segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Pedra de Luz: entrevista cedida a Carlos William, Flávio Paranhos, Francisco Perna Filho e Edival Lourenço

Carlos Willian Leite - Onde começa sua genealogia?
Minha genealogia de nome vem do meu pai, embora não saiba ao certo a origem. Filho de pernambucana com mineiro, nasci em São Paulo. Minha origem estelar vem da mutação dos unicelulares, da evolução, dos desdobramentos e infinitos acidentes materiais que resultaram em um planeta que se chama Terra e em seres bípedes que se chamam homens e que escrevem coisas chamadas poemas. Minha genealogia espiritual vem de todos os poetas, filósofos, historiadores e artistas que admiro e com quem partilho outro tempo e outro espaço no mesmo presente. Minha genealogia cotidiana vem dos rostos e paisagens que vi, do que toquei, do que passei, do que passou por mim.

Flavio Paranhos - Rodrigo, sua formação é em Letras, mas você demonstra grande intimidade com a Filosofia. Para sua literatura isso é bom ou ruim? Em outras palavras, dominar a filosofia pode significar ser dominado por ela? A "contaminação" é sempre benéfica?
Boa pergunta Flavio. Hölderlin tem uma definição curiosa, engraçada, segundo a qual a filosofia seria o sanatório dos poetas. Nesse sentido acho que ela pode nos salvar, mais do que contaminar ou castrar. A literatura que mais leio consiste em filosofia, história, poesia e ficção breve. Durante algum tempo tive dilemas sobre essa questão. Se a literatura de gênero crítico e analítico tolheria a criativa. Mas hoje penso que, no fundo, toda grande filosofia é grande literatura. Há mais poesia em um bom filósofo do que em muitos poetas.

Flavio Paranhos - "Existe algo mais provocante para o poeta do que sua relação com a palavra?", pergunta Heidegger, e eu me permito perguntar a você. E seguindo com ele: "nenhuma coisa é onde a palavra faltar" (Heidegger se apropria do último verso de um poema de Stefan George). Qual sua relação com a palavra? Acredita em sua força?
Pensar a palavra a partir da concepção de Heidegger é um trabalho fascinante. Em um ensaio brilhante sobre Rilke ele nos diz que quando passamos pela floresta passamos por dentro da palavra floresta, quando passamos pelo poço passamos pela palavra poço. Ele concedeu uma dignidade à poesia poucas vezes vista, na medida em que a colocou como voz da origem: a filosofia não explica a poesia, mas aprende com ela. Nesses termos e nos termos de outros filósofos a palavra ganha uma potência que me atrai muito. Quebra-se também uma dimensão mais analítica ou positiva que julgo empobrecedora. Gosto de pensar a palavra nesse campo de conceitos. Também me interessa muito a relação entre linguagem e pensamento mítico.

Flavio Paranhos - Pelo que sei, você é um admirador de Hilda Hilst. Você conhece seu teatro (editado pela Nankin)? Se o conhece, o que acha? O que explicaria ser tão pouco explorado?
Infelizmente não conheço o seu teatro. Quero conhecê-lo, porque quero ler toda sua obra. Conheço bem a prosa, sobretudo aquela mais antiga recolhida no livro Ficções, e toda a poesia. Hilda é uma autora excepcional. Uma das grandes escritoras da segunda metade do século. Sua literatura é difícil. Muitas vezes anárquica. Talvez venha daí certa resistência.

Edival Lourenço – Filosoficamente a poesia entra na categoria dos “inutilitários”. Como a poesia, sendo “inútil”, possa ter utilidade para a vida das pessoas?
A inutilidade pressupõe uma relação necessária e um contraste com o mundo dos instrumentos e dos fins. Isso pode gerar uma visão da poesia como ornamento ou como adereço, o que é bastante criticável. Diria que ela é intransitiva, não inútil. Esse seu caráter intransitivo não se dá apenas na linguagem. Abre uma clareira de sentido que nos remete à experiência originária, que é ao mesmo tempo a mais universal e a de mais difícil apreensão. A experiência poética nasce da tensão do arco dobrado sobre a lira, para lembrar o sempre oportuno Octavio Paz. É nesse sentido que a poesia pode ser revolucionária. Ao cumprir radicalmente o retorno ao eixo estruturante da experiência e do imaginário, encontra nele um manancial de possibilidades que não são contempladas pela nossa vida cotidiana, regrada por uma lógica quantitativa e instrumental. Nesse diapasão, pode nos colocar em contato com aquela moral lúdica de que fala o grande filósofo Vicente Ferreira da Silva. E assim cumprir a sua revolução, entendida no sentido etimológico: aquilo que volta a seu centro transfigurado.

Carlos Willian Leite - É possível hierarquizar a poesia brasileira, sem cometer injustiças? Aliás, existe poeta injustiçado?
As injustiças acontecem justamente por conta de uma má hierarquização ou de sua ausência. A diversidade é fundamental. Mas dizer que toda a sua gama de matizes se equivale é burrice. É o mesmo que anular o seu próprio princípio heterogêneo, o que é uma contradição. A crítica, em termos gerais, deve ser analítica, mas também judicativa. Deve resultar do juízo de um leitor que já leu impessoal e imparcialmente de tudo, e por isso faz de sua leitura um terreno, senão isento, o mais objetivo possível. O crítico é uma espécie de medium entre a tradição e a obra. Seu juízo deve sempre transcender a esfera privada de seu gosto sem esquecer a contingência histórica de sua leitura. Nesse sentido ele é um leitor muito especial. Mais do que fruir a obra individualmente ele a lê como eixo estruturante de um fio secular que se realiza nele e que nele se objetiva. Quanto aos poetas injustiçados são muitos. O cânone é uma coisa movente e na maioria das vezes confuso. Todas nossas certezas cabem aos mortos. É difícil avaliar o vivo. Os melhores poetas geralmente demoram décadas para serem tidos como tais. Às vezes só postumamente. É impressionante o medo que temos de estabelecer valores e hierarquizar as coisas. Isso é fruto de uma cultura de populismo e demagogia. Creio que isso aconteça porque ainda confundimos bem e mal com bom e ruim. Atribuímos sempre causas transcendentes e morais a fenômenos puramente artificiais e contingentes. Nietzsche diria que o fazemos por sermos ainda animais religiosos. Em nós ainda predominam o espírito gregário e o gosto pelo rebanho.

