Editor da Revista Celuzlose
Celuzlose − A sua poesia dialoga bastante com temas e autores de natureza "mítica-mística". De que maneira surgiu essa aproximação? As suas leituras da adolescência já indicavam esse percurso?
Rodrigo Petronio − Gosto muito dessa relação da poesia com o mito e com a mística. No caso do mito, acredito que toda a poesia e toda a arte partam de uma abertura mítica. Esta é a raiz de onde nasce a criação. Para ser mais claro, acredito que o mito seja o princípio de inteligibilidade do mundo. O mito é a clareira que soma em si todas as perspectivas possíveis de acesso ao real, como aquela floresta de Ortega y Gasset, que uniria em si a soma de todas as veredas contidas nela. Por isso, a poesia é mítica e a sua realidade se mostra como um afastamento ou aproximação de uma perspectiva originária, espécie de nascente da linguagem. Mas para tratarmos disso, seria preciso uma digressão que não cabe neste diálogo. No caso da mística creio que seja uma modalidade de compreensão e da linguagem um pouco mais específica, e tenho me interessado muito por ela. Faço parte do Núcleo de Estudos de Mística e Santidade (Nemes), coordenado pelo Luiz Felipe Pondé, e que tem me trazido muitos ensinamentos valiosos nesse sentido. O interesse talvez tenha vindo de minhas primeiras leituras de Blake ou mesmo da ideia de uma mística da transgressão, contida em Bataille e em autores modernos que seriam, na expressão dele, místicos de um mundo sem Deus. Só fui compreender melhor Allen Ginsberg, por exemplo, quando percebi a sua conexão com a mística hassídica, e, do ponto de vista formal, o quanto Kaddish e O Uivo tinham a ver com a essa tradição judaica de cunho mais “profano” e popular. Porém, por mais aberta que possa ser a incorporação do termo mística pela arte e pela literatura, esse diálogo pode transbordar a pertinência da mística e acabar gerando meras mistificações e equívocos. Além disso, acabei criando algumas dúvidas em relação à primazia da transgressão na arte moderna, se ela não nos levaria inevitavelmente a um impasse. Por isso, de tempos para cá, tenho me afastado dessas concepções livres demais da mística, e me dedicado a estudar a tradição e a literatura da mística ortodoxa, se é que podemos dizer assim, sobretudo a chamada mística especulativa, derivada da teologia negativa ou teologia apofática. Nos primeiros padres da igreja grega, como Nemésio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, pelos quais tenho uma grande admiração, já encontramos uma teologia mística, que transcende os princípios racionais da filosofia que lhes serviu de base. Depois temos os neoplatônicos, como Porfírio, Jâmblico e, sobretudo, Plotino, e o Pseudo-Dioniso Areopagita, dos quais nascem os fundamentos da teologia negativa. A obra do Pseudo-Dioniso é uma maravilha, um épico do espírito em sua busca tateante da luz. É um ponto de clivagem tanto a ocidente quanto a oriente. E ela será de novo o elo perdido de união entre a filosofia e a teologia gregas e latinas no trabalho colossal de Scotus Erígena, que além de tudo faz também a ponte entre a mística antiga e toda a mística moderna, seja como tradutor do Pseudo-Dioniso, seja como um dos maiores representantes da teologia negativa no Ocidente. É desse eixo que nasce a mística da luz do século XII, sobretudo em Chartres, com Bernardo de Clairvaux e Hugo de Saint Victor, e, um século depois, São Boaventura. É desse eixo que floresce Ruysbroeck e a mística renana, com Tauler, Suso e o insuperável Mestre Eckhart. Deles se vai a San Juan de la Cruz, a Santa Teresa D’Ávila, a Silesius. Há também a tradição sufi da mística persa. Creio que Attar, Ibn Arabî e Rûmî estejam entre os maiores poetas de todos os tempos, além de terem escrito obra que tangencia os limites da compreensão e da linguagem, que singra sempre no limiar entre a consciência de si e a luz do mundo. E o caminho da mística não se esgota aí, não pode ser entendido como uma etapa superada do pensamento, como querem os positivistas de todas as latitudes. O exemplo de Simone Weil, no século XX, o demonstra, com proposta e forma muito distintas, mas ainda assim ancorada no fundo sem fundo da mística, bem como os de Heidegger e Wittgenstein, para mencionar casos extremos, na filosofia. A apophasis (impossibilidade de dizer), a kenosis (esvaziamento de si), a metanoia (transformação interna radical), as ideias do homo viator e do itinerarium mentis in Deum, o grau zero da consciência, a relação simétrica entre vazio da consciência e plenitude do mundo, a linguagem que busca uma excentricidade de si mesma, o fundo sem fundo (Ungrund) de que fala Eckhart, o desprendimento radical, no qual o próprio Deus se desprende de si e deixa de ser Deus: os temas da mística já são poesia em estado bruto.
Celuzlose − Aproveitando que você faz uma referência à teologia negativa, li um comentário seu sobre a obra de Augusto dos Anjos em que você desenvolve um conceito denominado “princípio de negatividade” ou “afirmação negativa”. Fale um pouco desse conceito.
