A poesia de Emily Dickinson
Alguns Poemas, de Emily Dickinson. Tradução de José Lira. Prefácio de Paulo Henriques Britto. Editora Iluminuras. 319 págs. 44,00.
Na pequena cidade de Amherst, no Massachusetts, ao revirar o quarto de sua irmã após o seu falecimento, em 15 de maio de 1886, Lavinia não supunha a surpresa que lhe esperava. Em um baú, depara-se com pilhas e pilhas de papéis escritos à mão, dispostos em forma de livros, os famosos fascicles, que computavam ao todo cerca de 1800 poemas.
Mais do que uma questão de cânone ou de marginalização artística, esse anonimato quase absoluto daquela que viria a ser considerada uma das mais importantes poetas da língua inglesa nos revela que estamos diante de algo que toca o coração mesmo da poesia.
Pois se o poeta é aquele que abre uma clareira na noite do mundo, como queria Heidegger, cabe a ele sustentar a poesia como sacerdócio, não como uma ocupação utilitária. Só assim é possível, contra o mundo e em benefício da poesia, descobrir um horizonte habitável. Só assim o seu poder de desvelamento será proporcional à sua capacidade de se eclipsar enquanto indivíduo.
Se os deuses se foram e só nos resta esse ninho à sua sombra para sustentarmos leveza e abismo, é no adeus a toda vaidade terrena que o poema se faz mais necessário e violento. Nesse sentido, independente do valor maior ou menor de cada poema, poucos poetas foram tão dignos desse nome e deram tanta dignidade ao ofício da poesia quanto Emily Dickinson. A publicação de “Alguns Poemas”, belo trabalho de tradução, seleção e introdução de José Lira, precedido de prefácio do poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, é uma ótima porta de entrada no seu imaginário.
O livro traz uma seleção de 245 poemas e, sendo a mais extensa publicação da poeta no Brasil, oferece um painel bastante significativo dessa tapeçaria feita de silêncio, música e delicadeza. Além disso, é um oportuno exercício de tradução de poesia, à medida que Lira, não contente em adotar abordagens mais literais ou mais criativas, lançou mão de três modalidades possíveis: as recriações, constantes da primeira parte, A Áurea Presença, e as imitações e invenções, dispostas na segunda e terceira partes do livro, intituladas, respectivamente, Uma Arma Carregada e O Outro Céu.
Escasseiam informações sobre a vida da poeta, e diz-se que ela nos deixou apenas uma foto. Independente de especulações biográficas sobre possíveis frustrações amorosas que teriam contribuído para a sua reclusão, que acabam subscrevendo a obra ao mito, é importante notar na própria fatura de sua poesia um movimento contrativo simbólico. Seu eixo é o espelhamento de céu e alcova. Às vezes, Cova, quando toca o tema da existência e da morte.
Não se trata de uma poesia erótica, como quis Camille Paglia, mas de poemas cujo signo maior é a finitude da carne e a redenção diáfana oferecida pelo céu, única testemunha de toda nossa vida e, portanto, ápice da criação artística para Dickinson. Por isso, embora em seus versos célebres ela diga “fugir do céu” e “buscar o inferno”, só o afirma como movimento descendente do espírito, tantas vezes tematizado em diversos poemas, não como aspiração última do ser.
No fundo, temos aqui um dos mais bem acabados modelos de poesia alegórica. E que bebe na alegoria a sua chaga e o seu paraíso, pois é por meio dela que Dickinson descreve os finos movimentos de sua consciência e de seu contato o Outro, flagrado em gestos cotidianos. Casa, Porta, Prazer, Alegria, Desgraça, Amigo, Morte, Mundo, Vida, Graça, Pão Celeste, Dupla Perda, Sol, Coração, Primavera: não estamos diante de uma enumeração mecânica que evita captar a vida pulsante do mundo, mas no cerne teatral de uma poesia que quer fazer de sua radicação terrena o palco para o desfile da Eternidade, em todas as suas máscaras mais efêmeras.
Tal ambição não lhe conferiu obscuridade. Deu-lhe, pelo contrário, o quê de etéreo de todo gesto inconcluso. E se a poesia de Dickinson pode muitas vezes soar monocórdica, ela o faz à custa de sua própria renúncia e em prol de sua obsessão de não ser deste mundo e não ser de seu tempo. Assim, não obseda o leitor com a repetição diversificada de uma modernidade veloz e em tudo entediante. Segue os ritmos da alma, não os desígnios caducos de uma cidade sempre em construção e sempre em ruínas.
Tivemos a revanche da exceção nas obras dos grandes obscuros em vida, de Sade e Pessoa a Kafka e Kaváfis. Emily Dickinson, que ficou conhecida como a Grande Reclusa, também exerceu sua vocação para a sombra. Ela é que a reconduziu à poesia em seu estado puro, dir-se-ia à sua nascente, a quilômetros de distância do burburinho pedante, pantanoso e desprezível dos literati. A atmosfera de sonho que se respira em sua poesia deve muito à sua condição, o que significa que fez bem em renegar a glória. Afinal, para quem escreve da e para a eternidade, os leitores e a vaidade são apenas um mero acidente.