Edival Lourenço - Você afirmou em entrevista que “Eles (os escritores), como os loucos, são todos inocentes”. Você compartilha das idéias platônicas de que os escritores são seres sem razão, leves, que se deixam guiar pela voz das musas?
Uma das coisas que mais me interessam é a relação entre poesia e loucura. A idéia platônica do poeta como portador do furor divino é das mais ricas. É uma tradição que vem de Platão, mas que se atualiza em muitos e muitos momentos da história de maneira diversa, até contraditória. Até Lorca chega a falar do daimon, e defende a poesia como possessão. Assim escreveu o Poeta en Nueva York, um dos melhores livros de poemas do século XX. Quando disse que os poetas são loucos queria apenas enfatizar a liberdade radical de criação. O que me incomoda é a avaliação crítica posterior dessas criações e o lugar que elas ocupam na sociedade e na vida intelectual. Aí há distorções que devem ser debatidas e analisadas.

Francisco Perna Filho – Aí você toca num ponto interessante, possibilitando uma retomada da pergunta anterior. Nós sabemos que não há semilouco, como também não há meio poeta, o que sabemos é que, por mais que se queira atribuir inspiração e desregramento aos poetas, as suas obras são fruto de muito trabalho e estudo, daí concluirmos que todo juízo deve ser assentado em conhecimento prévio, para que, ao emiti-lo, não o façamos artificialmente, como é o caso de pseudocríticos que, pelo imediatismo midiático, cometem os maiores desatinos, e um deles é julgar um escritor – baseando-se apenas em uma obra dentre as tantas que ele (o escritor) escreveu. O que você nos diz sobre isso? Já cometeu tal pecado?
Sim. Mas eu sou um dos maiores defensores do estudo e de que a arte é fruto de um longo, exaustivo e intenso trabalho. Esse debate entre furor inspirado e studium é algo que atravessa praticamente todas as poéticas e artes retóricas de todos os séculos. O problema que você coloca é uma banalização extremamente grosseira do poeta como inspirado, que desconhece as regras da arte e que vive da própria áurea que criou em torno de si. A imprensa e a mídia de modo geral colaboram para a disseminação desta visão pobre talvez porque ela seja mais vendável e conveniente. Para mim não há oposição entre domínio técnico e loucura poética. Há gradação e diferença de ênfase em cada poética e em cada autor. Quanto a julgar um escritor por uma só obra e causar alarde em torno disso, são coisas diferentes. É bom conhecer todo o trajeto de um autor. Mas se ele oferece uma obra imaginamos que ela, como obra, tenha que se sustentar, ter alguma autonomia. Parece que Picasso chegou a escrever peças de teatro. Não as conheço. Mas seria errado um crítico julgar os erros e acertos de suas peças tendo em vista o gigantismo de seu trabalho plástico. São obras distintas. Devem ser vistas distintamente.

Edival Lourenço – Em seu poema Ezequiel, de Pedra e Luz, você se apropria de um tom deliberadamente profético e faz, digamos, uma neoprofecia. Usa elementos da antiga tradição para falar de coisas que são presentes (ou seriam perpétuas?). Seria a poesia uma nova forma de profetizar? De se fazer profecia ainda que laica?
A pergunta vai ao âmago de boa parte do livro. Agradeço a sua leitura atenta e a possibilidade de falar dele. Uma das idéias desse livro é a de que a poesia é uma criação intempestiva, para usar um conceito de Nietzsche, retomado por Deleuze. Ela nega o binômio histórico-eterno, que estaria ligado a um dualismo de base empírico-transcendental, e tenta criar um tempo de pura duração e imantação. É o pêndulo que oscila entre esses dois extremos sem se ater a nenhum, porque o intempestivo é o desdobramento de uma potência, de um conjunto de forças, não a configuração metafísica de uma essência. A poesia não está submetida ao tempo, embora nasça dele, e não é eterna, embora queime para além dos limites contingentes de nossos corpos tragados pela história. Por isso é muito importante para mim esse esteio mítico, do qual geralmente me valho para descrever uma situação ou pintar um estado de coisas atual. Nesse poema, como você bem notou, a recorrência é bíblica, recorrência que por sinal me interessa e vem me interessando cada vez mais. Mas há outros elementos da tradição que sinto necessidade de atualizar, sempre tendo em vista o nosso horizonte atual, a minha vida, a nossa experiência de homens imersos no tempo e habitantes da história. Há um belo ensaio de Heidegger que trata da palavra como imagem do mundo. Em outra oportunidade, o filósofo diz-nos que a poesia é o que dá fundamento à história. Creio que ele o afirma nesse sentido. A linguagem (e no caso a linguagem poética) é produto do tempo, mas o lança a um futuro incerto e, assim, produz outros tempos vindouros em sua virtualidade. O mito não é produto da história: ele a produz. Essa movência é bastante rica para todas as formas de criação e para o pensamento.