Rodrigo Petronio - Augusto dos Anjos é um dos poetas brasileiros mais importantes para mim, embora sinta pouco a sua marca naquilo que escrevo. Às vezes temos admiração por um autor, ou até mesmo incorporamos elementos seus à nossa revelia, mas eles acabam não sendo centrais para o conjunto do que escrevemos ou para a nossa poética. O que gosto nele é a sua falta absoluta de definição, que é fruto de uma postura selvagem em relação à poesia, esta sim, mais moderna do que muitos modernismos. Sua forma é de cunho parnasiano; seus temas científicos poderiam ser tidos como naturalistas, ou como um enciclopedismo tardio, de almanaque, à moda do século XVIII, mas acabam sendo talhados em pinceladas grossas que se aproximam mais de alguns simbolistas excêntricos; algumas de suas paisagens são francamente baudelaireanas, mas ao mesmo tempo nada nele soa a spleen ou a tédio decadentista, estando mais próximo da podridão estelar e dos movimentos recônditos de pólipos e moneras do que de uma afetação finissecular de uma consciência crítica parisiense; por fim, em seus melhores momentos, creio que Augusto dos Anjos se aproxime de uma das poucas definições convincentes que lhe servem: um poeta expressionista. Um dos poucos, talvez o único expressionista brasileiro. Um expressionista sui generis que, obviamente, não chega aos voos de um Gottfried Benn nem à genialidade de um Trakl. Mas que assim mostra o seu lugar absolutamente excêntrico e, por isso mesmo, dos mais enraizados no imaginário brasileiro, com suas idiossincrasias e equívocos, com seus desenvolvimentos regressivos, plenos de contradições que, em arte, são um sinal de mais, não de menos. Quanto ao princípio de negatividade, é um conceito que tenho desenvolvido e que noto na arte sobretudo a partir do século XVII, especialmente a partir do Dom Quixote, mas que retroage ao século XII e até um pouco antes. Ele tem relação com um esvaziamento dos núcleos provisórios de sentido da realidade. Não é um conceito de ordem mística, pois a kenosis da mística acaba por reafirmar a transcendência divina. Esse conceito diz respeito, sim, aos níveis de articulação entre a linguagem e o mundo. Acredito que esse princípio negativo esteja no cerne da poesia de Augusto dos Anjos, e sinto que, em razão dessa especificidade, seja muito difícil vinculá-lo à mística sem forçar demais o que tradicionalmente se entende por mística, como eu disse anteriormente. Dos Anjos identifica o movimento de nossa consciência à vida infracelular e à pulsação cósmica, feita de geração e corrupção, de devir e de decomposição; em alguns poemas, faz desse movimento uma espécie de apostasia do sentido não manifesto do mundo. Mas essa sua visão nunca nos conduz a uma transcendência da consciência em relação à linguagem, da linguagem em relação ao mundo e de Deus em relação à consciência, à linguagem e ao mundo, como se propõe no horizonte da mística. Para Dos Anjos, esse percurso se dá como intensividade e extensividade da matéria; ele, entretanto (e essa é uma das ironias de sua obra), o simula como ato divino, como se Deus estivesse presente no drama cósmico da criação e também no verme, no esterco, na podridão, no húmus e em cada um dos órgãos e secreções de nosso corpo, sem metáforas holísticas e sem totalizações simbólicas, tão ao gosto da nossa Nova Era. Para o Mestre Eckhart, o Universo é o movimento de editus e reditus, ou seja, a respiração de Deus; para Dos Anjos, é a sístole e a diástole do corpo de um Deus morto, de um Deus de tal modo humilhado pela matéria e subjugado pela degradação que o constitui, que sua potência praticamente consiste em confessar seu fracasso, sua glória e seu corpo glorioso se reduzem à sua mais confessa, suja e irredimível materialidade. Nesse sentido, Dos Anjos é profundamente cristão, pois ele realiza, em uma lógica ad absurdum, a descensão do Verbo no corpo até a sua consumação, de modo que sequer a carne ressuscita. Já o movimento da mística é praticamente oposto. A impotência é sempre e em primeiro lugar do sujeito que conhece, do intelecto arrogante em seus disfarces e miserável em sua clara e distinta estupidez. E quando a impotência é de Deus, o é para revelar um mais-além, que não é nunca material, mas sempre um abismar-se no Nada que é Deus e que é o que está além de Deus. O movimento místico quer ultrapassar o Deus concebido como substância, acessar o que se encontra além de toda a substância, inclusive das substâncias divinas. Daí sua especulação chegar aos limites do compreensível e também do existente, ao abismo sem forma e aos fundamentos sem fundos da alma, que é o Nada divino. Em Dos Anjos, essa viagem da alma estanca na plenificação absoluta da matéria e em sua imanência, além da qual não há absolutamente nada.
Celuzlose – Este conceito também está presente em sua poética?
