segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Na língua em que Algo ou Alguém me escreve

Nota-se nos prólogos e epílogos de Borges a seus livros de poemas reiteradas desculpas. Seja por “excessos barrocos” e “asperezas” ou pelos poemas terem algo de “ostentoso e público”, seja por referir-se a eles como os “exercícios deste volume” ou por atestar a “monotonia essencial desta miscelânea”. De qualquer forma, o escritor não deixa de confessá-los frutos de “manejo consabido de algumas destrezas”, uma ou outra “ligeira variação” e “fartas repetições”.
Mais do que uma captatio benevolentiae ou uma afetação de humildade para produzir a simpatia do leitor, talvez Borges estivesse certo. Se isolarmos o poeta do ficcionista e do ensaísta, muita coisa se perde. Se é possível dizer assim, sua grandeza está mais nestes dois gêneros do que naquele. Borges é o tipo de autor que precisa ser compreendido em sua totalidade para ser admirado em suas partes. É autor de uma obra, não de peças literárias avulsas. Nesse sentido, pertence àquela família de grandes escritores de diversas obras, não de bons escritores de uma única obra. Dificilmente um autor se mantém equânime em três gêneros diferentes. O Cervantes poeta difere drasticamente do autor do Quixote e de Trabalhos de Pérsiles e Segismunda. E aqui penso, sobretudo, em outro cultor das claras aventuras da lucidez, admirado pelo escritor argentino: Paul Valéry. Notadamente autor do Cemitério marinho, poucos não o reconhecem melhor como ensaísta.
A produção poética de Borges que vai de 1923, com Fervor de Buenos, seu livro de estréia, até Elogio da sombra, de 1969, traz alguns dos seus melhores momentos como poeta e também algumas de suas fraquezas. Pode-se dizer que Fervor de Buenos Aires, Lua defronte (1925) e Caderno San Martín (1929) partilham princípios poéticos semelhantes; cada um a seu modo exerce recursos de vanguarda e prima pelo verso livre, pela exploração das imagens expressivas e de um ritmo flutuante, expedientes que o Borges mais maduro irá criticar. Essa fase coincide com sua estada na Suíça e na Espanha. Está ligada ao seu contato com as vanguardas e com a revista Ultra, mas seu retorno a Buenos Aires, a sua volta às origens, forneceu-lhe um novo material poético. Sua poesia é marcada pela fusão desse duplo movimento.
Alguns excessos bem dosados, como nos versos “a cidade que oprimiu uma folhagem de estrelas”, “pátio, céu canalizado”, que lembram muito as melhores imagens de Lorca, e “jardim engastado em um espelho”, convivem com alguns descuidos: “só a vida existe”, “estéreis morros silenciosos”, “furtiva noite felina”. Independentemente disso, temos aqui momentos de grande beleza, como em “A rosa”, “Um pátio”, “Inscrição em qualquer túmulo”, “Amanhecer”, “Benares” (FBA), bem como “Amorosa antecipação”, “A promissão em alto-mar” “Dulcia linquimus arva” (LD), “Paseo de Julio” e “A noite em que no Sul o velaram” (CSM), este último considerado por Borges o primeiro poema autêntico que escrevera.
A partir de O fazedor (1960), começa a se delinear outra fase em sua escrita poética, mais madura, equilibrada e, pode-se dizer, mais densa. Obras como O outro, o mesmo (1964), que o autor confessou ser, dentre todos os seus livros de poemas, o seu preferido, e Elogio da sombra (1969), aprofundam essa guinada. O verso livre não é abandonado, tampouco a liberdade formal. O livro O fazedor é escrito em prosímetro, misto de prosa e verso, e segue uma estrutura quase narrativa, e Elogio da sombra também mescla versos e poemas em prosa. O que ocorre é uma predominância de formas mais clássicas, a presença de referências literárias, mitos, citações bíblicas, diálogos com outras obras e autores, incorporação de questões metafísicas.
A toponímia argentina e o prisma imagético ultraísta cedem à atmosfera bíblica ou à paisagem interior do imaginário e das referências míticas. A título de lembrança: é também a fase de sua passagem para a cegueira. “Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo/e na humildade de uma alma”. Pela boca de Cristo, o poeta relata em primeira pessoa a via-crúcis. Essa primeira pessoa é o apóstolo João, um anônimo medieval, Shakespeare, eu, você, Borges e o próprio Jesus. No esteio atemporal, nasce a poesia, ao apagarmos nossos nomes, ao trocamos nossos rostos. É quando, sem querer, nos percebemos contemporâneos dos deuses.