Na pequena cidade de Amherst, no Massachusetts, ao revirar o quarto de sua irmã após o seu falecimento, em 15 de maio de 1886, Lavinia não supunha a surpresa que lhe esperava. Em um baú, depara-se com pilhas e pilhas de papéis escritos à mão, dispostos em forma de livros, os famosos fascicles, que computavam ao todo cerca de 1800 poemas.
Mais do que uma questão de cânone ou de marginalização artística, esse anonimato quase absoluto daquela que viria a ser considerada uma das mais importantes poetas da língua inglesa nos revela que estamos diante de algo que toca o coração mesmo da poesia.
Pois se o poeta é aquele que abre uma clareira na noite do mundo, como queria Heidegger, cabe a ele sustentar a poesia como sacerdócio, não como uma ocupação utilitária. Só assim é possível, contra o mundo e em benefício da poesia, descobrir um horizonte habitável. Só assim o seu poder de desvelamento será proporcional à sua capacidade de se eclipsar enquanto indivíduo.
Se os deuses se foram e só nos resta esse ninho à sua sombra para sustentarmos leveza e abismo, é no adeus a toda vaidade terrena que o poema se faz mais necessário e violento. Nesse sentido, independente do valor maior ou menor de cada poema, poucos poetas foram tão dignos desse nome e deram tanta dignidade ao ofício da poesia quanto Emily Dickinson. A publicação de “Alguns Poemas”, belo trabalho de tradução, seleção e introdução de José Lira, precedido de prefácio do poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, é uma ótima porta de entrada no seu imaginário.
O livro traz uma seleção de 245 poemas e, sendo a mais extensa publicação da poeta no Brasil, oferece um painel bastante significativo dessa tapeçaria feita de silêncio, música e delicadeza. Além disso, é um oportuno exercício de tradução de poesia, à medida que Lira, não contente em adotar abordagens mais literais ou mais criativas, lançou mão de três modalidades possíveis: as recriações, constantes da primeira parte, A Áurea Presença, e as imitações e invenções, dispostas na segunda e terceira partes do livro, intituladas, respectivamente, Uma Arma Carregada e O Outro Céu.
Escasseiam informações sobre a vida da poeta, e diz-se que ela nos deixou apenas uma foto. Independente de especulações biográficas sobre possíveis frustrações amorosas que teriam contribuído para a sua reclusão, que acabam subscrevendo a obra ao mito, é importante notar na própria fatura de sua poesia um movimento contrativo simbólico. Seu eixo é o espelhamento de céu e alcova. Às vezes, Cova, quando toca o tema da existência e da morte.
Não se trata de uma poesia erótica, como quis Camille Paglia, mas de poemas cujo signo maior é a finitude da carne e a redenção diáfana oferecida pelo céu, única testemunha de toda nossa vida e, portanto, ápice da criação artística para Dickinson. Por isso, embora em seus versos célebres ela diga “fugir do céu” e “buscar o inferno”, só o afirma como movimento descendente do espírito, tantas vezes tematizado em diversos poemas, não como aspiração última do ser.
No fundo, temos aqui um dos mais bem acabados modelos de poesia alegórica. E que bebe na alegoria a sua chaga e o seu paraíso, pois é por meio dela que Dickinson descreve os finos movimentos de sua consciência e de seu contato o Outro, flagrado em gestos cotidianos. Casa, Porta, Prazer, Alegria, Desgraça, Amigo, Morte, Mundo, Vida, Graça, Pão Celeste, Dupla Perda, Sol, Coração, Primavera: não estamos diante de uma enumeração mecânica que evita captar a vida pulsante do mundo, mas no cerne teatral de uma poesia que quer fazer de sua radicação terrena o palco para o desfile da Eternidade, em todas as suas máscaras mais efêmeras.
Tal ambição não lhe conferiu obscuridade. Deu-lhe, pelo contrário, o quê de etéreo de todo gesto inconcluso. E se a poesia de Dickinson pode muitas vezes soar monocórdica, ela o faz à custa de sua própria renúncia e em prol de sua obsessão de não ser deste mundo e não ser de seu tempo. Assim, não obseda o leitor com a repetição diversificada de uma modernidade veloz e em tudo entediante. Segue os ritmos da alma, não os desígnios caducos de uma cidade sempre em construção e sempre em ruínas.
Tivemos a revanche da exceção nas obras dos grandes obscuros em vida, de Sade e Pessoa a Kafka e Kaváfis. Emily Dickinson, que ficou conhecida como a Grande Reclusa, também exerceu sua vocação para a sombra. Ela é que a reconduziu à poesia em seu estado puro, dir-se-ia à sua nascente, a quilômetros de distância do burburinho pedante, pantanoso e desprezível dos literati. A atmosfera de sonho que se respira em sua poesia deve muito à sua condição, o que significa que fez bem em renegar a glória. Afinal, para quem escreve da e para a eternidade, os leitores e a vaidade são apenas um mero acidente.