R.P. − Creio que sim, mas talvez em um sentido mais amplo. Este livro mais recente, Venho de um país selvagem, por exemplo, é um livro que ronda uma atmosfera de conflito entre o positivo e o negativo, entre a floresta e o deserto, entre a afirmação da terra e o exílio. Há nele uma abertura para a transcendência, mas ela parece que nunca se completa, pois há também um conflito de base em todos os poemas. Isso foi intencional. Mais que isso: foi involuntário. Precisava ser assim. Na verdade, esse é um dos pontos que gostaria de superar em um próximo livro. Precisava dar nome à abjeção, tocar a ferida, incorporá-la, vivê-la. As imagens de capa e quarta capa, do Farnese de Andrade, foram meticulosamente escolhidas. Quis incorporar a figura da vítima sacrificial. Falar dela em primeira pessoa, para depois ressuscitar, ao fim da travessia. Talvez meu próximo livro comece pelo fim deste. Tenho sentido necessidade de chegar a uma síntese de vivências e da linguagem. Não tenho dúvida de que para haver o milagre da vida é preciso que nos defrontemos com o Mal, que o incorporemos, que o conheçamos, cada vez mais. A passagem pelo Inferno para chegar ao Paraíso não é meramente nominal ou um simples epos literário. Tampouco é uma tola superação, entendida e catalogada em nossas cabeças quadradas, sejam elas católicas, iluministas, marxistas ou positivistas. Essa passagem é necessária, essencial. A Queda não foi um erro, mas a primeira etapa da salvação. Os místicos, os avatares, os santos, todos eles só foram o que foram porque perceberam o Mal, a abjeção, a miséria, a falta de sentido, o absurdo. E souberam amar o Mal, para poder transfigurá-lo. Cristo era espiritualizado? Pois bem: traduziu sua espiritualidade em chagas e pústulas pelo seu corpo. Foi pregado numa estaca entre dois bandidos. E ao fim abandonado pelo Pai. Tudo isso também faz parte da mensagem de Cristo, e não pode nunca ser ignorado. Buda só se iluminou quando se deu conta do nojo de existir, da infâmia que é estar vivo, do asco que é o sem-sentido da vida. Não adianta querermos ficar apenas com o lado compassivo de sua mensagem, de seu amor infinito pelas criaturas sofredoras. Teremos apenas metade de Buda. É preciso passar pelo Nada para chegar ao ser. Esse caminho não é reversível nem tem atalhos. Creio que em tempos de religiões de bidê, de holismo, de Nova Era, de sínteses de não sei o quê com não sei o quê, de massagens coletivas, em que o sagrado está cada vez mais sendo reduzido a funções terapêuticas, essa mensagem terrível das grandes religiões deve estar cada vez mais viva. Isso não quer dizer que não se busque a luz. Se não houver integração, os conflitos se transformam em espelhamentos. Viram miragens intelectuais. Repetições infernais e obsessivas. Como se acreditássemos no mundo das representações, como se as máscaras fossem a realidade última. Assim nos afastamos do Espírito e chegamos à psicanálise. E aí tudo se perde. Embora Venho de um país selvagem sinalize a morte das representações, tente tocar a inocência e atingir uma suposta nudez, há nele um conflito de fundo entre desgraça e redenção. Ao passo que para o Espírito, não há cisão. Agora estou num trânsito, tentando achar as sínteses possíveis depois da experiência do Nada.
Celuzlose – Nesse contexto, a poesia está mais relacionada com uma forma de revelação ou de loucura?
RP – Há uma frase de que gosto, segundo a qual há apenas uma diferença entre o poeta e o louco. Ambos vão em direção ao abismo, mas o poeta desvia, enquanto o louco cai. Essa frase é um pouco descritiva demais; na vida, as coisas não são tão nítidas. Algumas vezes o poeta pode cair... Mas há uma distinção, sim, entre o delírio da criação e a autodestruição. Embora o poeta possa em momentos de fúria ou de possessão ser tomado por esta última. A loucura é uma das coisas de que mais tenho medo. Algumas vezes já me senti prestes a enlouquecer. Isso não chega assim de uma hora pra outra; a loucura vai se infiltrando, percebendo o ambiente, convive contigo, bebe do teu copo, come da tua comida. Quando mal percebemos, o pensamento está prestes a perder o prumo, e os valores, a verdade, a moral, o hábito, o medo, as convenções, enfim, tudo isso parece irremediavelmente ridículo. Por isso, muitas vezes temos a sensação perigosa de que a loucura é uma hiperlucidez. Bom, toda a literatura, de Orfeu a Sófocles e a Shakespeare, de Cervantes a Dostoiévski e a Kafka, não é nada mais do que uma variação gigantesca em torno desse tema, nada mais do que jogos e espelhamentos entre o avesso e o direito, vistos sob um olhar que vem de fora.
Celuzlose – Você também atua como editor, professor, pesquisador e ensaísta. Como essas atividades se relacionam entre si e como elas interferem (ou não) na sua criação poética?
R.P. – Sinto que são todas atividades complementares. Tenho gostado cada vez mais dos trabalhos de edição. Eles nos colocam em contato com a feitura material do livro, que é muito bonita. Há uma série de detalhes um pouco chatos, mas que também lançam outra luz sobre o livro, e pode-se dizer mesmo sobre o texto, entendidos como fenômeno cultural. Isso também me interessa. A pesquisa e as aulas também são algo que me alimentam muito. Tenho gostado de trabalhar com cursos livres, pois assim tenho a possibilidade de criá-los, sobre temas e autores que gosto, e para os quais haja um público interessado. Desse modo consigo me realizar de diversas formas, seja do ponto de vista intelectual, por estar em contato com esses temas e autores, seja ao sentir que assim faço circular as ideias nas quais acredito. O ensaio é o complemento literário do estudo e da pesquisa. Toda aula é um ensaio, até certo ponto. Às vezes tenho um ímpeto reflexivo que pode, num certo sentido, contaminar a poesia. Preciso estar atento a isso. Mas ao mesmo tempo gosto muito do ensaio e da reflexão filosófica, entendidos como literatura. Ultimamente estou um pouco afastado da poesia, sinto que com a publicação de Venho de um país selvagem preciso ficar um pouco quieto. Ando em silêncio, não estou escrevendo. Percebo que estou maturando uma nova fase, uma nova escrita, que minha percepção da poesia tem mudado. E creio que seja melhor ficar recolhido por um tempo. Também, um dos motivos desse silêncio é que estou estudando e recolhendo material para escrever um trabalho ensaístico de mais fôlego. Além do que, tenho pesquisado e estudado alguns assuntos para criar novos cursos. O que me enriquece como leitor, e isso é o fundamental.
Celuzlose – Esse trabalho ensaístico de mais fôlego ao qual você se refere é uma continuidade do livro Transversal do Tempo, ou você vai por outros caminhos?
