confundirmos valor e verdade. Quando faço uma crítica, ou tento expor com critérios objetivos o valor de algo, não estarei dando, não terei nem chegado a tocar o que venha a ser a sua verdade, pois ela é intangível. Somos ainda animais muito religiosos: acreditamos que por trás de um evento há sempre uma substância imaterial que o justifica em sua essência e que o impede de ser outra coisa que não seja ele mesmo. Em suma, ainda somos muito domésticos – aceitamos o que nos é dado e só conhecemos e nos propomos a conhecer o espaço limitado pelas quatro paredes de um quarto. E disso nem os filósofos nem os artistas escapam. Aliás, eles são as maiores presas dessa espécie curiosa de força de gravidade.

FÍDIAS

Temos mais preconceitos do que conceitos propriamente. É isso caro Sócrates?

SÓCRATES

Mais que isso: somos impelidos a tomar os preconceitos como verdade, e mesmo assim continuamos a temer aqueles que querem criticar valores. Somos o tempo todo levados a endossar os acontecimentos com qualidades que são exteriores a eles mesmos. Somos pequenos deuses em nosso cotidiano, sustentando a batuta mágica do demiurgo a cada esquina e dando parecer sobre cada pessoa. E, no entanto, trememos de medo quando alguém se propõe a demolir a nossa ruína. Palácios vazios, choupanas e ruínas nos cercam. Eles compõem o cenário desse espetáculo gracioso a que chamamos vida, do qual somos diretor, ator e espectador, mas nunca crítico.

FÍDIAS

Sendo assim, com certeza poucas pessoas veem as minhas estátuas.

SÓCRATES

Veem nelas o que seja parecido consigo mesmas. Enxergar os outros é uma operação muito complexa.

FÍDIAS

Se eu dissesse que o prazer que sinto em esculpir vem da atividade em si mesma, você acreditaria?

SÓCRATES

Não só acredito, como admiro a sua inclinação. É sinal de que você tem vocação para o que faz. Não o faz por fama, prestígio ou qualquer outra coisa. Fá-lo apenas por que não poderia fazer outra coisa. Boa parte da miséria humana se deve ao fato do homem não reconhecer sua vocação.

FÍDIAS

Às vezes me pergunto se isso também não é uma forma de servidão, fazer o que quiseram que eu fizesse. Mas logo espanto esses pensamentos da minha cabeça, ao ver que eles não têm consistência. Algo, um chamamento interior, quis que eu fosse um artesão, a matéria quer que eu a maneje da forma que lhe convenha. Não há subserviência nisso, porque não vivemos só de deliberação. Se fosse assim, não estaríamos vivos, pois teríamos escolhido nascer ou não. E isso é uma posição divina, não humana. O fato é que parece que as escolhas humanas são sempre secundárias, e isso me incomoda Sócrates. Estamos sempre na esfera das causas segundas, sendo as causas primeiras do âmbito do puro Ser. Outro dia, procurando uma pigmentação diferente para um afresco, me vi entristecido no meio do trabalho. Por mais que misturasse cores, e usasse técnicas diversificadas para tanto, não iria tirar nada que já não existisse de antemão na natureza. Ainda que não os conheçamos, os matizes mais inusitados devem se esconder nos corais, no lugar mais profundo do mar, nas folhas de uma floresta intocada ou na penugem de uma ave que voa em alturas inatingíveis para nós. O engenho humano é extremamente limitado. Se pensarmos que todo esse Coliseu, essas bibliotecas, toda a ciência, as letras e a religião são obras de nossas mãos, é capaz de nos regozijarmos com isso. Mas basta entrar uma mosca em nosso quarto, e pousar impiedosa em nossa escrivaninha. Eis que o nosso sonho se desmorona. Sócrates, você já pensou que o homem é incapaz de criar uma mosca?

SÓCRATES

Hoje em dia há pessoas que não diriam o mesmo.

FÍDIAS

Não digo uma reprodução da mosca, um equivalente nem nada do gênero. Quem crê nisso são rabugentos que se acham deuses, quando são no máximo a cópia falhada, o aborto, o rascunho de um deus postiço. Digo: criar a mosca, como a temos pelo ar das tavernas aos montes? Nesse sentido, levando a ideia às últimas consequências, estamos em paridade existencial com ela.