Carlos Willian Leite - A Heloisa Buarque de Holanda disse que você se equivoca quando critica o Paulo Leminski, porque não há só uma régua para se medir o valor e a qualidade da produção artística, e que o Leminski até hoje mobiliza leitores porque expressou de forma bastante eficaz o ethos de seu momento geracional e político...
A entrevista na qual faço essas críticas foi dada em uma fase muito turbulenta da minha vida. Continuo pensando as mesmas coisas. Mas acabei sendo um pouco agressivo e faltou fundamentação. Aproveito agora para externar publicamente essas desculpas. A poesia do Paulo Leminski tem a virtude de transitar em vários setores do público leitor. Mesmo sua derivação para a música popular deu canções belíssimas nas mãos desse grande artista que foi Itamar Assumpção. Mas ela, em sua fatura, para conseguir essa elasticidade, usa recursos muito primários e se atém a efeitos superficiais de sentido. Não é possível ter tudo. O que acho errado é se reverenciar Leminski como um dos grandes poetas brasileiros. O lugar dele está amplificado. E isso eclipsa outros poetas cuja linguagem é menos acessível, mas muitas vezes mais rica. Quanto a não haver uma só régua para aferir valor, isso é quase como dizer que valor nenhum deve ser aferido. É nos reconhecermos vencidos pelo vale-tudo do relativismo, que é a maneira disfarçada com que a ideologia liberal vende seu cânone para que continuemos sendo colonizados cultural e intelectualmente. Para que continuemos sendo escravos de centros de poder intelectual e poético capazes de produzir Rilke, Trakl, Perse, Celan, Éluard, Helder, Pound, Eliot, entre tantos outros. Quanto às gerações, um dos problemas no Brasil é que nos preocupamos tanto com décadas e gerações que acabamos esquecendo o século e o milênio.

Francisco Perna Filho - Quando você fala em “escravos de centros de poder intelectual” e cita grandes nomes da poesia universal, reflete a influência que estes poetas exerceram e exercem sobre nós outros, não estaria aí, ao combater este centro de influência, o senhor querendo negar a sua dívida para com eles (os poetas citados ou outros não mencionados), mesmo que de forma indireta?
De maneira nenhuma. Estou dizendo exatamente o oposto. O que precisamos é ter a humildade e a inteligência de reconhecer nosso lugar periférico diante da economia simbólica mundial. Só depois desse reconhecimento podemos dar a guinada que nos conduza a uma posição interessante. Enquanto ficarmos camuflando nossa indigência com sociologia duvidosa e enquanto formos o galhinho que quer passar por tronco à custa de teoria ruim, continuaremos a ser o celeiro intelectual do mundo. E continuaremos sendo ventríloquos do que eles produzem, sem a mínima capacidade de criar algo à altura. Os álibis culturalistas são grandes responsáveis pela nossa escravidão. Só lendo a melhor literatura do mundo pode-se produzir algo equivalente. Coincidentemente, ou seria por ironia do destino, essa literatura é produzida nos países ricos. Deglutamo-la.

Edival Lourenço – O verso 82 do poema East coker do livro Quatro Quartetos (1943) de T. S. Eliot, ele diz que “A sabedoria encerra apenas o conhecimento de segredos mortos”. No seu poema No sentido da terra (que por sinal me lembrou o tom de Terra devastada), parte III, você diz que “É no sentido da terra que temos que cavar um mundo novo./ Na fenda da artéria (...)/ O sol do sono. Estômago entre ciprestes”. “Estômago entre ciprestes” me soou como tumba, “segredos mortos”. Até que ponto você foi influenciado por Eliot? Você acredita que o passado é a fonte de toda a “sabedoria literária”?
Eliot é um poeta excepcional. No Centro de Estudos Cavalo Azul, onde leciono e que é dirigido pela poeta Dora Ferreira da Silva, chegamos a ler a instância Little Gidding dos Quatro Quartetos. A sua observação é bastante pertinente, agradeço e me sinto muito envaidecido com a comparação. Porém, em termos gerais, além da minha pequena estatura diante de um poeta como Eliot, o que distingue os poemas de Pedra de Luz, em especial esse, dos Quartetos, é uma diferença de poéticas. Eliot é muito ligado a uma tradição tomista e os Quartetos são praticamente a culminância de suas convicções religiosas e de seu credo literário. Toda a sua estrutura é escalar e se cumpre em um movimento ascendente, que se dá com a ascensão da chama que se transforma em puro Amor. O diálogo direto é com a Commedia, com alguns poetas franceses e com Tomás de Aquino. Minha poesia é mais telúrica, mais ligada a esse mergulho no sentido da terra, no espaço interior do mundo, de que fala Rilke, também desconsiderando as diferentes envergaduras. Com relação à importância desse domínio dos mortos e de seus segredos, aí é um campo que me interessa muito. Você percebeu muito bem a importância dessa voz que sopra dos tempos imemoriais. Tento sempre atualizar essa tradição e esses dados seculares na poesia. Mas confesso que não tenho a convicção de Eliot no poder do passado como fonte de sabedoria. Esse é um lado de sua obra: ser um teatro que encena outras obras. Mas a valorização da tradição, sobretudo do período medieval, como grande núcleo coeso, religiosa e intelectualmente falando, é bastante discutível. Também há aí um princípio de mortificação implícito: toda a história é vivida como máscara e, portanto, criar é fugir de si, não exprimir-se. No entanto, conhecemos grandes poetas que praticamente quiseram aniquilar essa tirania impessoal da tradição, como Whitman. Esse fato não o diminui. Mas o torna sim mais interessante. Talvez por isso, por essa crítica da tradição, Eliot e Pound o tenham repudiado.

Edival Lourenço - Numa entrevista você afirma que um de seus poetas preferidos é Augusto dos Anjos. Mas a estrofe:
Eu, filho carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco,
do poema Psicologia de um vencido, que é uma das mais popularizadas do autor, não é horrorosa por qualquer ângulo que se olhe?
Julgar Augusto dos Anjos a partir de critérios de bom ou mau-gosto é ainda não ter compreendido Baudelaire. Augusto dos Anjos não é apenas um dos maiores poetas brasileiros. Ele é um poeta importante do século XX. Se não tivesse nascido em Pau D’Arco, mas em Berlim, e escrito em alemão, seria lido como um dos bons expressionistas. Há um conceito que gostaria de desenvolver teoricamente e que pode ser traduzido como princípio de negatividade. O Eu realiza esse princípio em uma escala que poucas vezes se viu em poesia. Ele equaciona, na poesia, algo que vem explícito no título de um de seus poemas: um vandalismo poético. Ele destrói o positivismo com a ascensão ao Nirvana. Mas destrói as filosofias orientais fazendo-as imergir na carne que apodrece. Destrói o sujeito e o subjetivismo com uma tesoura bramânica. Destrói a ciência com a objetivação do Espírito. Mas desloca a Idéia para fora do mundo. Cria uma involução monista a partir do evolucionismo. Destrói o idealismo com o elogia da matéria. Destrói o cristianismo propondo a infinita e eterna transformação desta mesma matéria. Mas deixa a sua origem em suspenso, ao sugeri-la eterna. Expulsa o Espírito Santo e ao mesmo tempo atrofia Eros. Em uma implosão, destrói a poesia, como apostasia do belo. Por fim, deglute a crítica, propondo um lugar anômalo, fora das instituições, e assim praticamente anuncia a sua falência, para usar o conceito de Leyla Perrone-Moisés. O sorriso irônico das fotos do poeta se endereça a todos os leitores e críticos que estão até hoje procurando inutilmente conceitos e gavetinhas nas quais guardá-lo. O título de um livro de Antonio Negri definiria bem a sua poética: anomalia selvagem. Ele é uma força que não pode ser domesticada. Por isso a importância de sua poesia. Por isso a sua urgente modernidade.

