Ímpar, de Renato Rezende. Editora Lamparina. 96 págs. 29,00
Muitos são os caminhos que unem poesia e mística, todos eles difíceis. Pois neles não se exige do poeta apenas uma posição diante da linguagem, mas sim uma experiência da linguagem como sendo a vida do mundo. Em um pólo de claridade esse itinerário pode se dar como rarefação: a palavra se desprende de sua possibilidade de dizer as coisas, e seguimos o caminho de uma teologia negativa. Adentramos uma dimensão apofática da linguagem, cuja estrutura está sempre aquém dos seres e da possibilidade de nomeá-los.
Pelo oposto dessa concepção chegamos a algo semelhante. O mergulho no corpo, na matéria, na sua mais silenciosa viscosidade também pode ser uma redenção da consciência. Seu aniquilamento consentido e até planejado é nossa oferenda ao ser que a aniquila, e só aniquilando-a nos enraizamos no corpo para transcendê-lo rumo a uma síntese inaudita. Habitamos o intervalo: não somos um puro espírito, mas a aderência do pensamento ao mundo nos retira de toda contingência. É a experiência interior de que fala Bataille: tanto mais pertos do divino, quanto mais mergulhados no animal que há em nós.
Novo livro do poeta, tradutor e pintor Renato Rezende, Ímpar aspira ser o ponto de contato desses dois elos entre mística e poesia. Conduz-nos pelas vias conflituosas desse itinerário, no que ele tem de mais legítimo, ou seja, em seu confronto com o mysterium tremendum e com o absurdo da existência. Portanto, travessia que passa pelo niilismo, que dialoga com o jogo ambivalente de violência e esplendor do sagrado, não coroação pacífica de nossa insuficiência enfim domesticada.
Não por acaso, o livro se abre com o poema Espelho, propondo-nos uma despedida de nós mesmos, e se fecha com Encontro e com o epílogo que congrega toda a criação em um ponto azul habitado pelo amor. Em Passeio, seu livro anterior, a ligação entre poesia e travessia já tinha sido sugerida. Como um misto de flâneur e anjo caído, o poeta atravessa os espaços do Rio de Janeiro recolhendo a paisagem com seus olhos recém-saídos da Queda. Temos a viagem como metáfora e também como via, e a diluição do eu na paisagem se dá pelo contato com uma realidade que nos é familiarmente estranha. Vide os belos poemas Paraíso Perdido, Sono, O Balde e Asas.
Essa perspectiva da viagem reaparece em Ímpar, mas sutilizada pelo componente iniciático. Como vis mystica, ela de saída já abandona qualquer exterioridade. Percurso plenamente interno, a kenosis, o esvaziamento do eu, é a mola propulsora de toda a sua poética. Porém, esse processo não nasce de uma ascensão do espírito, mas sim de sua ruína, de sua descida até o mais obscuro.
Falência, surdez, mutismo, fratura, cegueira, sujeira, miséria, como lemos em poemas como Ruínas, Desconstrução da Amada, Dejetos, Corpo, Combustão. Esses componentes que em qualquer outro contexto seriam negativos aqui são a pólvora com que se acende a plenitude do ser. São eles que desagregam a vida do eu para que fale nele a alteridade radical, por isso a menção a Rimbaud em Corte. São eles que arruínam a matéria para que a luz possa vazar por seus poros. Há alguns poucos poemas cuja eficácia formal fica aquém da capacidade de sugerir ao leitor essa pulverização do ser, como Oco, Júbilo e Serviço de utilidade pública. Coisa menor, diante da ambição consumada da maior parte deles, que não é só de ordem estética, mas filosófica, existencial e dir-se-ia religiosa.
Je est un autre: o eu é um outro. Falam nele inúmeras vozes quando ele se extingue. E é basicamente de sua extinção que vive a poesia. Por isso, o livro de Rezende não raro toca ou mesmo vai fundo na abjeção, na negatividade, na escatologia, como os poemas da seção O Mundo Iluminado. Mas aqui também a guinada mística: é preciso passar pelo nada para chegar ao ser, é preciso tocar o ponto mais fundo do corpo para que o mundo se ilumine.
Aparente paradoxo, ele se resolve com a união de vida e morte em um constante pulsar de êxtase. Cada ser é singular, cada ser é ímpar, porque nada retém o devir e, no interior do nosso coração, não somos nem homem, nem mulher, nem planta, nem cachorro, nem anjo, nem demônio. Essas são abstrações de nossa matéria-prima, por meio das quais os homens confiscam seu esplendor em nome da civilização ou de qualquer outro conceito miserável.
Nós, pelo contrário, habitamos o espaço do meta-humano, morada da poesia e dos deuses. O ponto azul do amor que congrega todos os seres depois de sua última agonia, e mostra-nos assim a participação da vida cósmica. É preciso ser Deus para morrer, diria Bataille. Como homens, somos condenados a ser eternos. Não é a alma. Mas sim a matéria é que é indestrutível. E com ela toda a vida.