RP – Não. Vou por outros caminhos. O Transversal do Tempo é um livro mais monográfico e mais centrado na literatura. Um livro pouco autoral, de um sujeito de vinte e poucos anos. Cada capítulo é sobre um escritor, e eles acabam dialogando superficialmente entre si a partir de um pano de fundo que une todos eles. Mas essa unidade não chega a ser explicitada. Estou com um novo livro de ensaios inéditos no qual tento abrir mais o esquadro, e propor uma visão mais temática, na qual a unidade existente entre as obras se sobressaia, se destaque da leitura focada de cada uma delas. Algo mais aberto, mais temático, mais amplo. Primeiro pensei em criar uma linha que amarrasse todos esses ensaios já escritos, um horizonte comum no qual eles se inscrevam; creio que farei isso. Mas esse trabalho ensaístico que estou preparando é mais ambicioso e talvez consiga reunir nele todas as minhas leituras e interesses desenvolvidos até agora. Gostaria de escrever uma história da alma. Que no fundo seria uma história da imortalidade. Tenho me convencido de que a invenção da imortalidade foi uma das maiores, talvez a maior revolução operada pela humanidade. Maior que a invenção do fogo, da roda ou do alfabeto. Muito maior do que a da filosofia. Excepcionalmente maior do que a da imprensa. Até mesmo o nascimento da consciência é subsidiário ao nascimento da imortalidade, porque a alma é muito mais abrangente do que consciência. Sinto que nos desenvolvemos em um movimento centrípeto, em espiral, sempre em virtude da proximidade e do afastamento desse eixo. Alguns filósofos atuais têm tentado sínteses interessantes, mas partindo de outros núcleos de sentido. Peter Sloterdijk propõe algo semelhante em Esferas, obra monumental, em três tomos, que traça o percurso imaginário, filosófico, político e artístico da esfera na história da representação. No caso, me interessa rastrear quando a concepção de imortalidade nasce, as principais mudanças em seu sentido e, sobretudo, quando ela começa a declinar, até chegar à sua quase completa extinção nos dias de hoje. E as implicações disso. Trata-se de uma crença, compartilhada por todos os homens, não de um conceito filosófico ou de um assunto universitário. Sendo assim, é o tipo de núcleo que gera outros núcleos periféricos, que produz práticas e valores, orienta formas de vida e de organização da sociedade, da sexualidade, do imaginário. Intuo que a mutação nessa crença produziu uma alteração antropológica das mais significativas. É um trabalho muito difícil, cheio de ciladas e abismos, que vai levar alguns anos. É preciso um diálogo entre filosofia, antropologia, história, teoria da literatura, história das religiões, até arqueologia. Como o assunto é muito grande, se conseguir dar uma pequena contribuição para ele já me darei por satisfeito. Isso é o que mais tem me motivado ultimamente.
Celuzlose – Em relação a sua atividade de editor, fale um pouco sobre as Edições Rumi. Qual é a proposta editorial?
RP – Por enquanto a Edições Rumi ainda é uma empresa que tenho e com a qual presto serviços a outras editoras. Publiquei há pouco uma antologia de poemas da Maiara Gouveia, Pleno Deserto, em uma edição simples e de tiragem pequena, que me deu muita alegria fazer. Além de ótima poeta, ela é minha mulher, o que dá uma dupla realização. Projetos editoriais não faltam. Gostaria de publicar principalmente poesia e ensaio. Mas por ora não tenho estrutura pra isso. Quem sabe em breve? Vamos ver como as coisas andam.
Celuzlose – Atualmente a Biblioteca Brasiliana do José Mindlin está passando por um processo de digitalização que é realizado na USP e algumas obras já estão disponíveis na Internet (http://www.brasiliana.usp.br). Da mesma forma, outras iniciativas semelhantes são realizadas ao redor do mundo. Como você vê essa transferência do conteúdo impresso para o meio digital?
RP – Vejo com otimismo e com muitos bons olhos. Faz pouco tempo houve a polêmica envolvendo o projeto da Google, de disponibilizar material digitalizado das bibliotecas e de centralizar as compras de livros pela internet. O ponto delicado está em definir a diferença entre ter acesso a um livro físico em uma biblioteca pública e baixá-lo de um site. São espaços públicos distintos e maneiras distintas de apropriação de um material, concordo. Mas quase sempre esses pruridos morais relativos à propriedade intelectual e às patentes estão mais ligados aos interesses das corporações do que aos produtores e ao valor cultural objetivo das obras. Também se desconsidera a possibilidade bastante realista de convivência pacífica das obras em dois suportes diferentes. Imagino que apenas um masoquista leria Proust na tela do computador ou imprimiria a Busca do tempo perdido em sua HP. Essas mídias vão forçosamente mudar. Seu valor, seu sentido, sua acessibilidade. Mas não haverá superação de uma pela outra. Por isso, se disponibilizarem todas as obras do planeta na internet, eu apoiarei.
Celuzlose – Você esteve recentemente no México e participou de alguns encontros literários. Como foi esse intercâmbio?