SÓCRATES

Ora, Fídias! Acaba de comparar os homens às moscas?! O que acontece com os seus miolos? Derreteram com o sol desse lugar?

FÍDIAS

Não os comparo a eles, comparo as suas condições. Dentre as criaturas, o homem tem um lugar de destaque. Isso é um fato, e querer provar o contrário é atribuir a bestas e a plantas, cuja vida consiste em comer e dormir, qualidades humanas, dando sinais de um animismo dos mais cândidos e ingênuos. Afora isso, e diante da existência, ambos padecem das mesmas limitações. Ambos se movem no mesmo espaço físico, e estão subordinados às mesmas leis degradantes da matéria. O homem, como a abelha, por exemplo, só pode criar o que seja respectivo à sua natureza. O homem cria casas e vinhos, a abelha colmeias e mel. Nunca poderíamos criar mel e colmeias, muito menos o contrário. As abelhas voam; o homem também. Mas não é de sua natureza ser aéreo. É um artifício que ele criou e aperfeiçoou com o tempo. Daí o papel dos artífices ser tão importante: tudo o que há de mais humano em nós consiste em imitar da natureza aquilo que não temos por princípio. Somos todos feitos de artifícios. Ou seja, estamos cercados pela mentira, e talvez seja ela mesma a nossa essência, se é que há alguma. Da mesma forma, se desfiro um golpe no granito com a finalidade de criar uma forma que, sei, gerará um efeito esperado, não estarei exprimindo esse efeito de mim. A arte é uma das coisas mais impessoais que existe; ela se baseia mais na impressão de conceitos do que na expressão de sentimentos. Enfim, não há nada no meu ofício que diga respeito de fato a mim. E isso ocorre com todos os demais artesãos que haja por aí.

SÓCRATES

Não percebo onde você quer chegar.

FÍDIAS

Quero dizer que certas coisas só podem nascer de certas condições, mas que, depois de criadas, não há mais nenhum elo de ligação ou de propriedade entre elas, nem uma é prioritária em relação a outra. Há uma necessidade de substância entre criador e criatura, mas não de forma. Podemos fazer um mel artificial, não podemos? Ele lembrará o mel verdadeiro. Estaremos imitando sua forma. Mas o teor mesmo do mel não podemos reproduzir nem com a maior audácia do pensamento e do engenho. Há um abismo entre cada uma das criaturas que povoam esse planeta, e ele consiste no que cada uma delas tenha de irredutível. Todo mistério da vida e da Criação de resume a essa palavra. Um dos exercícios que mais me comovem e divertem é tentar me colocar, não no lugar de outra pessoa, pois isso é, de certa forma, fácil, mas tentar imaginar como é ser uma pedra, uma planta ou a água de uma bica. Sei que isso parece uma brincadeira de criança, e que você, Sócrates, como filósofo, deve estar rindo em silêncio do absurdo que acabo de dizer. Sei também que há inconsistência filosófica na formulação dessa premissa, dado que o ser é algo que pressupõe o conhecimento das duas dimensões que fundamentam todos as suas qualidades e atributos: o espaço e o tempo. Sem elas, ou além delas, só é possível supor um Ser supremo, que é incognoscível. Digo apenas que essa parcela de existência que se situa além do limite de nossa percepção me encanta e enternece. Como eu posso chamar essa dimensão? Como posso defini-la? Seria o quê das coisas? Ou a Coisa das coisas, essa espécie de abismo onde a consciência só poderá se imiscuir quando souber se abandonar a si mesma? Quando puder se negar a si mesma? Quando quiser – morrer? Não sei precisar ao certo. Sei apenas que é bela aquela parte do pensamento que não pretende descrever um objeto, mas sim plasmá-lo. Temos uma experiência não orgânica do nosso corpo quando conseguimos transpor esse umbral, algo parecido às experiências místicas e ascéticas. Porque na verdade isso é a simulação de uma morte fictícia. Ao morrer de fato morremos para as coisas, ao morrer de forma fictícia morremos nas coisas. Talvez essa seja a única maneira efetiva de vivê-las, de nos livrarmos da miséria que são o conhecimento e a nossa dualidade fundamental, com a qual nos debatemos no decorrer de toda nossa vida e que nos expulsa do mistério que são os seres neles mesmos. Porque o homem, Sócrates, é uma criatura rasa; raras vezes ele tem acesso ao segredo, que não está além da vida, mas fora dela.