Flavio Paranhos - Sou forçado a concordar com Edival Lourenço quando perguntou a respeito de Augusto dos Anjos. Não acho que se trata de compreender Baudelaire (ou Poe, ou Schopenhauer), mas de se enxergar só o que há. E o que há não é muito rico. Portanto eu pergunto, forçando um pouco a barra, será que não se está a superestimá-lo?
Podemos criar vários padrões valorativos, vários modelos de análise. Não digo que não haja dados objetivos que forneçam limites para a interpretação. Mas o leque de possibilidades de leitura de um mesmo autor é bastante grande. Aqui precisaríamos pegar a obra de Augusto dos Anjos e propor praticamente um diálogo à parte só sobre ela, para debater esses diversos pontos. Frisei a importância de Baudelaire apenas como um autor que deu uma guinada no estatuto da representação e do belo. Augusto dos Anjos segue seus passos, sem fazer nenhuma equivalência valorativa entre os dois poetas, mas apenas ressaltando a convergência de suas poéticas.

Francisco Perna Filho - Não há dúvida quanto a importância de Augusto dos Anjos: muito lido, difundido, estudado. Agora, tocando em contemporaneidade e ausências, o que você tem a nos dizer sobre Gerardo Mello Mourão. Por que ele é pouco difundido (ou estou enganado)?
Gerardo Mello Mourão é um ótimo poeta. Um dos fortes poetas brasileiros em atividade. Talvez o isolamento dele se deva a dois motivos, um formal e outro ideológico. O formal é pelo fato de sua poesia, com forte base mítica e histórica, destoar de uma tendência mais hegemônica que vem predominando nas últimas décadas. Por outro lado deve haver resistência a ele devido às posturas políticas que ele assumiu. Acho isso entristecedor. Citando versos do grande poeta Mário Faustino ditos no Terra em Transe do gigante Glauber: política e poesia são coisas demais para um homem só. Há grandes homens que cometeram erros históricos. Não quero minimizá-los, estetizá-los ou despolitizar a arte. Estamos todos enovelados em idéias e atos. Não há como escapar. Duas das mulheres que foram importantes na minha vida são judias. Quero ser lúcido o bastante para que isso não me impeça de reconhecer que Heidegger e Pound estão entre os intelectuais e poetas mais importantes do século XX. Mais que isso: amar o trabalho deles. No fundo, é o velho ditado: não se corrigem os erros da história com mais erros no presente.

Carlos Willian Leite - O mini-conto paranaense a la Dalton Trevisan é uma tendência lingüística ou é preguiça mesmo?
Não saberia responder essa pergunta. Li pouco o Dalton Trevisan porque tenho me distanciado desta poética da concisão. Mas conheço ótimos leitores que gostam de sua obra.

Edival Lourenço - No conto A partida do trem, do livro Onde estivestes de noite (1974), Clarice Lispector afirma através de uma personagem, possivelmente um alter ego, que “Eu tentei ler Joyce, mas, parei porque era muito chato”. Como você vê essa afirmativa, partindo de Clarice Lispector?
É a opinião da Clarice, ou melhor, desse pretenso alter ego. Há inúmeros leitores e escritores que também a acham uma chata e têm seus motivos e argumentos pra isso. É muito saudável que os escritores tenham posições e gostos definidos e argumentem em favor de suas idéias. Para mim Joyce é um dos maiores escritores de todos os tempos. O Ulisses é um monumento que aparece de século em século.

Francisco Perna Filho - Não seria Ulisses – para muitos – indigesto por conta da tradução de Houaiss? Você viu o trabalho de tradução Bernardina da Silveira Pinheiro?
Não vi ainda a tradução da Bernardina da Silveira Pinheiro. Gosto da tradução do Houaiss. Seria preciso fazer uma análise cuidadosa das duas pra ver os ganhos e perdas.

Carlos Willian Leite - Por que a crítica literária migrou para as universidades? Qual a importância da teoria literária?
Não diria que a crítica migrou para a universidade, mas sim que ela minguou na imprensa. Isso é resultado de um problema muito sério que é da ordem da economia simbólica dos dias de hoje. Cada vez mais a cultura é tida como digestivo e a literatura como um subproduto de uma cadeia comercial indistinta. O espaço de reflexão necessário a uma avaliação crítica que tenha em vista apenas os critérios literários vai sumindo. Resta uma mescla de colunismo social, jornalismo informativo, diluição de teoria, impressões pessoais, cartéis mantidos entre editoras e jornais. Na universidade estão algumas das pessoas que mais entendem de arte e de literatura no Brasil. Mas o afastamento é pernicioso, porque cria um abismo entre as duas instâncias e bloqueia a divulgação da teoria produzida na universidade bem como a absorção, por esta, do que de melhor está sendo produzido na literatura atual, criando um descompasso, uma idiossincrasia. A teoria nos dias de hoje tem uma importância gigante. Todas as invectivas contra a teoria e a universidade são produzidas por um discurso espúrio, demagogo e populista. Sob o pretexto da universalização e da acessibilidade do conhecimento defende-se sim a sua aniquilação, na medida em que se questiona um dos seus cernes, que é o seu caráter não-instrumental. A crítica à teoria, na maioria das vezes, pactua com um ideal liberal cujo intuito é a destruição da ciência, leiloada em benefício da eficiência. Em outras palavras, é praticamente um projeto de recondução à barbárie.