Rodrigo Petronio − Gosto muito dessa relação da poesia com o mito e com a mística. No caso do mito, acredito que toda a poesia e toda a arte partam de uma abertura mítica. Esta é a raiz de onde nasce a criação. Para ser mais claro, acredito que o mito seja o princípio de inteligibilidade do mundo. O mito é a clareira que soma em si todas as perspectivas possíveis de acesso ao real, como aquela floresta de Ortega y Gasset, que uniria em si a soma de todas as veredas contidas nela. Por isso, a poesia é mítica e a sua realidade se mostra como um afastamento ou aproximação de uma perspectiva originária, espécie de nascente da linguagem. Mas para tratarmos disso, seria preciso uma digressão que não cabe neste diálogo. No caso da mística creio que seja uma modalidade de compreensão e da linguagem um pouco mais específica, e tenho me interessado muito por ela. Faço parte do Núcleo de Estudos de Mística e Santidade (Nemes), coordenado pelo Luiz Felipe Pondé, e que tem me trazido muitos ensinamentos valiosos nesse sentido. O interesse talvez tenha vindo de minhas primeiras leituras de Blake ou mesmo da ideia de uma mística da transgressão, contida em Bataille e em autores modernos que seriam, na expressão dele, místicos de um mundo sem Deus. Só fui compreender melhor Allen Ginsberg, por exemplo, quando percebi a sua conexão com a mística hassídica, e, do ponto de vista formal, o quanto Kaddish e O Uivo tinham a ver com a essa tradição judaica de cunho mais “profano” e popular. Porém, por mais aberta que possa ser a incorporação do termo mística pela arte e pela literatura, esse diálogo pode transbordar a pertinência da mística e acabar gerando meras mistificações e equívocos. Além disso, acabei criando algumas dúvidas em relação à primazia da transgressão na arte moderna, se ela não nos levaria inevitavelmente a um impasse. Por isso, de tempos para cá, tenho me afastado dessas concepções livres demais da mística, e me dedicado a estudar a tradição e a literatura da mística ortodoxa, se é que podemos dizer assim, sobretudo a chamada mística especulativa, derivada da teologia negativa ou teologia apofática. Nos primeiros padres da igreja grega, como Nemésio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, pelos quais tenho uma grande admiração, já encontramos uma teologia mística, que transcende os princípios racionais da filosofia que lhes serviu de base. Depois temos os neoplatônicos, como Porfírio, Jâmblico e, sobretudo, Plotino, e o Pseudo-Dioniso Areopagita, dos quais nascem os fundamentos da teologia negativa. A obra do Pseudo-Dioniso é uma maravilha, um épico do espírito em sua busca tateante da luz. É um ponto de clivagem tanto a ocidente quanto a oriente. E ela será de novo o elo perdido de união entre a filosofia e a teologia gregas e latinas no trabalho colossal de Scotus Erígena, que além de tudo faz também a ponte entre a mística antiga e toda a mística moderna, seja como tradutor do Pseudo-Dioniso, seja como um dos maiores representantes da teologia negativa no Ocidente. É desse eixo que nasce a mística da luz do século XII, sobretudo em Chartres, com Bernardo de Clairvaux e Hugo de Saint Victor, e, um século depois, São Boaventura. É desse eixo que floresce Ruysbroeck e a mística renana, com Tauler, Suso e o insuperável Mestre Eckhart. Deles se vai a San Juan de la Cruz, a Santa Teresa D’Ávila, a Silesius. Há também a tradição sufi da mística persa. Creio que Attar, Ibn Arabî e Rûmî estejam entre os maiores poetas de todos os tempos, além de terem escrito obra que tangencia os limites da compreensão e da linguagem, que singra sempre no limiar entre a consciência de si e a luz do mundo. E o caminho da mística não se esgota aí, não pode ser entendido como uma etapa superada do pensamento, como querem os positivistas de todas as latitudes. O exemplo de Simone Weil, no século XX, o demonstra, com proposta e forma muito distintas, mas ainda assim ancorada no fundo sem fundo da mística, bem como os de Heidegger e Wittgenstein, para mencionar casos extremos, na filosofia. A apophasis (impossibilidade de dizer), a kenosis (esvaziamento de si), a metanoia (transformação interna radical), as ideias do homo viator e do itinerarium mentis in Deum, o grau zero da consciência, a relação simétrica entre vazio da consciência e plenitude do mundo, a linguagem que busca uma excentricidade de si mesma, o fundo sem fundo (Ungrund) de que fala Eckhart, o desprendimento radical, no qual o próprio Deus se desprende de si e deixa de ser Deus: os temas da mística já são poesia em estado bruto.
Celuzlose − Aproveitando que você faz uma referência à teologia negativa, li um comentário seu sobre a obra de Augusto dos Anjos em que você desenvolve um conceito denominado “princípio de negatividade” ou “afirmação negativa”. Fale um pouco desse conceito.
Rodrigo Petronio - Augusto dos Anjos é um dos poetas brasileiros mais importantes para mim, embora sinta pouco a sua marca naquilo que escrevo. Às vezes temos admiração por um autor, ou até mesmo incorporamos elementos seus à nossa revelia, mas eles acabam não sendo centrais para o conjunto do que escrevemos ou para a nossa poética. O que gosto nele é a sua falta absoluta de definição, que é fruto de uma postura selvagem em relação à poesia, esta sim, mais moderna do que muitos modernismos. Sua forma é de cunho parnasiano; seus temas científicos poderiam ser tidos como naturalistas, ou como um enciclopedismo tardio, de almanaque, à moda do século XVIII, mas acabam sendo talhados em pinceladas grossas que se aproximam mais de alguns simbolistas excêntricos; algumas de suas paisagens são francamente baudelaireanas, mas ao mesmo tempo nada nele soa a spleen ou a tédio decadentista, estando mais próximo da podridão estelar e dos movimentos recônditos de pólipos e moneras do que de uma afetação finissecular de uma consciência crítica parisiense; por fim, em seus melhores momentos, creio que Augusto dos Anjos se aproxime de uma das poucas definições convincentes que lhe servem: um poeta expressionista. Um dos poucos, talvez o único expressionista brasileiro. Um expressionista sui generis que, obviamente, não chega aos voos de um Gottfried Benn nem à genialidade de um Trakl. Mas que assim mostra o seu lugar absolutamente excêntrico e, por isso mesmo, dos mais enraizados no imaginário brasileiro, com suas idiossincrasias e equívocos, com seus desenvolvimentos regressivos, plenos de contradições que, em arte, são