SÓCRATES

Percebo que você tem um dom para os sofismas que até então desconhecia, Fídias. Contudo, suas palavras são belas e envolvem. Há muito nos ocupamos da verdade; talvez fosse o caso de começarmos a pensar nos meios de chegar a ela. Noto também que você se deleita ao negar a sua própria personalidade, quer sempre se perder de si mesmo.

FÍDIAS

Mais do que eu você sabe que esse é o princípio do conhecimento. Ai, Sócrates! Se soubesse o desprezo que tenho por essa gente que nunca se abandona, que está invariavelmente centrada em si. Tomam-se como proporção das coisas do mundo, e mal sabem sua própria estatura. Um amigo me disse certa vez: o sábio dá a cada coisa o seu valor, o parvo dá o seu valor a cada coisa. Essa frase é perfeita. E sintetiza o caráter desses pobres diabos que vivem no pior tipo de evasão: nunca tirando os pés do chão, acabam criando raízes, e passam a ver o mundo sempre sob o mesmo ponto de vista. Isso é deprimente.

SÓCRATES

Perdoe-me, mas tenho que reconhecer que estamos protelando alguns assuntos. Que circulamos e circulamos, tentando adiar o que é inadiável e essencial. Já basta.

FÍDIAS

Pode-se adiar o que é essencial para o pensamento, não o podemos fazer com o que é indispensável à vida. A morte, por exemplo, é inadiável. E talvez ela seja a única conclusão a que se possa chegar. Do que fala, Sócrates?

SÓCRATES

Falo da força invisível que cria em você quando você cria. Ocorreu-me um nome para ela: inspiração. O que você acha desse batismo nobre Fídias?

FÍDIAS

Confesso que a palavra que cunhou não me agrada. Pois é só uni-la à ingenuidade e à sinceridade, e terá o perfeito imbecil. Nem as crianças mais lerdas, nem os sujeitos mais toscos congregam essas três qualidades juntas, embora alguns eruditos as considerem a verdadeira meta do homem sobre a terra, fato que só a flacidez intelectual que advém do mau acúmulo de informações pode explicar. Além disso, as engrenagens da vida são sempre duplas: movimento e repouso, nascimento e morte, contração e distensão, entre outras. O artífice que inspira demais corre o risco de estourar, como um sapo ao qual se amarra a boca com um barbante. Sei que estamos lidando com um conceito muito delicado e escorregadio. Sabemos que a matéria limita as minhas escolhas, guia o meu engenho nos caminhos que ela já selecionou previamente. Assim funcionam todas as coisas. Olhe a copa dessa árvore frondosa: percebe que só nasce dela um tipo específico de flor, folha e fruto? O processo da natureza é extremamente coeso e coerente; diz-nos que cada elemento só pode gerar algo semelhante a si mesmo, e semelhante não quer dizer exatamente igual. A quantidade de variação que cada ser consegue tirar de si mesmo é bastante pequena, diferente da diversidade que podemos notar na quantidade de seres conjugados a que chamamos natureza. Porque se cada qual só gera algo semelhante a si mesmo, aquilo que os faz diferentes entre si é algo tão fluído e múltiplo que poderíamos dizer que seja infinito. Basta olhar os homens ao redor: cada um deles tem uma vida e algo que os torna diferentes dos outros. Entretanto, suas feições são sempre parecidas quando expressam algum afeto comum, como ódio ou dor, e todos são providos dos mesmos membros e regidos por um mesmo funcionamento físico e mental. A água pode pingar em diversos lugares de uma mesma gruta, e orná-la com estalactites das mais inusitadas. Continuarão, e gostaria que alguém me provasse o contrário, sendo estalactites. A natureza ama a repetição; há ordem no seu processo, e uma de suas leis é querer sempre se imitar a si mesma. Ela desconhece a reflexão – por isso ela não nega nem cinde, apenas adere. As leis existem, ainda que não sejam evidentes para nós. Como justificar o império dos mais fortes sobre os mais fracos? Como aquiescer que aqueles tenham o dom inato de subjugar estes, e transformá-los em banquete? Dizer que temos em nós a medida de todas as coisas antes de nascermos, que o conhecimento precede a experiência, é uma crença tola, Sócrates, uma lógica de escravos. Não perscrutamos os meandros dessas leis cruéis. Mesmo assim, você já viu, por acaso, coelhos darem à luz cenouras, centopeias gerarem elefantes, mamões brotarem de macieiras e lagartos nascerem de orquídeas? Digo então, e o digo temendo estar errado, que a natureza não admite o acaso no seu funcionamento. Se o admitisse, todas as coisas poderiam se permutar entre si. A ordem e a divindade não são atores que manipulam os seres como a fantoches. São simplesmente uma tendência à repetição, uma afinidade e uma vontade intrínseca de se procurar pelo mesmo, pelo similar. A isso dou o nome de convergência. É de uma convergência de matérias, forças, funções e formas que nascem minhas esculturas; domino-as até um certo ponto; além dele, algo as rege que já não é a minha vontade, nem as suas. Pelo visto, esse agente abstrato não é o acaso, caro Sócrates, devido aos motivos que enumerei aqui.