Carlos Willian Leite - Qual sua opinião sobre os críticos brasileiros? Existe isenção crítica?
A pergunta é muito genérica. Falar na crítica ou em críticos brasileiros é querer abranger milhares de quilômetros de erros, acertos, disparates e quejandos em algumas palavras. A generalidade sempre produz injustiças.

Edival Lourenço - Hoje em dia, uma das formas da crítica, principalmente os resenhistas, menosprezar uma obra é tachá-la de regionalista. Obras como Dom Quixote, Hamlet, Abril despedaçado são, num sentido amplo, regionalistas. A que se deve esse cacoete de parte da crítica nacional?
A interpretação de algumas destas obras que você menciona como sendo regionalista é questionável. A interpretação regionalista do Quixote, por exemplo, é algo que vem na Espanha com a Geração de 1898 e é de forte extração romântica. Mas hoje está bastante datada. De qualquer modo, você tem razão, é errado reduzir o termo regionalismo a um cacoete, na medida em que é uma designação teórica e técnica para um tipo de literatura que, descontados os matizes e nuances, pode abranger autores monumentais como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Esse problema se relaciona ao mencionado acima, ao descompasso entre teoria e imprensa. Os críticos usam e abusam de pressupostos teóricos, mas escamoteiam ou muitas vezes ignoram sumariamente as suas origens. Assim, cria-se uma bagunça de conceitos. A literatura e os leitores só perdem com isso.

Carlos Willian Leite - Ainda no aspecto da representação, olhando pela ótica aristotélica, é possível se falar em ética na poesia?
Aristóteles foi e continua sendo uma das pedras-de-toque para se pensar a dissociação entre ética e representação. Ele secciona a representação dos juízos morais. O que é belo em arte pode ser vicioso em termos civis. Mas se tal coisa que é viciosa no nível da representação consegue se ultimar como representação, deve ser julgada bela, a despeito de sua conotação ética. Essa questão está na Poética e na Ética, pelo que me lembro. É uma grande premissa. Bastante civilizada. No nosso tempo essas relações se tornaram complexas, e ganharam agravantes políticos. Mas acho-a válida e necessária, ainda mais nos dias de hoje, onde predomina o mais asqueroso pensamento politicamente correto.

Edival Lourenço - O filme 2 filhos de Francisco é sucesso de público e de crítica, sendo elogiado inclusive por pessoas que praticamente detêm o “monopólio do bom gosto”. Você acredita que com isso a música sertaneja estará absolvida da pecha de “brega”?
Se isso ocorrer será um sinal de que vivemos em um país agonizante, que está às vésperas da extinção. Uma pessoa que diz gostar de música sertaneja industrializada da mesma forma que gosta de Debussy, ou é hipócrita ou é esquizofrênica. Há coisas que não convergem. Não há pirueta dialética capaz de propor sínteses convincentes dessas coisas.

Carlos Willian Leite - Quem é o grande poeta brasileiro vivo?
Não gosto dessa eleição de príncipe dos poetas. É algo monarquista, como diz jocosamente o Fabrício Carpinejar. Seriam muitos nomes, seria ruim disseminar e dispersar tanto. Cheguei a publicar alguns textos na imprensa sugerindo alguns. Prefiro falar dos bons poetas mais ou menos da minha geração que tenho conhecido. Um deles é a Mariana Ianelli. Às vezes tem um tom bíblico, um andamento de litania. Precisa de um leitor maduro e com grande capacidade de interiorização. Seu livro que acaba de ser lançado, Fazer Silêncio, é belíssimo. Fico feliz de saber da existência de uma poética assim entre nós. Outro nome é o de Dirceu Villa. Grande conhecedor de Pound, tradutor fino de várias línguas e um dos melhores e mais cultos poetas que há hoje no Brasil, com certeza. O Descort é um dos livros fortes publicados por poetas que estão começando. É uma voz diferente. Também menciono o nome de Pablo Simpson, estudioso de Bonnefoy e autor do belo Mitologias. É um poeta que consegue atingir o sublime sem pagar tributos à impostação. Voz que esculpe pequenos cristais. E destaco o belíssimo e singular A Casa Azul ao Meio-Dia, de Flávia Rocha. Acompanho o trabalho dela faz tempo e fiquei muito feliz de ver a consumação de tanta reflexão poética e de tanto trabalho em um livro tão equilibrado, inventivo e cuidadoso. Uma beleza o trabalho com as imagens e a maneira como ela retém a memória afetiva na linguagem. Um dos bons livros de poemas publicados recentemente.

Edival Lourenço - Os concursos literários têm valorizado muito os livros de poemas que mantêm um núcleo temático, uma unidade prosódica, estética etc., formando um todo coeso. Qual a conseqüência disso para a poesia?
Não sei falar sobre o teor do resultado dos concursos literários. Eu mesmo ganhei vários deles. Mas meus livros não têm muito desses ingredientes. Não acho que eles sejam decisivos para julgar o valor de uma obra. Mas quando um autor é premiado algumas vezes por júris e concursos de regiões e critérios totalmente diferentes, acho que é preciso reconhecer que há algo ali.

Carlos Willian Leite - Ao passo que você renega a poesia marginal de certa forma você renega Drummond, não existe um contra-senso entre o discurso praticado e ação de quem faz o discurso?
Não entendo a conexão entre a poesia marginal e o Drummond. O poeta mineiro é uma voz que continha em si inúmeras vozes. Ele vai do poema-piada ao claro enigma da língua absolvida e à cosmologia poética contida no livro que encerra a Máquina do Mundo. Vai da anotação circunstancial, quase prosa, aos lampejos líricos de fatura vária, de versos, metros e ritmos os mais refinados. Vai de uma negação do mundo e da linguagem a um encantamento de amor dos mais humanos. A proposta da poesia marginal, se é que não generalizamos demais falando assim, acentuou algumas dicções poéticas que pudessem se inserir com mais força no plano político, cultural e social em questão. Trata-se de duas propostas poéticas bastante distintas.