um sinal de mais, não de menos. Quanto ao princípio de negatividade, é um conceito que tenho desenvolvido e que noto na arte sobretudo a partir do século XVII, especialmente a partir do Dom Quixote, mas que retroage ao século XII e até um pouco antes. Ele tem relação com um esvaziamento dos núcleos provisórios de sentido da realidade. Não é um conceito de ordem mística, pois a kenosis da mística acaba por reafirmar a transcendência divina. Esse conceito diz respeito, sim, aos níveis de articulação entre a linguagem e o mundo. Acredito que esse princípio negativo esteja no cerne da poesia de Augusto dos Anjos, e sinto que, em razão dessa especificidade, seja muito difícil vinculá-lo à mística sem forçar demais o que tradicionalmente se entende por mística, como eu disse anteriormente. Dos Anjos identifica o movimento de nossa consciência à vida infracelular e à pulsação cósmica, feita de geração e corrupção, de devir e de decomposição; em alguns poemas, faz desse movimento uma espécie de apostasia do sentido não manifesto do mundo. Mas essa sua visão nunca nos conduz a uma transcendência da consciência em relação à linguagem, da linguagem em relação ao mundo e de Deus em relação à consciência, à linguagem e ao mundo, como se propõe no horizonte da mística. Para Dos Anjos, esse percurso se dá como intensividade e extensividade da matéria; ele, entretanto (e essa é uma das ironias de sua obra), o simula como ato divino, como se Deus estivesse presente no drama cósmico da criação e também no verme, no esterco, na podridão, no húmus e em cada um dos órgãos e secreções de nosso corpo, sem metáforas holísticas e sem totalizações simbólicas, tão ao gosto da nossa Nova Era. Para o Mestre Eckhart, o Universo é o movimento de editus e reditus, ou seja, a respiração de Deus; para Dos Anjos, é a sístole e a diástole do corpo de um Deus morto, de um Deus de tal modo humilhado pela matéria e subjugado pela degradação que o constitui, que sua potência praticamente consiste em confessar seu fracasso, sua glória e seu corpo glorioso se reduzem à sua mais confessa, suja e irredimível materialidade. Nesse sentido, Dos Anjos é profundamente cristão, pois ele realiza, em uma lógica ad absurdum, a descensão do Verbo no corpo até a sua consumação, de modo que sequer a carne ressuscita. Já o movimento da mística é praticamente oposto. A impotência é sempre e em primeiro lugar do sujeito que conhece, do intelecto arrogante em seus disfarces e miserável em sua clara e distinta estupidez. E quando a impotência é de Deus, o é para revelar um mais-além, que não é nunca material, mas sempre um abismar-se no Nada que é Deus e que é o que está além de Deus. O movimento místico quer ultrapassar o Deus concebido como substância, acessar o que se encontra além de toda a substância, inclusive das substâncias divinas. Daí sua especulação chegar aos limites do compreensível e também do existente, ao abismo sem forma e aos fundamentos sem fundos da alma, que é o Nada divino. Em Dos Anjos, essa viagem da alma estanca na plenificação absoluta da matéria e em sua imanência, além da qual não há absolutamente nada.
Celuzlose – Este conceito também está presente em sua poética?
R.P. − Creio que sim, mas talvez em um sentido mais amplo. Este livro mais recente, Venho de um país selvagem, por exemplo, é um livro que ronda uma atmosfera de conflito entre o positivo e o negativo, entre a floresta e o deserto, entre a afirmação da terra e o exílio. Há nele uma abertura para a transcendência, mas ela parece que nunca se completa, pois há também um conflito de base em todos os poemas. Isso foi intencional. Mais que isso: foi involuntário. Precisava ser assim. Na verdade, esse é um dos pontos que gostaria de superar em um próximo livro. Precisava dar nome à abjeção, tocar a ferida, incorporá-la, vivê-la. As imagens de capa e quarta capa, do Farnese de Andrade, foram meticulosamente escolhidas. Quis incorporar a figura da vítima sacrificial. Falar dela em primeira pessoa, para depois ressuscitar, ao fim da travessia. Talvez meu próximo livro comece pelo fim deste. Tenho sentido necessidade de chegar a uma síntese de vivências e da linguagem. Não tenho dúvida de que para haver o milagre da vida é preciso que nos defrontemos com o Mal, que o incorporemos, que o conheçamos, cada vez mais. A passagem pelo Inferno para chegar ao Paraíso não é meramente nominal ou um simples epos literário. Tampouco é uma tola superação, entendida e catalogada em nossas cabeças quadradas, sejam elas católicas, iluministas, marxistas ou positivistas. Essa passagem é necessária, essencial. A Queda não foi um erro, mas a primeira etapa da salvação. Os místicos, os avatares, os santos, todos eles só foram o que foram porque perceberam o Mal, a abjeção, a miséria, a falta de sentido, o absurdo. E souberam amar o Mal, para poder transfigurá-lo. Cristo era espiritualizado? Pois bem: traduziu sua espiritualidade em chagas e pústulas pelo seu corpo. Foi pregado numa estaca entre dois bandidos. E ao fim abandonado pelo Pai. Tudo isso também faz parte da mensagem de Cristo, e não pode nunca ser ignorado. Buda só se iluminou quando se deu conta do nojo de existir, da infâmia que é estar vivo, do asco que é o sem-sentido da vida. Não adianta querermos ficar apenas com o lado compassivo de sua mensagem, de seu amor infinito pelas criaturas sofredoras. Teremos apenas metade de Buda. É preciso passar pelo Nada para chegar ao ser. Esse caminho não é reversível nem tem atalhos. Creio que em tempos de religiões de bidê, de holismo, de Nova Era, de sínteses de não sei o quê com não sei o quê, de massagens coletivas, em que o sagrado está cada vez mais sendo reduzido a funções terapêuticas, essa mensagem terrível das grandes religiões deve estar cada vez mais viva. Isso não quer dizer que não se busque a luz. Se não houver integração, os conflitos se transformam em espelhamentos. Viram miragens intelectuais. Repetições infernais e obsessivas. Como se acreditássemos no mundo das representações, como se as máscaras fossem a realidade última. Assim nos afastamos do Espírito e chegamos à psicanálise. E aí tudo se perde. Embora Venho de um país selvagem sinalize a morte das representações, tente tocar a inocência e atingir uma suposta nudez, há nele um conflito de fundo entre desgraça e redenção. Ao passo que para o Espírito, não há cisão. Agora estou num trânsito, tentando achar as sínteses possíveis depois da experiência do Nada.