SÓCRATES

Seus argumentos fazem sentido, embora tenhamos que relevar algumas coisas. Concordo que no acaso não há qualquer tipo de necessidade, e aqueles que acreditam nele creem também, por consequência, que ele está na origem da Criação. Se o universo não foi criado por uma necessidade, não há nada em suas peças que a traga implícita, e todos os exemplos que acabou de dar seriam falaciosos. Não penso assim Fídias. Como você, não creio no acaso, mesmo conhecendo a sua potência. Se você tivesse sido gerado numa noite diferente, sua aparência seria outra. Mas, mesmo assim, continuaria sendo filho dos mesmos pais. Já o que levou seus pais a saírem de casa num dia de inverno e se conhecerem na ágora, continua sendo um mistério. Mas se eles tivessem se encontrado, teriam encontrado alguém muito parecido. O homem, como a natureza, ama o similar, pois sem ele sua vida seria um verdadeiro inferno. O que questiono na sua explanação é que temo que você esteja confundindo afinidade com necessidade. Quem te prova que os elementos só se movem por uma e não por outra dessas categorias?

FÍDIAS

A semente cai do pólen da flor por que ela é afim do terreno que a germine, da mesma forma o leão mata a gazela porque seu ímpeto carnívoro se guia por esse tipo de animal. Daí em diante, é necessário que nasça da semente uma flor da mesma espécie, e que o leão transforme a sua presa em energia, caso contrário tudo isso perderia a razão de ser, e não passaria de um passatempo e uma distorção dos fatos.

SÓCRATES

E qual é o grande árbitro que rege essas necessidades particulares? Deus?

FÍDIAS

Sinto-me motivado a responder que sim, mas logo percebo que estaria simplificando as coisas. Essa é a maior falha do pensamento, Sócrates: ele sempre lida com o que há de discreto na realidade, ou seja, aquilo que ele já transformou em conceito, e para o qual ele já tem alguma explicação. Não busco a sabedoria; exijo a complexidade, o que é, por si só, uma grande ousadia. O estado natural dos seres é a complexidade. Você já pensou que alguém pode passar a vida inteira estudando um tipo de folha e não esgotar um só milímetro de toda a sua potencialidade? Estou cansado de pessoas que falam sobre as coisas. Quero saber como se pensa com as coisas, ou a partir delas. Imagine o que é um olho. Você pode me dar a melhor aula de anatomia, pode me demonstrar uma teoria filosófica das imagens até chegar à composição da luz divina no Empíreo. O olho continuará lá, com seu mistério rebelde, no seu silêncio de quem se nega ser decifrado. O que ocorre se me deparo com uma cor no meu estojo de pintura? O vermelho, por exemplo. O que vem a ser o vermelho?

SÓCRATES

Ora, Fídias, que pergunta cretina. Uma cor, não?