Edival Lourenço - No poema História do Futuro você faz um jogo de elementos no mínimo curioso. Recorre a uma forma antiga (o soneto) para falar do porvir. Mas ao falar do porvir remete ao passado, ou pelo menos a um futuro que se parece com o passado, pós-escatológico, talvez num mix de concepções judaico-cristã e evolucionista. Seria essa uma tendência da poesia atual: ignorar barreiras estéticas e filosóficas?
Esta resposta até certo ponto completa uma anterior. A poesia se enraíza na história pra poder transcendê-la. Por isso a leitura de Baudelaire sobre o temporal e o atemporal na arte é tão urgente. Gostei muito da sua interpretação. Também é muito interessante a questão que você coloca. Não sei dizer se é uma tendência da poesia contemporânea. Na verdade toda a poesia acaba recorrendo a um esteio atemporal, fornecido pelos mitos e pela tradição, e o projeta em um futuro hipotético. O arco de tensão entre um futuro mítico e um passado inédito é uma das tônicas de muita poesia que já se produziu. O que mais me interessa na poesia é essa mescla de tempos históricos e imaginários. A sua dimensão trans-histórica. O que tentei desenvolver nesse poema, a partir de um tema do padre Antonio Vieira, é essa ubiqüidade de todos os tempos, que se equivalem na identidade pura de Deus. Dessa forma, o que ainda está por vir já se consumou e o que já passou ainda espera ser inaugurado e revelado em outra chave. Trabalho essa temporalidade em outro poema chamado Círculo de Giz, do meu primeiro livro, História Natural. É algo que me é muito caro. Você o pescou muito bem em meio a tantos poemas de Pedra de Luz. Agradeço muito a sua análise aguda e perspicaz.
Carlos Willian Leite - Que análise faz dos modernistas depois da geração de 45 e dos poetas malditos até os dias atuais?
Rapaz, mas isso é uma convocação de tese (risos). É muita coisa.

Edival Lourenço – O seu Pedra de Luz é um livro inventivo, denso e que comporta leituras e releituras com muita reflexão. Até poemas aparentemente simples como Fábula Milenar e de Costumes traz referências de grande simbologia, como a cidade de Uruk, que existiu no Vale do Eufrates, antecedente à Babilônia. Ou seja, um ovo indez da civilização. Com esse grau de refinamento, e o estilo corrido e superficial da vida moderna, qual público resta para ser leitor de poesia?
Fiquei muito feliz ao saber que ovo indez é um ovo primevo, o primeiro de uma saga. Uma beleza a linguagem goiana assim em meio à nossa conversa. Também porque viajei muito quando criança com meus pais. Conheço Goiás, Minas, Maranhão, Bahia, Amazonas, Pará, Paraná e outros muitos interiores desse país. Acho que isso estimulou muito uma imagem mítica do mundo, e que tento encarnar na poesia. Seguindo sua pergunta inteligente, esse poema é uma espécie de brincadeira com esse ventre primeiro da humanidade, que é a nossa origem Sumério-Acadiana. O poema propõe um jogo com os costumes e com a lógica dos dominantes e dos dominados que, dada a sua amplitude histórica, seria sempre a mesma. Quanto à recepção da poesia por um estilo corrido e superficial da vida atual, como você menciona muito bem, ela não deve se preocupar com isso. Há coisas que necessitam ser ditas. Há existências que precisam se realizar, a despeito do público. Vivemos em um mundo muito publicitário. Tudo existe e só existe em função da exterioridade e do seu consumo final. Quanto a isso, sempre me lembro de uma bela descoberta. Há algumas imagens na Catedral de Chartres que não podem ser vistas pelo público. Estão incrustadas nos desvãos do teto, inacessíveis. Os historiadores da arte sempre acharam um enigma, imagens que foram pintadas para não serem vistas. Mas a solução do enigma é óbvia: foram feitas para os olhos de Deus. Ele é onisciente. Vê tudo. Não são para serem vistas pelos homens. É proposital. Acho essa uma bela anedota contra o mundo midiático imbecil em que vivemos. Há coisas que são feitas para não serem vistas. Por mais que isso contrarie a lógica espúria do mercado, que é quem cada vez mais dita as regras. Independente da circulação, do aplauso ou da vaia, as coisas existem. São irredutíveis em sua verdade metafísica. E, no fundo e em última instância, é apenas isso o que interessa.

Carlos Willian Leite - Para quem daria o Oscar da poesia se ele existisse, Yves Bonnefoy ou Herberto Helder?
O Yves Bonnefoy é um dos grandes poetas atuais. Entre Helder e Bonnefoy fico com Herberto Helder. Voz das mais robustas, transbordante, lirismo que atingiu o seu ápice e imagem enlouquecida que desfaz todas as gramáticas da poesia. Ele e António Ramos Rosa são os maiores poetas da língua portuguesa.

Carlos Willian Leite - Ao contrário da prosa, não existe uma nova geração de poetas. O que difere são pequenas exceções. Isso é culpa da Internet que cartelizou a poesia ou da academia que fossilizou a linguagem e elegeu uma idéia definitiva de poesia objeto, uma espécie de lirismo atrofiado na fonte?
Não. Acho que a Internet não tem nada a ver com isso. Não sei se não há uma nova geração de poetas. Talvez eles não sejam tão coesos, não mais se articulem e se projetem em grupos, como vem ocorrendo na prosa. O motivo disso não sei.