Celuzlose – Nesse contexto, a poesia está mais relacionada com uma forma de revelação ou de loucura?
RP – Há uma frase de que gosto, segundo a qual há apenas uma diferença entre o poeta e o louco. Ambos vão em direção ao abismo, mas o poeta desvia, enquanto o louco cai. Essa frase é um pouco descritiva demais; na vida, as coisas não são tão nítidas. Algumas vezes o poeta pode cair... Mas há uma distinção, sim, entre o delírio da criação e a autodestruição. Embora o poeta possa em momentos de fúria ou de possessão ser tomado por esta última. A loucura é uma das coisas de que mais tenho medo. Algumas vezes já me senti prestes a enlouquecer. Isso não chega assim de uma hora pra outra; a loucura vai se infiltrando, percebendo o ambiente, convive contigo, bebe do teu copo, come da tua comida. Quando mal percebemos, o pensamento está prestes a perder o prumo, e os valores, a verdade, a moral, o hábito, o medo, as convenções, enfim, tudo isso parece irremediavelmente ridículo. Por isso, muitas vezes temos a sensação perigosa de que a loucura é uma hiperlucidez. Bom, toda a literatura, de Orfeu a Sófocles e a Shakespeare, de Cervantes a Dostoiévski e a Kafka, não é nada mais do que uma variação gigantesca em torno desse tema, nada mais do que jogos e espelhamentos entre o avesso e o direito, vistos sob um olhar que vem de fora.
Celuzlose – Você também atua como editor, professor, pesquisador e ensaísta. Como essas atividades se relacionam entre si e como elas interferem (ou não) na sua criação poética?
R.P. – Sinto que são todas atividades complementares. Tenho gostado cada vez mais dos trabalhos de edição. Eles nos colocam em contato com a feitura material do livro, que é muito bonita. Há uma série de detalhes um pouco chatos, mas que também lançam outra luz sobre o livro, e pode-se dizer mesmo sobre o texto, entendidos como fenômeno cultural. Isso também me interessa. A pesquisa e as aulas também são algo que me alimentam muito. Tenho gostado de trabalhar com cursos livres, pois assim tenho a possibilidade de criá-los, sobre temas e autores que gosto, e para os quais haja um público interessado. Desse modo consigo me realizar de diversas formas, seja do ponto de vista intelectual, por estar em contato com esses temas e autores, seja ao sentir que assim faço circular as ideias nas quais acredito. O ensaio é o complemento literário do estudo e da pesquisa. Toda aula é um ensaio, até certo ponto. Às vezes tenho um ímpeto reflexivo que pode, num certo sentido, contaminar a poesia. Preciso estar atento a isso. Mas ao mesmo tempo gosto muito do ensaio e da reflexão filosófica, entendidos como literatura. Ultimamente estou um pouco afastado da poesia, sinto que com a publicação de Venho de um país selvagem preciso ficar um pouco quieto. Ando em silêncio, não estou escrevendo. Percebo que estou maturando uma nova fase, uma nova escrita, que minha percepção da poesia tem mudado. E creio que seja melhor ficar recolhido por um tempo. Também, um dos motivos desse silêncio é que estou estudando e recolhendo material para escrever um trabalho ensaístico de mais fôlego. Além do que, tenho pesquisado e estudado alguns assuntos para criar novos cursos. O que me enriquece como leitor, e isso é o fundamental.
Celuzlose – Esse trabalho ensaístico de mais fôlego ao qual você se refere é uma continuidade do livro Transversal do Tempo, ou você vai por outros caminhos?
RP – Não. Vou por outros caminhos. O Transversal do Tempo é um livro mais monográfico e mais centrado na literatura. Um livro pouco autoral, de um sujeito de vinte e poucos anos. Cada capítulo é sobre um escritor, e eles acabam dialogando superficialmente entre si a partir de um pano de fundo que une todos eles. Mas essa unidade não chega a ser explicitada. Estou com um novo livro de ensaios inéditos no qual tento abrir mais o esquadro, e propor uma visão mais temática, na qual a unidade existente entre as obras se sobressaia, se destaque da leitura focada de cada uma delas. Algo mais aberto, mais temático, mais amplo. Primeiro pensei em criar uma linha que amarrasse todos esses ensaios já escritos, um horizonte comum no qual eles se inscrevam; creio que farei isso. Mas esse trabalho ensaístico que estou preparando é mais ambicioso e talvez consiga reunir nele todas as minhas leituras e interesses desenvolvidos até agora. Gostaria de escrever uma história da alma. Que no fundo seria uma história da imortalidade. Tenho me convencido de que a invenção da imortalidade foi uma das maiores, talvez a maior revolução operada pela humanidade. Maior que a invenção do fogo, da roda ou do alfabeto. Muito maior do que a da filosofia. Excepcionalmente maior do que a da imprensa. Até mesmo o nascimento da consciência é subsidiário ao nascimento da imortalidade, porque a alma é muito mais abrangente do que consciência. Sinto que nos desenvolvemos em um movimento centrípeto, em espiral, sempre em virtude da proximidade e do afastamento desse eixo. Alguns filósofos atuais têm tentado sínteses interessantes, mas partindo de outros núcleos de sentido. Peter Sloterdijk propõe algo semelhante em Esferas, obra monumental, em três tomos, que traça o percurso imaginário, filosófico, político e artístico da esfera na história da representação. No caso, me interessa rastrear quando a concepção de imortalidade nasce, as principais mudanças em seu sentido e, sobretudo, quando ela começa a declinar, até chegar à sua quase completa extinção nos dias de hoje. E as implicações disso. Trata-se de uma crença, compartilhada por todos os homens, não de um conceito filosófico ou de um assunto universitário. Sendo assim, é o tipo de núcleo que gera outros núcleos periféricos, que produz práticas e valores, orienta formas de vida e de organização da sociedade, da sexualidade, do imaginário. Intuo que a mutação nessa crença produziu uma alteração antropológica das mais significativas. É um trabalho muito difícil, cheio de ciladas e abismos, que vai levar alguns anos. É preciso um diálogo entre filosofia, antropologia, história, teoria da literatura, história das religiões, até arqueologia. Como o assunto é muito grande, se conseguir dar uma pequena contribuição para ele já me darei por satisfeito. Isso é o que mais tem me motivado ultimamente.