FÍDIAS

Não necessariamente. Posso interpretá-la em vários níveis. No nível físico, o vermelho é um conjunto de emissões de raios que, se refratando com a luz numa certa velocidade, é apreendido pela minha retina que o transforma em sinais sensórios que são enviados para o meu cérebro. Assim, tenho uma experiência do vermelho. Mas ele também pode ser uma convenção da linguagem. Se digo “vermelho”, essa palavra inócua, composta por uma articulação de sons, desencadeia em minha mente uma imagem, uma ideia pura que corresponda a todas as ocorrências dessa cor que possa encontrar no meu cotidiano e em meu repertório sensível. Terei assim o vermelho como conceito, que é institucional e faz parte de uma civilização. Posso também pensar o vermelho em uma perspectiva metafísica: há um Vermelho, virtual, puro e ideal, que justifica e fundamenta todos os tons e todos os tipos de vermelho particulares que possam existir no universo criado. Terei então, e enfim, uma ontologia do vermelho. Tudo isso, porém, não passa de circunlóquio e elucubração, Sócrates. Estou sempre traduzindo um termo por outro correlato, e por mais que faça isso não chegarei nunca a saber o que vem a ser o vermelho nele mesmo, sua articulação, sua existência. Nunca chegarei a encarná-lo, única forma efetiva de conhecimento. As coisas nelas mesmas é o que há de mais belo e complexo. Se eu conseguir sequer tocar a sua complexidade, já estarei feliz e realizado.

SÓCRATES

E como faria isso, Fídias?

FÍDIAS

Não criando mais conceitos, mas sim desmanchando os que já existem, como a um novelo ou a uma rede que desfiássemos. Isso nos põe mais próximos da base mesma de toda a vida, que não é a sabedoria, mas a complexidade. Os criadores de sistemas filosóficos são os sujeitos mais tristes desse mundo. Distanciam-se de maneira consciente da multiplicidade do sensível, trocando-a pelo paraíso artificial de um todo orgânico que, não sei se você já sentiu, cheira a naftalina. São comadres que querem bordar sem desfazer o maldito novelo. Farejo nesse gesto algo de sentimentalismo. Ou seja, o hábito de desfrutar dos benefícios sem arcar com as consequências. Como é possível habitar um lugar onde não haja movimento? Como a vida seria possível num lugar desse, Sócrates?

SÓCRATES

Sinto a presença dos deuses nessa nossa conversa, Fídias. Sinto que estas palavras vão retumbar através dos séculos. Pena termos nascido nesse lugar onde a discussão das pessoas instruídas mal se distingue dos grunhidos de crianças escolares, e onde os ouvidos dos homens só foram adestrados para os sinos e para sons grosseiros. Quem, nesses milhares de quilômetros de território, é capaz de apreciar matizes?

FÍDIAS

Relegar a Deus o que não compreendemos é ociosidade intelectual maior do que ficar discutindo a sua existência. Da minha parte, apenas reconheço que há algo que me transcende, a mim e a meus atos, porque as criaturas são independentes umas das outras. Se nem aquilo que minhas mãos produzem me pertence, se nem no ato mesmo de o produzir eu o domino, se nem minha própria vida é realmente minha, como poderia descrer desse fato óbvio? A transcendência, caro Sócrates, não é o que está além de nossa vida, mas o que está fora do nosso alcance. O homem é tão obcecado pelo progresso que se esquece que a terra apenas gira, e só quer continuar girando.

SÓCRATES

Sua vida não é sua? O que você é então? Um boneco animado pelo vento?

FÍDIAS

Não, não é estritamente minha. Essa é a base da lógica dos suicidas, e é uma falácia. Somos impregnados de todos que nos cercam, e também os impregnamos. Se me mato, morrem comigo as pessoas queridas, e acabo matando-as um pouco com minha atitude. Nem os eremitas estão divorciados de tudo: interferem no ambiente onde se escondem dos homens. Reconheço isso sem qualquer delonga ou tristeza, porque em nada o seu reconhecimento fere a minha liberdade. Há muito a associamos ao fato de possuirmos a nós mesmos, ou à integridade da nossa personalidade. Não reconhece a origem dessas palavras, Sócrates? Não percebe que as ideias de posse e integridade não têm nada a ver com o espírito, mas com o comércio e com a moral? O que é uma pessoa íntegra? É aquela que excluiu de si a marca dos seus semelhantes, que se purificou até se tornar única e original. Em suma, que se – higienizou. Reconhece a origem dessas palavras. Percebe que a base de toda tirania não está nos governos, mas nos – indivíduos?