Edival Lourenço - Para Habermas, fora da vida doméstica, fora da igreja e do governo existe uma “esfera pública”, onde as idéias são examinadas e discutidas. No entanto, essa “esfera pública” vem sendo disputada pelo poder da mídia e das grandes corporações. Você acredita que a Internet representaria o surgimento de uma nova “esfera pública”, onde a reflexão pudesse acontecer com autonomia?
A questão é bastante interessante. Muito bem sacada. Não diria que a Internet chega a criar uma esfera pública, porque o seu acesso ainda é filtrado por componentes econômicos que ainda marcam bem a inserção e a exclusão social de seus usuários ou possíveis usuários. Ainda é uma ferramenta híbrida, de domínio de poucos. Mas acho que ela pode produzir um espaço saudável de anarquia na cultura contemporânea. A mistura das linguagens, a liberdade de informação, o princípio ativo que a diferencia radicalmente dos cool media, como dizia o McLuhan, tudo isso pode concorrer para a formação de uma cultura de informação e trocas simbólicas. Mas tudo isso depende da resolução de alguns problemas de base. Sem eles não há teoria ou utopia tecnológica que se sustente.

Edival Lourenço - Como você se sentiria se dormisse e acordasse daqui a 100 anos e Paulo Coelho tivesse se tornado o Machado de Assis do século 22?
Eu morreria de novo.

Francisco Perna Filho - O fato de Paulo Coelho ser bastante lido e apreciado em outros países, não seria responsabilidade dos seus tradutores, já que, ao traduzir, perde-se ou se ganha muito, dependendo do grau de inventividade de quem traduz?
Sua observação é bastante interessante. Mas não acredito que uma tradução possa alterar tanto o original. Paulo Coelho é uma das poucas coisas universais que temos no mundo relativista, global e pós qualquer coisa em que vivemos. Ao invés de comprar um remédio para o corpo você compra um livro para o espírito. Isso é a o ápice da diluição da cultura com finalidade medicamentosa em um mundo doente. Indica que não só ruíram todos os projetos de construção de uma civilização e todos os projetos políticos coesos, mas que ruiu a própria possibilidade de se pensar em literatura com o mínimo de objetividade. É a falência de toda mediação crítica. Isso é o mesmo que dizer que fomos vencidos pela razão da indústria, ou seja, por aqueles que detêm o poder financeiro e de informação. O oposto dos valores intelectuais e do espírito.

Francisco Perna Filho - Em termos de literatura, qual é a sua maior angústia?
Em geral a literatura é sempre fonte de prazer e alegria. Mas tenho algumas angústias irresolúveis. Uma é saber quanta e quanta coisa magnífica há a ser lida ou relida e que nossa vida é tão escassa e tão cheia de dificuldades. Também às vezes me angustia pensar no número de pessoas que desconhecem alguns livros ou não têm acesso a eles. Parece que é quase como desconhecer a luz do sol. Na minha escrita, a angústia é de sentir que ela escoa e muitas vezes não consigo atingir o ponto que gostaria de atingir. Mas isso faz parte. Meus fracassos, hesitações, dúvidas e erros também são a minha literatura. É a escrita do mundo e das coisas. Para além da ética espúria dos fariseus.

Carlos Willian Leite - Um fato marcante de Pedra de Luz é o cenário do antagonismo complementar. Dentro desse contexto, mas abrindo um diálogo para o lado da crença: Deus seria possível, sem a existência demônio?
Essa pergunta é provocativa e bastante interessante. Há um texto polêmico e pouco conhecido do Mircea Eliade no qual ele diz, mais ou menos nessas palavras, que o mal do mundo existe porque Satã foi excluído dele. Todo o mal nasceria, segundo a visão de Eliade, não da participação do demônio, mas sim de sua expulsão. O demônio seria responsável pelo equilíbrio necessário entre luz e treva, para que essa balança não seja desregulada e produza aquilo que Jung define como enantiodromia: a fixação exclusiva em um pólo de dois opostos complementares e a anulação de sua síntese possível em uma antítese absoluta. Podemos pensar no demônio em termos bastante metafóricos, como representante de forças ínferas, telúricas, subterrâneas. Por outro lado, a sociedade técnica e o modo de organização do capitalismo tenderam e tendem cada vez mais a um abafamento dessa dimensão, em proveito de uma funcionalidade e de uma assepsia cada vez mais produtiva, cada vez mais desenraizada das forças abissais do espírito. A única ocupação da cultura de fariseus na qual vivemos é atirar pedras na face alheia. Todos ignoram hipocritamente a floresta obscura que têm dentro de si, para lembrar o magnífico Lawrence. Nunca conheci quem tivesse levado porrada, diria Pessoa. Todos são perfeitos em tudo. Ninguém se reconhece como cúmplice dos crimes mais sórdidos que há no mundo. Anulam-se hipocritamente e assim temos um mundo de vítimas sem nenhum assassino, o que é uma grande fraude. Todos são perfeitos e o inferno são sempre os outros. Esse movimento de cisão, essa separação, pode explicar muito da violência recalcada que eclode nos dias de hoje, e ganha forma, seja em aberrações políticas e ideológicas, seja em manifestações religiosas que parecem querer dizer o que o demônio está querendo dizer há muito mas está sendo sistematicamente abafado por uma utopia de progresso e de esclarecimento que é não só extremamente duvidosa, mas é sim aquela que vai nos levar ao extermínio. Enquanto não reconhecermos que há uma nódoa de barbárie em cada gesto civilizado, continuaremos sendo os bárbaros adiados que somos e que sempre fomos.

Carlos Willian Leite - Outra característica de Pedra de Luz são as variações estruturais de cada poema. Isso quase sempre inviabiliza uma unidade coerente. Mas, no caso de Pedra de Luz, embora essas variações sejam perceptíveis, existe uma idéia central de totalidade, mas que, ao mesmo tempo, é compartilhada e complementa os extremos fronteiriços. Como foi possível ordenar uma variação formal sem perder a unidade?
A idéia fixa que me persegue é que cada sensação pede um poema e cada poema pede uma forma. A gama de flutuações em nossa percepção é muito grande. Montaigne dizia que o que chamamos de eu é uma coleção heteróclita de estados de espírito e de paisagens. Alberto Caeiro diria que não somos o mesmo ao longo de um único dia. A poesia, ao lidar com a matéria-prima da sensação, acaba sendo enovelada nessa multiplicidade. Tento não gerar um desequilíbrio poético dos poemas de um mesmo livro. Mas quanto à unidade, confesso que cansei de pensar no assunto. O leitor que una as peças dispersas do que eu sou escrito.