Celuzlose – Em relação a sua atividade de editor, fale um pouco sobre as Edições Rumi. Qual é a proposta editorial?
RP – Por enquanto a Edições Rumi ainda é uma empresa que tenho e com a qual presto serviços a outras editoras. Publiquei há pouco uma antologia de poemas da Maiara Gouveia, Pleno Deserto, em uma edição simples e de tiragem pequena, que me deu muita alegria fazer. Além de ótima poeta, ela é minha mulher, o que dá uma dupla realização. Projetos editoriais não faltam. Gostaria de publicar principalmente poesia e ensaio. Mas por ora não tenho estrutura pra isso. Quem sabe em breve? Vamos ver como as coisas andam.
Celuzlose – Atualmente a Biblioteca Brasiliana do José Mindlin está passando por um processo de digitalização que é realizado na USP e algumas obras já estão disponíveis na Internet (http://www.brasiliana.usp.br). Da mesma forma, outras iniciativas semelhantes são realizadas ao redor do mundo. Como você vê essa transferência do conteúdo impresso para o meio digital?
RP – Vejo com otimismo e com muitos bons olhos. Faz pouco tempo houve a polêmica envolvendo o projeto da Google, de disponibilizar material digitalizado das bibliotecas e de centralizar as compras de livros pela internet. O ponto delicado está em definir a diferença entre ter acesso a um livro físico em uma biblioteca pública e baixá-lo de um site. São espaços públicos distintos e maneiras distintas de apropriação de um material, concordo. Mas quase sempre esses pruridos morais relativos à propriedade intelectual e às patentes estão mais ligados aos interesses das corporações do que aos produtores e ao valor cultural objetivo das obras. Também se desconsidera a possibilidade bastante realista de convivência pacífica das obras em dois suportes diferentes. Imagino que apenas um masoquista leria Proust na tela do computador ou imprimiria a Busca do tempo perdido em sua HP. Essas mídias vão forçosamente mudar. Seu valor, seu sentido, sua acessibilidade. Mas não haverá superação de uma pela outra. Por isso, se disponibilizarem todas as obras do planeta na internet, eu apoiarei.
Celuzlose – Você esteve recentemente no México e participou de alguns encontros literários. Como foi esse intercâmbio?
RP – Foi uma das melhores viagens que já fiz, um intercâmbio muito rico. Fiz leituras em Puebla, uma pequena cidade próxima da Cidade do México, na qual há a Casa do Escritor, um espaço público que recebe escritores de vários lugares do mundo. Fui para Mérida, uma das cidades mais antigas da América, ao sul, na Península de Yucatán, que é uma zona maia, e ali fiz alguns dias de oficinas e leituras. Depois voltei ao DF e participei de um bate-papo e leitura na Unam (Universidade Nacional Autônoma do México). Por fim dei um breve curso sobre Guimarães Rosa na Fundación para las Letras Mexicanas, antiga Fundação Octavio Paz. Além de ter conhecido o país, a cultura mexicana e os mexicanos, um povo que adorei, e de ter conversado muito e conhecido um pouco mais da sua literatura, voltei com uma série de ideias e projetos concretos de estreitamento de relações entre os dois países. A poesia mexicana é acintosamente desconhecida no Brasil. E vice-versa. Isso decorre da posição insular que o Brasil assume frente aos demais países hispânicos, que nos faz mais próximos dos EUA e de outros países europeus do que dos nossos vizinhos e da Península Ibérica. Curiosamente, o mesmo descaso se passa com relação à poesia portuguesa, que é de nossa mesma matriz cultural e da mesma língua, além de ser uma das melhores poesias do mundo. E, no entanto, a ignoramos ostensivamente. Nunca saímos de Fernando Pessoa. A cultura popular brasileira tem traços medievais, com expressões, símbolos e vocabulário que vêm do século X e foram se transformando e se sedimentando com o tempo. Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, João Cabral e Ariano Suassuna perceberam isso muito bem. É uma linha evolutiva, uma das mais fortes e longas tradições culturais europeias que ainda se preservam sem se romper. Mas os meios intelectuais brasileiros são muito afrancesados. Isso parece ter removido do horizonte essa nossa herança ibérica, que é riquíssima. E demonstra que a Missão Francesa de fato foi vitoriosa. Com relação ao México, chegamos em Octavio Paz e paramos. Sendo que eles têm uma poesia de muita qualidade, tanto nas gerações anteriores a Paz, como a do grupo Contemporâneos (Xavier Villaurrutia, Carlos Pellicer, Jorge Cuesta, José Gorostiza), quanto nas gerações um pouco posteriores, com nomes como Eduardo Lizalde e Eduardo Langagne, entre outros. E isso não só no que diz respeito ao México. Enquanto esse isolamento brasileiro perseverar, nossa poesia se empobrecerá, pois se manterá alheia às experiências artísticas mais interessantes que há em países cuja expressão cultual, linguística e política é muito semelhante à nossa. E tampouco saberá o que fazer com a herança ibérica, que é o coração de tudo o que chamamos de Brasil.
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http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_03