SÓCRATES

Fídias, suas palavras já beiram o devaneio. Suas obras não são suas, seus atos não pertencem a você, suas palavras não expressam o que você quer dizer, sua vida não é sua. Daqui a pouco terei que acertar o cajado na sua cabeça para lembrá-lo que existe, e que tem um corpo. Aliás, para lembrar-lhe o que você é.

FÍDIAS

E tudo isso é verdadeiro. Porque temos que entender que nossos atos não começam em nós: já começaram há milênios. Há ecos de tudo o que me precede em cada gesto meu, porque tudo isso converge para mim mas não para em mim. Há em todos os nossos atos, Sócrates, um fantasma. Oriento uma parcela mínima da criação, mas não detenho a Criação. Somos como um dique que molda o percurso de uma correnteza sem interromper nem mudar o seu curso. Quer saber o que cria em mim quando crio? Quer saber como se chama esse agente invisível que eu, em meu ofício, tento tornar visível, já que, em suma, essa é a essência de todo engenho e arte? Que tal – simulacro? É um belo nome. Sugere a Ideia, mas se rebela contra ela. Vale-se das coisas, mas não se prende às coisas. Está aqui e ali ao mesmo tempo, nega o que é, finge ser o que não é, simula o que poderia ser e dissimula o que quer ser realmente. Traz em si todos os mortos, e nasce de mim mas não deixa vestígios do que sou. É coletivo e anônimo, mas só se mostra por intermédio do trabalho de um único homem. E então, Sócrates?

SÓCRATES

Seriam então os simulacros substitutos falsos das coisas, mas transformados por um impulso à ordem e pelas leis da representação? Aquilo que você gera, mas que extravasa tanto você quanto seu ato? Aquilo que é equidistante da essência e da cópia?

FÍDIAS

Exatamente aquilo que nos faz eternos, porque é o elo entre os seres mortais e imortais.