Carlos Willian Leite - Você reescreveu os poemas de Pedra de Luz?
Infinitas vezes cada um deles. Cada poema tem uma estória. Há desde aqueles que nascem prontos até aqueles que são escritos, reescritos, cortados e novamente reescritos indefinidamente. Às vezes, depois de tudo isso, vão para o lixo. Outras não. De modo geral ajo por ímpeto, escrevo movido por uma urgência, mas depois que tenho a matéria bruta, trabalho-a ad nauseam. Quase sempre é assim.

Carlos Willian Leite - Onde vai dar essa coisa de poesia do objeto, um resquício do concretismo, que ressurgiu dentro das universidades?
Já disse em alguns textos críticos e em entrevistas o que penso de poesia concreta e de arte objetual. Seria preciso ver caso a caso. Nada impede que um sujeito use um novo suporte e faça uma maravilha com isso. Basta ver um artista gigante, para mim um dos maiores gênios brasileiros, como o Farnese de Andrade. O que ele fez com os assemblages é algo que em alguns momentos nos faz rever o valor de Duchamp. O problema é que as pessoas se entorpecem pela teoria e se deslumbram com o suporte e perdem de vista a discussão rigorosamente qualitativa.
Carlos Willian Leite - A poesia concreta, na sua visão, criou algo de perene e que possa ser tomado como ponto de referência poética?
Também já falei sobre isso em outros momentos. Não sei se tenho grande coisa a acrescentar a esse assunto. Os irmãos Haroldo e Augusto de Campos são tradutores magníficos e homens muito cultos. Deram contribuições notáveis nesse campo e elevaram o nível de exigência no que diz respeito a essa prática. Temos uma grande dívida e respeito em relação a eles nesse ponto. A poesia deles que fale por si. O que sou radicalmente contra é a intervenção teórica deles. Acho que há muitos problemas teóricos que devem ser debatidos. Até como uma forma de civilidade e de discussão séria de idéias.

Carlos Willian Leite - Quais são as obras essenciais para que um poeta saia do círculo vicioso de querer inventar o já inventado?
A pergunta é muito extensa. Há todos os clássicos, todas as obras de todos os tempos que, se lidas e bem assimiladas, podem mudar a espinha dorsal de uma cultura e de uma época. De forma mais prosaica, peço que prestemos mais atenção na poesia portuguesa. É uma das melhores do mundo, não há problemas de obstáculos lingüísticos e a quantidade de poetas gigantes praticamente desconhecidos aqui é assustadora. Eles mantiveram a tradição do lirismo e conseguiram aprofundá-la. Graças a isso eles tiveram nomes como Ruy Belo e têm nomes como António Ramos Rosa e Herberto Helder.

Carlos Willian Leite - A crítica literária no Brasil não seria apenas uma ficção conveniente para os grandes vendedores de livros?
A crítica está sitiada entre a teoria universitária e o colunismo social. Enquanto não solver esse impasse, vai continuar produzindo retalhos de textos pouco analíticos, pouco consistentes, pouco interessantes.

Carlos Willian Leite - Como você disse, você também tem seus fracassos, hesitações, dúvidas e erros. A literatura é uma estrada que pode levar o ser a diminuir as possibilidades de ser vítima da hipocrisia moderna?
Acho que essa pergunta se liga diretamente à pergunta sobre o papel do demônio no mundo moderno. Remeto aqui àquela preciosidade que é A Literatura e o Mal do George Bataille e a um ensaio de Blanchot, intitulado Literatura e Direito à Morte. A literatura pode ser um altar incandescente onde se queimam todas as nossas falsas verdades e, mais que isso, toda a falsidade. O poeta pode ser a vítima sacrificial, o indigente anatematizado que restitui luz à noite do mundo a partir de sua própria imolação, para lembrar alguns conceitos do grande estudioso René Girard e algumas passagens de Heidegger. Nesse sentido a literatura encarna a experiência do mal para purgar os homens de sua ação. Embriaga-se para dar-nos mais lucidez. Uma lucidez mais cortante, cada vez mais saudável, porque não ignora que somos cúmplices de toda a abjeção que existe sobre a terra. Mas sabe sim que o fato de negarmos isso é que vai nos conduzir ao suicídio coletivo.

Carlos Willian Leite - Qual a distância que separa o poeta Rodrigo Petronio do prosador?
Gosto muito de ficção curta e de ensaio. São gêneros que me dão muito prazer ler e escrever. Vejo-me acima de tudo como poeta, e plasmo esses gêneros com a poesia. Não sei se em algum momento terei que abdicar de algum deles. Não sei qual terá o papel principal. Sei que até agora, graças à minha megalomania, tenho gostado de me dedicar a todos eles. E tenho um livro novo de contos e outro de ensaios.

Carlos Willian Leite - Qual sua opinião sobre a política cultural do ministro Gilberto Gil?
Não saberia dizer assim de cara. Vi algumas manifestações interessantes na área de livros e de difusão de leitura. O que me parece é que às vezes a ação fica muito em um nível populista, de ressaltar o acesso e a partilha dos pães, mas se esquece que os comedores não têm dentes. É preciso equacionar isso.

Carlos Willian Leite - Quem é o maior chato da literatura brasileira?
Por nomes assim não sei dizer. Coisas que não suporto mais é poeta com discursinho universitário e cartilha teórica debaixo do braço e prosador que elogia cultura de boteco, uma hipotética marginalidade e um hipotético submundo. O ápice da esquizofrenia nacional, diria o Glauber Rocha.

Carlos Willian Leite - Onde terminará sua genealogia?
Nas estrelas.