SÓCRATES

A propósito, Fídias, ontem tive uma experiência singular. Fazendo a minha caminhada matinal, me entretive com alguns cantos de pássaros ao longe. Mudei então a minha rota, e adentrei um pequeno bosque que há na periferia de nossa cidade. Como alguém que por alguns instantes se vê privado da razão, uma névoa tomou conta dos meus pensamentos e os apagou, de tal forma, que andei durante cerca de uma hora a fio me guiando simplesmente pelos estímulos sensórios que me davam as vidas vegetal e animal daquele lugar. Aos poucos, o ruído da cidade foi se dissipando, e fiquei praticamente a sós com aquele concerto amorfo de sons, que iam das árvores tangidas pelo vento ao barulho de insetos e dos meus próprios pés sobre as folhas secas. Tudo isso tinha como corolário raios de sol tênues que rompiam as copas das árvores, todas frondosas e cerradas. Parei; olhei ao redor, e, num átimo, tudo aquilo que me cercava pareceu ir sumindo aos poucos, e me vi num silêncio tão profundo que era capaz de ouvir apenas as batidas do meu coração, dando ritmo àquela paisagem que ora parecia se passar numa película, num pano transparente, do qual eu era o único espectador. Vi que cada coisa que se dispunha e se dava à minha vista tinha uma ordem implícita, que eu não conseguia entender de onde provinha. Durante um momento, talvez um dos mais intensos da minha vida, vi-me completamente destacado de tudo o que me cercava, alheio, como se aquela fosse a primeira vez que o visse. Olhei minhas mãos demoradamente. Era como se até aquele instante eu nunca tivesse tido consciência de que elas eram minhas, e a gravidade implicada nesse fato tão banal. Estamos sempre tão entretidos com efemérides e circunstâncias que mal lembramos do nosso destino, único sobre a superfície da Terra. Agia como se até ali não soubesse que eu realmente existia, o que efetivamente eu era e que, passado o tempo, como todos os seres, o meu se dispersaria e acabaria com a morte. Mas somos apenas uma parte – uma das mais frágeis – da existência. Há algo maior que nos ultrapassa e que guardará resquícios de nós. Tive a convicção de que havia Algo animando cada engrenagem daquela paisagem, bem como a mim, e que a morte seria o fim definitivo daquela representação, mas que esse conjunto de sensações e evidências sensíveis estaria, na verdade, fadado a se repetir eternamente com outros homens, em outros lugares e em outras porções do tempo, este sim impassível à repetição e irremissível, e que, sendo assim, meu ser estava tocando a essência frágil da eternidade, tentando retê-la entre as mãos em concha como quem apreende água corrente com os dedos. Percebi que o tempo se distende e se contrai, e é, como um solo rico em texturas, composto de diversas, infinitas camadas que se movem e se sobrepõem, se misturam e se intercalam, e poucos de nós vivemos em um mesmo tempo. Porque o fato de sermos contemporâneos, Fídias, não quer dizer que vivamos num mesmo tempo. O tempo é como uma dimensão onde compartilhamos mais da amizade dos mortos que dos vivos, e temos, por isso, uma consciência clara do nosso destino, ao ver-nos cara a cara com a dissolução, o esquecimento, a aparência e a morte. Você vê aquele senhor cruzando a rua? Notou a expressão dele? Dos seus gestos você pode inferir os seus hábitos, não pode? E então, Fídias? O que você tem a ver com aquele homem? Há mortos muito mais presentes em nós do que estes fantasmas que nos cercam. São muito raras as vezes em que estamos diante das questões essenciais do homem; passamos todas nossas horas, às vezes até nossas vidas, nos esquivando desse tipo de espelho que reproduz a caveira que somos. Porque a atividade é a melhor forma de alívio, o melhor remédio contra a nossa limitação e a melhor saída para nos evitarmos, e assim vivermos nos outros e nas coisas mais do que em nós mesmos. Só depois pude perceber o que ocorreu comigo naquele bosque. Diante da eternidade, somos todos espectros e vultos anônimos, sem qualquer substância. Por um instante possuí o meu tempo, e deixei, suspenso, de ser uma figuração do acaso e uma cinza apagada nos séculos. Essa é a única redenção: não quando criamos algo que transcende a nossa contingência e sobreleva a história e o espírito de época, mas quando podemos saber que tudo volta, e que viveremos, em outra dimensão, essas mesmas coisas que vivemos aqui e agora; que o sobrenatural não é uma deformação produzida pelo sonho, mas o ato de tocar as coisas sabendo que elas nos esperam no futuro. Estamos tão apartados do mistério que ele se nos revela estranho, alheio e inviável. Estou farto dessas mentes lerdas e obesas que mal sabem andar e já querem dançar, que mal se bastam sobre as próprias pernas e já querem trotar e alçar voo. Estamos tão cercados pela estupidez que ora ela já virou método e regra. E ainda, no final de tudo, seremos nós os loucos. A apatia do espírito do tempo pesou mais do que nunca sobre esse nosso tempo insosso, intragável e mesquinho, cuja maioria dos habitantes se contentam com a reprodução de meia dúzia de lugares comuns, e os ditos homens instruídos não diferem em nada de uma raposa caricata que acha que nos engana quando no íntimo de nós mesmos, em silêncio, eu e você, Fídias, gargalhamos e os usamos a nosso bel-prazer. Esse é um dos dilemas da eternidade e simultaneidade dos tempos: saber que também isso, a peste agourenta dessa gente incapaz de leveza e desinteresse, também vai se perpetuar e vingar. Afinal, as ervas daninhas também compunham a paisagem daquele bosque oracular.

FÍDIAS

Ter certeza de que isso vá ocorrer de fato é a maior aspiração do homem. É para isso que ele criou as religiões e as artes, é para isso que ele gera e obra, e que há a ciência e a memória. Nada mais o move sobre a terra. Alguns dizem que o amor e o sexo são os motores da existência. Não creio nisso. Creio que seja a vontade de permanência e constância, de algo que liberte a nossa vida da transitoriedade das coisas sem ter, contudo, nenhum parentesco com a morte. Queremos de fato, mesmo destacados da nossa existência atual e do corpo, nos reencontrar em uma outra forma de vida que se nutra dos resquícios do que fôramos um dia.

SÓCRATES

A arte seria então uma revolta silenciosa contra a morte?

FÍDIAS

Talvez a sua suspensão temporária, a maneira artificial de libertarmos o espaço e a matéria do domínio do tempo.